1985,
São Paulo. Uma das temporadas mais atípicas da minha vida. Eu tinha
perdido um grande amor maldito
que fora para Belém do Pará por minha decisão e logo a seguir um
boxer tigrado com quem até hoje sonho, brinco e converso em jardins.
Fortuitamente havia recuperado minhas visitas a um quintal onde
passei os melhores momentos da infância e que agora estava quase
abandonado nos fundos da casa de um velho tio que morria rezando a
Ave Maria todas as tardes, purgando assim sua existência dionisíaca
de estrondosos palavrões e danos morais. Certa vez ele confiscara
uma biografia de Billie Holiday que eu lia e esquecera por descuido
junto a seu copo de água benta. Quando voltei do meu quintal, já
chapado, ele me perguntou à queima-roupa logo depois da sua oração
vespertina: '-Mas que cazzo de livro é esse que você está
lendo, cara?' É a história da vida de uma cantora de Jazz,
tio. '-História da vida de uma cantora ou livro de ensinar
a dar o cu?' Era assim desde sempre. Não respondi nada.
Fiquei olhando para ele me dizendo aquele monte de loucuras logo após
tomar sua água benzida colada ainda em seus imensos bigodes cujas
pontas ele enrolava à la Gurdjieff. Era apenas e ainda, um
velho sátiro dificílimo. Eu, a única criança da família de quem
ele realmente gostou. De alguma forma nos entendíamos. Sempre foi
assim. Visitá-lo era sempre algo interessante, dinâmico e repleto
de contrastes. Coloria minha vida estreita que descendera de tal
forma a ponto de em determinado momento me ver morando numa pensão
perto do Metrô Santana num cubículo onde só entravam eu, minha
cama e uma mala. O 'quarto' era embaixo da escada de madeira do
antigo sobrado e devidamente fechado por uma parede de madeira e uma
porta com cadeado. Ali, além de mim, da cama e da mala, só cabiam
minhas esperanças e meus sonhos cor-de-rosa. Mais nada. Operário
noturno que eu era, todos os passos de quem vivia no andar de cima
pisavam meu sossego a partir de seis da manhã. Quê mais poderia
querer? Era pegar no sono e a martelação começava! Mas havia ainda
uma larga coleção de efeitos especiais nessa trilha sonora.
Colado
a ele, estava a cozinha da casa onde ao meio-dia outra função
maluca se iniciava. Meus sonhos misturavam-se a tudo o que se
comentava naquele cômodo, quando uma das filhas da proprietária
vinha cozinhar suas refeições à hora do almoço e conversava com
alguém que jamais lhe respondia uma única palavra. Nunca vi seu
rosto. Mas sua voz, ainda que perturbasse meu sono, me agradava
muito. Era a voz de uma guerreira. Forte, decidida, alguém que tinha
batalhado uma vida de lutas e contas abertas com filhos
potencialmente devedores:
“-
Não, mas o Michel, um dia, um dia, ainda vai me pagar por tudo
aquilo o que eu fiz pra ele nessa vida. Por essa luz que me alumeia!”
Era
uma pequena tortura e um afago quando ela iniciava seu discurso
diário enquanto lidava com panelas, frituras e aromas que permeavam
meu quarto de ilusões e cheiros inatingíveis àquela hora.
Eu
tinha naquele tempo a suprema ousadia de continuar minha prática
diária de ballet numa escola de renome onde sempre me acolheram, o
Ballet Stagium. Um sufoco chegar pela manhã e lavar minhas malhas
suadas antes de dormir a tempo de a Orquestra de Barulhos iniciar seu
prelúdio de percussão e correria.
À
noite eu trabalhava como chapeiro e cozinheiro no Madame Satã, um
reduto dark-punk dos anos 80. Estava feliz de certa forma. Cercado de
maconheiros por todos os lados, eu tinha no meu balcão um palco onde
toda minha elegância de movimentos era observada por clientes
invariavelmente chapados que costumavam sentar-se ali entre uma
performance e outra na pista de dança. Dentre eles João Gordo,
ainda um adolescente de cabelos encaracolados e uma jaqueta jeans
especialmente desbotada. Parecia um bonequinho de bolo inofensivo.
Uma criança linda sempre me pedindo para dar a ele uma cerveja na
faixa. No meio de uma pauleira ele costumava 'marchar': - uma
cerveja! e que eu mecanicamente pegava do freezer só para depois
olhar severamente a expressão de seu rosto jovial - que ria maroto -
e constatar que não havia nenhum ticket em suas mãos para pagar o
pedido! Talvez para arrefecer seu truque que sempre funcionou, ele
amortecia sorrindo e dizendo logo em seguida:
-
'Ô Alemão, me faz um Satã Wave, vai!'
-Cadê
a ficha, João? Pára de me alugar desse jeito, caralho! Você não
vê que eu tô ocupado, pô? Um puta movimento desses e você de
gozação aí do lado de fora!
-'Ô
Alemão, me faz um Satã Wave na faixa, Alemão! Só hoje, só hoje!
Tô sem grana, Alemão!'
Hoje
não, João! Só pra você aprender a deixar de ser pilantra! Um dia
eu faço! Um dia eu faço! Mas hoje não, tá? Vaza daqui! Anda!
Eu
era duro com ele mas não havia como não amar uma criança assim!
Um
dia eu fiz o diabo do Satã Wave para ele. Um sanduíche medíocre
com duas pastas estranhas, uma de espinafre e outra de beterraba.
Deus do céu: verde e vermelho! Em três fatias de pão de forma
integral e mais nada. Só na larica pra poder comer um treco maligno
daqueles!
Mas
o João comeu tudo como bom garfo que era, no mínimo louco por
junkie food e ligadíssimo como sempre! Não olhei sua voracidade ao
comer. Mas minha visão periférica lia sua felicidade vestida num
invariável blue jeans emoldurando suas bochechas rosadas de criança
sorridente. Nada nele suporia o futuro band leader de uma banda punk
chamada Ratos de Porão. Anos depois, quando ele já era famoso e
tinha um programa na MTV, nunca pude olhar aquele skinhead (desculpa,
João!) com outros olhos que não fosse o daquele menino lindo que
colava no meu balcão de trabalho pedindo cerveja de graça! Você
continua a ser um menino lindo, João, mesmo quando fala esse monte
de palavrões! Talvez seja o mal do nome. Meu sarcástico tio
bigodudo também era joão como você.
Eu
tinha planos sinistros para o Satã nessa época. Por sugestão da
malucada que vivia me pedindo, queria, a certo ponto, fazer um bolo
de chocolate com maconha, por exemplo, mas por minha conta, sem
causar muito barulho. Não poderia comprometer a direção da casa,
que era ótima e tinha uma relação maravilhosa comigo.
Nunca
levei adiante esse plano diabólico. Meus clientes aliás não
precisavam do meu apoio para fazerem a cabeça. Ali dentro você
podia fumar um no banheiro de boa que não dava nada. Fiz isso
inúmeras vezes. E cheirei num final de noite com dois atores
maravilhosos, um deles amigo muito querido que veio junto com outro
grande ídolo meu, alguém que eu amava desde a infância, da época
em que aquele quintal era meu único mundo.
Coisas
aconteciam naquele casarão preto da Conselheiro Ramalho. No meio da
madrugada aparecia a Charô resplandescente. Emersa de uma esquina
qualquer de Blade Runner, ela me lembrava quase um clown em ficção
científica. Olhava sempre com doçura as flores que eu trazia para a
cozinha todos os dias a fim de aplacar a ira dos eventuais demônios.
Levou meses até que ela me notasse. Sua primeira fala para mim foi:
'Você deve ser uma pessoa boa, sua cozinha tem flores.'
Raras flores como ela, surgiam de vez em quando. Uma delas ainda
estava por vir como um tsunami de pétalas!
Ok.
Recém saído do Barão Vermelho, uma noite me pinta o Cazuza no
Satã. Ele devia ter boas relações com os proprietários. Vira e
mexe se enfiava no pequeno escritório pegado à minha copa e ficava
a portas trancadas com não sei quem. Pouco me interessava. Ele já
devia ter gente suficiente farejando todos os seus movimentos.
Naquela noite ele estava especialmente bonito. Com uma camiseta
regata cor de rosa e ainda de cabelos compridos... Coisa típica de
anjo caído. Pediu algumas cervejas para as meninas que trabalhavam
comigo mas parecia não querer nada para comer.
Não
ousava sequer olhar para ele. Nunca gostei de dar muito crédito a
gente famosa. Sonhei há duas noites com Caetano Veloso e uma das
minhas preocupações neste sonho era de não tratá-lo de forma
diferente por ele ser quem era. Acho que pessoas que atingem a fama
sentem-se ao final prisioneiras de algo que parte de certa forma do
ser delas mas que definitivamente não está em nada relacionado à
essência simples e sem elaboração da alma que elas realmente são,
acima de tudo. Num certo momento acho que artistas famosos ressentem
a falta do direito de serem gente comum, sem letreiros luminosos
fazendo-lhes moldura. Nada mais.
Mas
no decorrer da noite, num certo ponto o Senhor Agenor de Miranda
Araújo Neto colou no meu balcão e me disse:
'Ô
meu, tem a manha de fazer um Cheese Salada pra mim?'
Fiquei
seriamente tentado a responder: Só se você voltar para o Barão
Vermelho! Mas contei até dez e logo depois tive um pensamento assim:
Essa bicha é tão doida e desbocada que é melhor não me meter a
besta fazendo nenhum tipo de gracinha! Só disse-lhe sim e mãos à
obra.
Montei
o sanduíche pro Cazuza. Caprichei no que pude e fiz um puta Cheese
Salada para ele. Escolhi o pão mais bonito, o melhor hambúrguer da
caixa e cortei os tomates na hora. Peguei as folhas mais frescas do
miolo da alface e coloquei duas fatias de queijo prato sobre a carne
assim que virei o hambúrguer para grelhar do outro lado. Ele me
observou trabalhando o tempo todo. Quietinho como um bom garoto. Mas
em nenhum momento eu avaliei o quanto aquilo seria histórico para
mim. Que chance legal! Fazer um sanduíche prum diabinho daqueles!
Servi.
Coloquei Ketchup e Mostarda como manda o figurino e arrastei uma
televisão de guardanapos para ele. Comeu calado. Perdi a chance de
observar como ele se comportava. Não olhei um momento sequer. Ao
menos ali ele teria a oportunidade de ser anônimo Agenor.
Quando
terminou, tirei seu prato vazio e limpei a bancada por educação,
pois ele a deixara intacta, bom e educado menino que ele era
acostumado às boas maneiras de um lar burguês.
Mas
talvez não tenha sido suficiente para sua fome de leão de
rock'n'roll. Então ele disparou:
'-
Ô meu, tinha a manha de fazer uma porção de batata frita para
mim?'
Eu
tinha a manha, claro que tinha! Só não tinha as condições certas
pra fazer uma porção de fritas de imediato. Foi o que disse a ele:
-
Tenho, mas só se você tiver paciência e esperar um pouco porque,
normalmente, eu não solto fritas aqui. Tenho batata para comida de
funcionários e posso descascar algumas para você. Você espera?
Ele
concordou.
Peguei
as três melhores batatas que eu tinha e descasquei. Cortei em
palitos matematicamente iguais e lavei para tirar o excesso de amido.
Sequei depois com um pano de prato limpo, carta que sempre tenho na
manga, enquanto o óleo esquentava numa panela pequena que improvisei
à guisa de tacho. Uma menina sentou-se perto de Cazuza e eles
começaram a conversar. Terminei meu trabalho e num bowl forrado com
papel toalha tirei o excesso de óleo que as fritas porventura
tivessem. Servi num prato oval acompanhado de um saleiro e um frasco
de Ketchup. Seus olhos brilharam.
Mas
sua paciência talvez tenha se esgotado umas cinco batatinhas depois. A próxima
cena que vi foi um Cazuza arisco e nervoso saindo da cozinha andando
de costas como um siri bravo e falando alto pra garota:
'-
Viado merrmo, falô? Viado merrmo! E aposto que tu nunca viu um maior
que eu!
Lindo
e puto da vida naquela camiseta cor-de-rosa! As fritas? Nem sei que
fim levaram. Sinceramente não me lembro se alguém comeu. Cazuza?
Deve ter vazado no mundo logo após. Alguns anos depois, já no
AeroAnta, cartazes anunciavam seu show Ideologia e
que ele cancelou por problemas de saúde. Algum tempo depois, quando
eu já não trabalhava mais lá, ele voltou revigorado por um
tratamento que iniciara no exterior e mostrou seu Ideologia para
uma plateia bem mais agradável que aquela garota que o impediu de
comer suas batatas fritas aquela noite. Seguranças amigos meus me
disseram algum tempo depois que ele, mesmo doente e muito abatido,
fumou um baseado imenso com eles depois do show. Bicha doida...
Nunca
mais vi Cazuza. Achei corajosa e artisticamente audaciosa a forma
como ele expôs sua dura realidade na MPB. Poucos teriam agido assim.
Ele fez de seu sangue poluído um grito de vitória consigo mesmo.
Veio
a falecer num sete de julho, ironicamente dia do meu aniversário.
Nós somos do mesmo ano. 58. Para mim foi um presente saber que sua
longa batalha tivesse chegado ao fim. Acho que todos os brasileiros
sofreram amargamente sua agonia, gostassem dele ou não. Quanto a
mim, continuo agradecendo eternamente a canja que Cazuza me deu em
poder fazer-lhe um sanduíche para que matasse sua fome.
A
outra fome que ele sentia, essa não havia com certeza cozinheiro
algum no mundo que pudesse saciar, a fome que talvez sentisse de ser
ele mesmo, coisa de que tratou como raras estrelas fariam. Cazuza
virou a partir de então um nome de constelação no grande céu de
todos nós. Um beijo, baby! Te vejo no próximo cometa!
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