sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Um Cheese Salada para Cazuza


1985, São Paulo. Uma das temporadas mais atípicas da minha vida. Eu tinha perdido um grande amor maldito que fora para Belém do Pará por minha decisão e logo a seguir um boxer tigrado com quem até hoje sonho, brinco e converso em jardins. Fortuitamente havia recuperado minhas visitas a um quintal onde passei os melhores momentos da infância e que agora estava quase abandonado nos fundos da casa de um velho tio que morria rezando a Ave Maria todas as tardes, purgando assim sua existência dionisíaca de estrondosos palavrões e danos morais. Certa vez ele confiscara uma biografia de Billie Holiday que eu lia e esquecera por descuido junto a seu copo de água benta. Quando voltei do meu quintal, já chapado, ele me perguntou à queima-roupa logo depois da sua oração vespertina: '-Mas que cazzo de livro é esse que você está lendo, cara?' É a história da vida de uma cantora de Jazz, tio. '-História da vida de uma cantora ou livro de ensinar a dar o cu?' Era assim desde sempre. Não respondi nada. Fiquei olhando para ele me dizendo aquele monte de loucuras logo após tomar sua água benzida colada ainda em seus imensos bigodes cujas pontas ele enrolava à la Gurdjieff. Era apenas e ainda, um velho sátiro dificílimo. Eu, a única criança da família de quem ele realmente gostou. De alguma forma nos entendíamos. Sempre foi assim. Visitá-lo era sempre algo interessante, dinâmico e repleto de contrastes. Coloria minha vida estreita que descendera de tal forma a ponto de em determinado momento me ver morando numa pensão perto do Metrô Santana num cubículo onde só entravam eu, minha cama e uma mala. O 'quarto' era embaixo da escada de madeira do antigo sobrado e devidamente fechado por uma parede de madeira e uma porta com cadeado. Ali, além de mim, da cama e da mala, só cabiam minhas esperanças e meus sonhos cor-de-rosa. Mais nada. Operário noturno que eu era, todos os passos de quem vivia no andar de cima pisavam meu sossego a partir de seis da manhã. Quê mais poderia querer? Era pegar no sono e a martelação começava! Mas havia ainda uma larga coleção de efeitos especiais nessa trilha sonora.
Colado a ele, estava a cozinha da casa onde ao meio-dia outra função maluca se iniciava. Meus sonhos misturavam-se a tudo o que se comentava naquele cômodo, quando uma das filhas da proprietária vinha cozinhar suas refeições à hora do almoço e conversava com alguém que jamais lhe respondia uma única palavra. Nunca vi seu rosto. Mas sua voz, ainda que perturbasse meu sono, me agradava muito. Era a voz de uma guerreira. Forte, decidida, alguém que tinha batalhado uma vida de lutas e contas abertas com filhos potencialmente devedores:
- Não, mas o Michel, um dia, um dia, ainda vai me pagar por tudo aquilo o que eu fiz pra ele nessa vida. Por essa luz que me alumeia!”
Era uma pequena tortura e um afago quando ela iniciava seu discurso diário enquanto lidava com panelas, frituras e aromas que permeavam meu quarto de ilusões e cheiros inatingíveis àquela hora.
Eu tinha naquele tempo a suprema ousadia de continuar minha prática diária de ballet numa escola de renome onde sempre me acolheram, o Ballet Stagium. Um sufoco chegar pela manhã e lavar minhas malhas suadas antes de dormir a tempo de a Orquestra de Barulhos iniciar seu prelúdio de percussão e correria.
À noite eu trabalhava como chapeiro e cozinheiro no Madame Satã, um reduto dark-punk dos anos 80. Estava feliz de certa forma. Cercado de maconheiros por todos os lados, eu tinha no meu balcão um palco onde toda minha elegância de movimentos era observada por clientes invariavelmente chapados que costumavam sentar-se ali entre uma performance e outra na pista de dança. Dentre eles João Gordo, ainda um adolescente de cabelos encaracolados e uma jaqueta jeans especialmente desbotada. Parecia um bonequinho de bolo inofensivo. Uma criança linda sempre me pedindo para dar a ele uma cerveja na faixa. No meio de uma pauleira ele costumava 'marchar': - uma cerveja! e que eu mecanicamente pegava do freezer só para depois olhar severamente a expressão de seu rosto jovial - que ria maroto - e constatar que não havia nenhum ticket em suas mãos para pagar o pedido! Talvez para arrefecer seu truque que sempre funcionou, ele amortecia sorrindo e dizendo logo em seguida:
- 'Ô Alemão, me faz um Satã Wave, vai!'
-Cadê a ficha, João? Pára de me alugar desse jeito, caralho! Você não vê que eu tô ocupado, pô? Um puta movimento desses e você de gozação aí do lado de fora!
-'Ô Alemão, me faz um Satã Wave na faixa, Alemão! Só hoje, só hoje! Tô sem grana, Alemão!'
Hoje não, João! Só pra você aprender a deixar de ser pilantra! Um dia eu faço! Um dia eu faço! Mas hoje não, tá? Vaza daqui! Anda!
Eu era duro com ele mas não havia como não amar uma criança assim!
Um dia eu fiz o diabo do Satã Wave para ele. Um sanduíche medíocre com duas pastas estranhas, uma de espinafre e outra de beterraba. Deus do céu: verde e vermelho! Em três fatias de pão de forma integral e mais nada. Só na larica pra poder comer um treco maligno daqueles!
Mas o João comeu tudo como bom garfo que era, no mínimo louco por junkie food e ligadíssimo como sempre! Não olhei sua voracidade ao comer. Mas minha visão periférica lia sua felicidade vestida num invariável blue jeans emoldurando suas bochechas rosadas de criança sorridente. Nada nele suporia o futuro band leader de uma banda punk chamada Ratos de Porão. Anos depois, quando ele já era famoso e tinha um programa na MTV, nunca pude olhar aquele skinhead (desculpa, João!) com outros olhos que não fosse o daquele menino lindo que colava no meu balcão de trabalho pedindo cerveja de graça! Você continua a ser um menino lindo, João, mesmo quando fala esse monte de palavrões! Talvez seja o mal do nome. Meu sarcástico tio bigodudo também era joão como você.
Eu tinha planos sinistros para o Satã nessa época. Por sugestão da malucada que vivia me pedindo, queria, a certo ponto, fazer um bolo de chocolate com maconha, por exemplo, mas por minha conta, sem causar muito barulho. Não poderia comprometer a direção da casa, que era ótima e tinha uma relação maravilhosa comigo.
Nunca levei adiante esse plano diabólico. Meus clientes aliás não precisavam do meu apoio para fazerem a cabeça. Ali dentro você podia fumar um no banheiro de boa que não dava nada. Fiz isso inúmeras vezes. E cheirei num final de noite com dois atores maravilhosos, um deles amigo muito querido que veio junto com outro grande ídolo meu, alguém que eu amava desde a infância, da época em que aquele quintal era meu único mundo.
Coisas aconteciam naquele casarão preto da Conselheiro Ramalho. No meio da madrugada aparecia a Charô resplandescente. Emersa de uma esquina qualquer de Blade Runner, ela me lembrava quase um clown em ficção científica. Olhava sempre com doçura as flores que eu trazia para a cozinha todos os dias a fim de aplacar a ira dos eventuais demônios. Levou meses até que ela me notasse. Sua primeira fala para mim foi: 'Você deve ser uma pessoa boa, sua cozinha tem flores.' Raras flores como ela, surgiam de vez em quando. Uma delas ainda estava por vir como um tsunami de pétalas!
Ok. Recém saído do Barão Vermelho, uma noite me pinta o Cazuza no Satã. Ele devia ter boas relações com os proprietários. Vira e mexe se enfiava no pequeno escritório pegado à minha copa e ficava a portas trancadas com não sei quem. Pouco me interessava. Ele já devia ter gente suficiente farejando todos os seus movimentos. Naquela noite ele estava especialmente bonito. Com uma camiseta regata cor de rosa e ainda de cabelos compridos... Coisa típica de anjo caído. Pediu algumas cervejas para as meninas que trabalhavam comigo mas parecia não querer nada para comer.
Não ousava sequer olhar para ele. Nunca gostei de dar muito crédito a gente famosa. Sonhei há duas noites com Caetano Veloso e uma das minhas preocupações neste sonho era de não tratá-lo de forma diferente por ele ser quem era. Acho que pessoas que atingem a fama sentem-se ao final prisioneiras de algo que parte de certa forma do ser delas mas que definitivamente não está em nada relacionado à essência simples e sem elaboração da alma que elas realmente são, acima de tudo. Num certo momento acho que artistas famosos ressentem a falta do direito de serem gente comum, sem letreiros luminosos fazendo-lhes moldura. Nada mais.
Mas no decorrer da noite, num certo ponto o Senhor Agenor de Miranda Araújo Neto colou no meu balcão e me disse:
'Ô meu, tem a manha de fazer um Cheese Salada pra mim?'
Fiquei seriamente tentado a responder: Só se você voltar para o Barão Vermelho! Mas contei até dez e logo depois tive um pensamento assim: Essa bicha é tão doida e desbocada que é melhor não me meter a besta fazendo nenhum tipo de gracinha! Só disse-lhe sim e mãos à obra.
Montei o sanduíche pro Cazuza. Caprichei no que pude e fiz um puta Cheese Salada para ele. Escolhi o pão mais bonito, o melhor hambúrguer da caixa e cortei os tomates na hora. Peguei as folhas mais frescas do miolo da alface e coloquei duas fatias de queijo prato sobre a carne assim que virei o hambúrguer para grelhar do outro lado. Ele me observou trabalhando o tempo todo. Quietinho como um bom garoto. Mas em nenhum momento eu avaliei o quanto aquilo seria histórico para mim. Que chance legal! Fazer um sanduíche prum diabinho daqueles!
Servi. Coloquei Ketchup e Mostarda como manda o figurino e arrastei uma televisão de guardanapos para ele. Comeu calado. Perdi a chance de observar como ele se comportava. Não olhei um momento sequer. Ao menos ali ele teria a oportunidade de ser anônimo Agenor.
Quando terminou, tirei seu prato vazio e limpei a bancada por educação, pois ele a deixara intacta, bom e educado menino que ele era acostumado às boas maneiras de um lar burguês.
Mas talvez não tenha sido suficiente para sua fome de leão de rock'n'roll. Então ele disparou:
'- Ô meu, tinha a manha de fazer uma porção de batata frita para mim?'
Eu tinha a manha, claro que tinha! Só não tinha as condições certas pra fazer uma porção de fritas de imediato. Foi o que disse a ele:
- Tenho, mas só se você tiver paciência e esperar um pouco porque, normalmente, eu não solto fritas aqui. Tenho batata para comida de funcionários e posso descascar algumas para você. Você espera?
Ele concordou.
Peguei as três melhores batatas que eu tinha e descasquei. Cortei em palitos matematicamente iguais e lavei para tirar o excesso de amido. Sequei depois com um pano de prato limpo, carta que sempre tenho na manga, enquanto o óleo esquentava numa panela pequena que improvisei à guisa de tacho. Uma menina sentou-se perto de Cazuza e eles começaram a conversar. Terminei meu trabalho e num bowl forrado com papel toalha tirei o excesso de óleo que as fritas porventura tivessem. Servi num prato oval acompanhado de um saleiro e um frasco de Ketchup. Seus olhos brilharam.
Mas sua paciência talvez tenha se esgotado umas cinco batatinhas depois. A próxima cena que vi foi um Cazuza arisco e nervoso saindo da cozinha andando de costas como um siri bravo e falando alto pra garota:
'- Viado merrmo, falô? Viado merrmo! E aposto que tu nunca viu um maior que eu!
Lindo e puto da vida naquela camiseta cor-de-rosa! As fritas? Nem sei que fim levaram. Sinceramente não me lembro se alguém comeu. Cazuza? Deve ter vazado no mundo logo após. Alguns anos depois, já no AeroAnta, cartazes anunciavam seu show Ideologia e que ele cancelou por problemas de saúde. Algum tempo depois, quando eu já não trabalhava mais lá, ele voltou revigorado por um tratamento que iniciara no exterior e mostrou seu Ideologia para uma plateia bem mais agradável que aquela garota que o impediu de comer suas batatas fritas aquela noite. Seguranças amigos meus me disseram algum tempo depois que ele, mesmo doente e muito abatido, fumou um baseado imenso com eles depois do show. Bicha doida...
Nunca mais vi Cazuza. Achei corajosa e artisticamente audaciosa a forma como ele expôs sua dura realidade na MPB. Poucos teriam agido assim. Ele fez de seu sangue poluído um grito de vitória consigo mesmo.
Veio a falecer num sete de julho, ironicamente dia do meu aniversário. Nós somos do mesmo ano. 58. Para mim foi um presente saber que sua longa batalha tivesse chegado ao fim. Acho que todos os brasileiros sofreram amargamente sua agonia, gostassem dele ou não. Quanto a mim, continuo agradecendo eternamente a canja que Cazuza me deu em poder fazer-lhe um sanduíche para que matasse sua fome.
A outra fome que ele sentia, essa não havia com certeza cozinheiro algum no mundo que pudesse saciar, a fome que talvez sentisse de ser ele mesmo, coisa de que tratou como raras estrelas fariam. Cazuza virou a partir de então um nome de constelação no grande céu de todos nós. Um beijo, baby! Te vejo no próximo cometa!

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