domingo, 15 de setembro de 2013

Araraquara, a Morada do Sol, da Lua e das Estrelas...um Céu Inteiro



   Araraquara vem do guarani 'Aracoara' e significa 'Morada do Sol'. Eu tenho um caso de amor com essa cidade. Trago nas retinas o postal da grande catedral de cúpula prateada insultando um céu inenarrável e nas narinas o prana da Cutrale espargindo cheiro de doce de laranja pelas ruas em finais de tarde.
   Fui seminarista da Congregação do Verbo Divino. Lá eu tive aula de Latim com um padre alemão que era um gênio, Ioachim Piepcke. Com 28 anos de idade ele falava 7 línguas. O primeiro exemplar de Grande Sertão: Veredas que vi na minha vida, àquela época ainda um mistério insondável para mim, foi em sua estante interessantíssima que dispunha ainda de Goethe, Drumond e uma grande Bíblia em... Hebraico! Foi um período de ouro. 
   Havia um jornal interno no qual eu colaborava semanalmente com minhas poesias da época. Nossa mãe era um negão que era o fino da bossa: Irmão Sávio Pires André. Um nego escolado, com um português impecável e quem me incentivou demais a escrever. Mas eu escrevia antes. Escrevi meu primeiro poema com oito anos. Chamava-se "Márcia", o nome de uma menina com quem eu brincava de bonecas e fazia as vozes de todas elas! 
   Houve uma época antes de ir para lá em que eu comecei a ir muito mal na escola. Notas aquém de péssimas. Mas o professor de Português lia minhas redações diante de toda classe que olhava desconfiada para aquele pobretão sentado no fundo da sala, entre envergonhado e orgulhoso. 
   Esse fato me deu depois muita confiabilidade para escrever. Não importava o quanto fosse incapaz para outras matérias, tinha certeza que sabia escrever bem. O processo que ocorre hoje quando crio algo escrito, àquela época já mostrava as garras. Uma das redações tinha como tema a Cidade de São Paulo. Lembro que me situei no tempo romanticamente pensando nas Entradas&Bandeiras explorando a selva através dos rios. No meio da história vi que  meu enredo era muito pobre e estendi então minha narrativa até o ano 2000. A redação terminava com lambretas voadoras e sabe lá Deus o quê mais nos céus da cidade. Treze anos passados da minha previsão e o que se vê voando hoje, fora aviões e helicópteros, são balas perdidas... Como profeta eu não teria futuro algum.
   Mas voltando ao Seminário, devo dizer que uma das grandes 'sacadas' deles era a de que nós estudávamos fora das instalações. Estudei em dois colégios em Araraquara, no Duque de Caxias e no Colégio Progresso, este, parte essencial na história da minha vida de artista e bandido.
   Em 1973, morreu o fundador do Colégio Duque de Caxias. Como éramos alunos e seminaristas, comparecemos em peso à missa de corpo presente e depois ao enterro, no grande cemitério da cidade onde tenho duas jóias preciosas com histórias totalmente distintas a sete túmulos de diferença uma da outra. Mas essa parte fica para uma outra ocasião.
   O Irmão Sávio, sempre inteirado na vida cultural do país, leitor assíduo de grandes jornais nos alertara que um dos filhos do falecido fundador era um diretor de teatro famoso na capital paulista. Até aí tudo bem...
   Na missa da Igreja Matriz, antes do féretro, percebi um grupo de pessoas meio doidas, parecendo hippies, ocupando os primeiros assentos da nave. Ao final da liturgia, o padre cedeu espaço à palavra de um dos filhos do fundador daquela instituição. E levanta-se o Senhor José Celso Martinez Correa, de colete branco, sem camisa por baixo e calcas de cetim roxas. Suas palavras chocaram os presentes. Ele disse que em algum lugar no além, ele e seu pai sempre estariam juntos. Chegaram a me dizer que aquilo era uma heresia. No cemitério percebi que ele usava tamancos brancos, combinando com seu colete, a prova de balas, no mínimo. Um séquito de malucos o acompanhava. 
   É mais ou menos dessa época a controvertida e venerada montagem do Zé para o texto de Oswald de Andrade "O Rei da Vela". Soube que quando o espetáculo terminou a temporada em São Paulo, Zé Celso e sua legião de maconheiros foram ao túmulo de Oswald, no Cemitério da Consolação para queimar os restos do cenário da peça. Eu sempre quis contar isso para ele mas aquele bicho é tão doido e tão falastrão que não teria ouvidos para escutar nada que não tratasse de seus heróis malditos. 
   Outro Araraquarense (biscoito fino, já esse!) é Inácio de Loyola. Cruzei uma vez com este no Riviera e pedi para dizer um poema para ele. É um dos meus "Poemas da Infâmia". Não está no blog e nunca estará. Ele ouviu e educadamente me pediu que deixasse uma cópia em seu nome na Livraria Cultura. Nunca o fiz. 
   Caio Fernando Abreu, a quem conheci e que me adorava, enlouqueceu quando li esse poema para ele. Ele quis usar a primeira estrofe como epígrafe de um livro que estava por lançar mas eu não permiti. Taqui o bicho:

Habeas Corpus

Veio um dragão
pousado em meu paraíso
trazer tolos enigmas
cifrados a ouro e prata.

Não pude perceber seu voo em brasas.
Meu delírio até então, era consequência de estar só.

Eu procurava, desta maneira frágil e rastejante
fórmulas fáceis para esquecer o medo
mas cada tremer de folhas me aterrorizava, e pronto! 

Eu copulava febril, o rastro dos vermes,
rabiscando paredes 
com o excremento dos seres miseráveis.

Não pude decifrar essa mensagem.
Nuvens colidiram o local e pássaros emudeceram.

Era agora!
Era o bote! 

Revi tudo em oito segundos
e a serpente me engoliu.

   Escrevi isso num só golpe. Num puteiro em Ribeirão Preto em 1984.
Nunca mudei uma vírgula. Nunca esqueci esse lixo. É bonito mas não vale nada.
O livro de Caio Fernando é um dos piores que ele escreveu: Os Dragões não conhecem o Paraíso.
Não acho que fiz mau negócio negando quatro versos brilhantes mas idiotas.
Caio Fernando teve uma crise de depressão após o lançamento de "Os Dragões". Uma vez ao telefone ele me disse que estava mal porque evocara no texto muitos amigos que já tinham partido. 
Caio escreveu textos belíssimos até pouco antes de morrer, em sua coluna semanal no Caderno 2 do Estadão.
Esses sim, dignos de uma coletânea! Mas escreveu outras coisas lindas também.
   Quando Clarice Lispector foi a Porto Alegre para uma conferência na Universidade onde Caio Fernando estudou, ele foi até o hotel onde ela estava hospedada para conversar a autora que, como muitos, venerava de paixão. Sentaram-se à mesa para um café e ele todo envergonhado - ainda não era o jovem brilhante que editou "Morangos Mofados"- olhava para Clarice que fumava compulsivamente sem dirigir-lhe uma palavra sequer. Depois de um longo tempo, ela fixou nele seus olhos de gato e num relance felino perguntou assim meio blasé, como quem não fizesse mesmo questão de nada: "- Qual é mesmo o nome dessa cidade?"
E fazia três dias que Clarice estava lá. 



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