Araraquara
vem do guarani 'Aracoara' e significa 'Morada do Sol'. Eu tenho um caso
de amor com essa cidade. Trago nas retinas o postal da grande
catedral de cúpula prateada insultando um céu inenarrável e nas
narinas o prana da Cutrale espargindo cheiro de doce de laranja pelas
ruas em finais de tarde.
Fui
seminarista da Congregação do Verbo Divino. Lá eu tive aula de
Latim com um padre alemão que era um gênio, Ioachim Piepcke. Com 28
anos de idade ele falava 7 línguas. O primeiro exemplar de Grande
Sertão: Veredas que vi na minha vida, àquela época ainda um
mistério insondável para mim, foi em sua estante interessantíssima
que dispunha ainda de Goethe, Drumond e uma grande Bíblia em...
Hebraico! Foi um período de ouro.
Havia um jornal interno no qual eu
colaborava semanalmente com minhas poesias da época. Nossa mãe era
um negão que era o fino da bossa: Irmão Sávio Pires André. Um
nego escolado, com um português impecável e quem me incentivou
demais a escrever. Mas eu escrevia antes. Escrevi meu primeiro poema
com oito anos. Chamava-se "Márcia", o nome de uma menina
com quem eu brincava de bonecas e fazia as vozes de todas elas!
Houve
uma época antes de ir para lá em que eu comecei a ir muito mal na
escola. Notas aquém de péssimas. Mas o professor de Português lia
minhas redações diante de toda classe que olhava desconfiada para
aquele pobretão sentado no fundo da sala, entre envergonhado e orgulhoso.
Esse fato me deu depois muita confiabilidade para escrever. Não importava o quanto fosse incapaz para outras matérias, tinha certeza que sabia escrever bem. O processo que ocorre hoje quando crio algo escrito, àquela época já mostrava as garras. Uma das redações tinha como tema a Cidade de São Paulo. Lembro que me situei no tempo romanticamente pensando nas Entradas&Bandeiras explorando a selva através dos rios. No meio da história vi que meu enredo era muito pobre e estendi então minha narrativa até o ano 2000. A redação terminava com lambretas voadoras e sabe lá Deus o quê mais nos céus da cidade. Treze anos passados da minha previsão e o que se vê voando hoje, fora aviões e helicópteros, são balas perdidas... Como profeta eu não teria futuro algum.
Mas voltando
ao Seminário, devo dizer que uma das grandes 'sacadas' deles era a
de que nós estudávamos fora das instalações. Estudei em dois colégios em
Araraquara, no Duque de Caxias e no Colégio Progresso, este, parte
essencial na história da minha vida de artista e bandido.
Em
1973, morreu o fundador do Colégio Duque de Caxias. Como éramos
alunos e seminaristas, comparecemos em peso à missa de corpo
presente e depois ao enterro, no grande cemitério da cidade onde
tenho duas jóias preciosas com histórias totalmente distintas a
sete túmulos de diferença uma da outra. Mas essa parte fica para
uma outra ocasião.
O
Irmão Sávio, sempre inteirado na vida cultural do país, leitor
assíduo de grandes jornais nos alertara que um dos filhos do
falecido fundador era um diretor de teatro famoso na capital
paulista. Até aí tudo bem...
Na
missa da Igreja Matriz, antes do féretro, percebi um grupo de
pessoas meio doidas, parecendo hippies, ocupando os primeiros
assentos da nave. Ao final da liturgia, o padre cedeu espaço à
palavra de um dos filhos do fundador daquela instituição. E
levanta-se o Senhor José Celso Martinez Correa, de colete branco,
sem camisa por baixo e calcas de cetim roxas. Suas palavras chocaram
os presentes. Ele disse que em algum lugar no além, ele e seu pai
sempre estariam juntos. Chegaram a me dizer que aquilo era uma
heresia. No cemitério percebi que ele usava tamancos brancos,
combinando com seu colete, a prova de balas, no mínimo. Um séquito
de malucos o acompanhava.
É mais ou menos dessa época a
controvertida e venerada montagem do Zé para o texto de Oswald de
Andrade "O Rei da Vela". Soube que quando o espetáculo
terminou a temporada em São Paulo, Zé Celso e sua legião de
maconheiros foram ao túmulo de Oswald, no Cemitério da Consolação
para queimar os restos do cenário da peça. Eu sempre quis contar
isso para ele mas aquele bicho é tão doido e tão falastrão que
não teria ouvidos para escutar nada que não tratasse de seus heróis
malditos.
Outro Araraquarense (biscoito fino, já esse!) é Inácio de Loyola. Cruzei uma vez com este no Riviera e pedi para
dizer um poema para ele. É um dos meus "Poemas da Infâmia".
Não está no blog e nunca estará. Ele ouviu e educadamente me pediu que deixasse uma
cópia em seu nome na Livraria Cultura. Nunca o fiz.
Caio Fernando
Abreu, a quem conheci e que me adorava, enlouqueceu quando li esse
poema para ele. Ele quis usar a primeira estrofe como epígrafe de um
livro que estava por lançar mas eu não permiti. Taqui o bicho:
Habeas
Corpus
Veio
um dragão
pousado
em meu paraíso
trazer
tolos enigmas
cifrados
a ouro e prata.
Não
pude perceber seu voo em brasas.
Meu
delírio até então, era consequência de estar só.
Eu
procurava, desta maneira frágil e rastejante
fórmulas
fáceis para esquecer o medo
mas
cada tremer de folhas me aterrorizava, e pronto!
Eu
copulava febril, o rastro dos vermes,
rabiscando
paredes
com
o excremento dos seres miseráveis.
Não
pude decifrar essa mensagem.
Nuvens
colidiram o local e pássaros emudeceram.
Era
agora!
Era
o bote!
Revi
tudo em oito segundos
e
a serpente me engoliu.
Escrevi
isso num só golpe. Num puteiro em Ribeirão Preto em 1984.
Nunca
mudei uma vírgula. Nunca esqueci esse lixo. É bonito mas não vale
nada.
O
livro de Caio Fernando é um dos piores que ele escreveu: Os Dragões
não conhecem o Paraíso.
Não
acho que fiz mau negócio negando quatro versos brilhantes mas
idiotas.
Caio Fernando teve uma crise de depressão após o lançamento de "Os Dragões". Uma vez ao telefone ele me disse que estava mal porque evocara no texto muitos amigos que já tinham partido.
Caio
escreveu textos belíssimos até pouco antes de morrer, em sua coluna
semanal no Caderno 2 do Estadão.
Esses
sim, dignos de uma coletânea! Mas escreveu outras coisas lindas também.
Quando
Clarice Lispector foi a Porto Alegre para uma conferência na
Universidade onde Caio Fernando estudou, ele foi até o hotel onde
ela estava hospedada para conversar a autora que, como muitos, venerava de
paixão. Sentaram-se à mesa para um café e ele todo envergonhado -
ainda não era o jovem brilhante que editou "Morangos Mofados"-
olhava para Clarice que fumava compulsivamente sem dirigir-lhe uma
palavra sequer. Depois de um longo tempo, ela fixou nele seus olhos
de gato e num relance felino perguntou assim meio blasé, como quem não fizesse mesmo questão de nada: "- Qual é
mesmo o nome dessa cidade?"
E fazia
três dias que Clarice estava lá.
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