sábado, 14 de setembro de 2013

Romãs


Romãs...


 13.09.13
Todas as sextas-feiras tenho um trabalho numa casa alta que tem uma vista belíssima de uma das partes do grande Vale Iemenita de Ein Karem.
Num pequeno intervalo entre um cozido e um assado, fui até a larga varanda de madeira para apreciar os morros ao longe e invariavelmente meu olhar se deteve numa romãzeira carregada de frutos, logo abaixo na colina.
É muito interessante quando uma árvore tem frutas vermelhas. Com o verde das folhas, o carmim dos frutos salta aos nossos olhos. Verde e vermelho são duas cores complementares que devem ser usadas com parcimônia e sabedoria numa pintura. Senão sujam-se uma à outra. Veja alguma coisa em laranja e azul, outras duas cores complementares, repare como há um efeito estroboscópico que surge delas. Os tapeceiros são sábios no uso dessas cores. 
Foi Van Gogh o primeiro a explorar escandalosamente esse recurso. Sempre meu amado Vincent... Mas mire-veja como Van Gogh brinca com os verdes e vermelhos, com laranjas e azuis e violáceos e amarelos. Demônio ruivo que ele foi com pretensões de anjo caído. Criou em seu conflito violento-violáceo, telas que funcionam como um berço de aconchego onde você quer irremediavelmente viver dentro. Amado Vincent... Talvez ele também quisesse se transformar numa de suas pinturas. Não se poupou nem de orelha cortada para se meter num auto-retrato abusadamente isento de autocrítica. Carimbado no canvas.
E claro, olhando as romãs lembrei de você e da sua questão sobre elas. 
Vi ontem pela manhã, flores azuis celim brotando do chão, numa fresta casual por entre as pedras da rua. Quanto as flores podem ser sutis em meio às pedras, como elas sabem por onde surgir, por onde chegar à sua superfície de expressão para contar sobre um jogo puro de cor e coragem.
Sempre admirei essa natureza  do Oriente Médio, mas agora ela divide seu cotidiano comigo. É diverso. Há um diálogo. Cumplicidade. Assim como os flamejantes flamboyants nas praças mornas de Araraquara. Uma linguagem entre árvores e homens. Dois seres humanos não podem chegar a conclusão alguma sobre isso. Mas você, Diadorim, e as árvores, sabem muito bem do que falam entre si, do que sentem, de quê se calam, qual mistério compartilham dia após dia, por que porquês respondem-se em silêncios de respostas...
Romãs queimando vermelhos de insistência, incêndios de fertilidade, condenação de perséfones e prosérpinas, lenda de tudo! (Você está vendo muito bem [arrepare! arrepare!] que as palavras não me autuam, libertam-me outrossim, vítima já redenta desse júri semântico de sentidos despudorados que vão arrancando toda minha roupa, mudando toda minha indumentária inicial para me deixar nu em pelo diante da platéia assombrada, striptease verbal sem qualquer controle.
E tudo porque eu quis falar inocentemente de anônimas romãs durante uma visão quase ingênua... que destino insólito o de fazer amor com as palavras... elas me fazem gozar sem usar a língua...
Mas falando em Verbo... Quando o Sr. Verbo, o bigodudo aquele que orientou Moisés deserto afora, deu a letra de como Ele queria que se construíssem a Arca da Aliança, o altar, o castiçal e o manto sacerdotal, e que nesse caso seria de Aarão, para este manto Deus pediu que se bordassem na bainha, romãs intercaladas por pequenos sinos, para que o tilintar destes, quando o oficiante adentrasse o templo, fizesse soar um lembrete de vida, bem como à sua saída. (Êxodo - 28-31,35)
Há onze passagens no Antigo Testamento em referência a essa fruta. Nos Evangelhos, não existe de todo. Nada a respeito. Ela está conectada à fertilidade também, pela sua profusão exacerbada de sementes. Salomão fala dela de forma bem erótica no Cântico dos Cânticos, para mim um dos livros mais esotéricos e libertadores do Antigo Testamento. A analogia entre o Amado e a Amada seria usada abertamente pelos grandes poetas sufis como Jalaluddin Rumi e Hafiz. Você gosta de Rumi, Diadorim? Sabe que Rumi é o poeta mais lido na América hoje? 
Para os semitas a romã é um dos sete pilares (Shivata Minim) da cultura da terra: Oliveira, Mel, Uva, Figo, Romã, Trigo e Cevada. Em todo o Oriente Médio você toma suco de romã feito na hora em plena rua. O suco é maravilhoso! Quase preto! Magenta, pra ser mais exato, a mãe do vermelho! É meio 'sour', ácido e salgado, o que pronuncia seu sabor adocicado no palato.
Elas são também um símbolo de Abundância, Sabedoria e Bênção. No Ano novo Judaico, um dos mandamentos à mesa pede que se comam sementes de romã, assim como maçãs embebidas em mel. É lindo. Elas crescem por todos os lados. No Egito são ainda mais suculentas e tem um sumo mais escuro. São densas, alcançam os tabuleiros em carmim nos mercados como se explodissem exuberância de beijos não dados.
Há um extrato de romãs, que uso juntamente com ervas e especiarias para temperar e assar frangos que derretem na sua boca. Esse extrato também pega bem em carne de porco, que particularmente não como, mas sei fazer bem. Uso junto com anis estrelado, pimenta jamaica e zimbro em lombo suíno. Há no Brasil uma  ou mais marcas de produtos árabes, se não estou equivocado. Eles têm produtos interessantíssimos que você encontra em alguns Supermercados. Você pode achar água de flor de laranjeira, xarope de  romã e água de rosas, bem como tahine, zátar e alguns enlatados. Esse xarope faz um molho legal para saladas. Aqui você usa 1 Colher de Sopa dele, 1Colher de chá de mostarda em pó, sal, açúcar ou mel, limão, shoyo, algumas gotas de óleo de gergelim e azeite. Mas tudo isso é bruxaria do velho. Segredo nosso.
 Bem, claro que tenho que ilustrar este e-mail com algumas aquarelas. Enviei uma não terminada e que assim ainda está. Mas há uma menor que talvez você não tenha visto. Tirei algumas fotos de aquarelas que estão nas minhas paredes e em pastas. Mas há junto um grafite de um carvalho que eu amo. Ele ficava num campo de mostarda há vinte minutos de bike da colina em que morava em Oregon House, CA. Costumava ir até lá algumas tardes ler Walt Whitman para ele. Principalmente...:
"I saw in Louisiana a live-oak growing,
All alone stood it, and the moss hung down from the branches;
Without any companion it grew there, uttering joyous leaves of dark green,
And its look, rude, unbending, lusty, made me think of myself;
But I wonder'd how it could utter joyous leaves, standing alone there, without its friend, its lover near - for I knew I could not;"
...Por algum motivo especial jamais cheguei perto desse grande carvalho. Estar diante dele era ter a visão de uma sarça ardente antes da combustão para Moisés. Vê-lo de longe era ter a dimensão de sua solidão perdida na imensidão daquele campo e que no verão forrava-se num tapete amarelo de flores de mostarda onde meu carvalho era um imperador solitário, nobre, quase sagrado...
Ainda choro de saudades dele quando leio esse poema do velho Walt. Os anos se passaram e suas raízes poderosas ainda crescem no meu peito...
Mas tudo o que conversei com ele, um ser humano jamais entenderia... nem eu mesmo poderia repetir... e talvez quando leia o poema de Walt Whitman falando do carvalho solitário na Louisiana, seja na verdade a voz daquela velha árvore quem conversa comigo, que chora e encosta sua ramagem no meu ombro me dizendo que fui seu único amigo, seu único escudeiro, seu companheiro fiel das tardes inesquecíveis que passamos na empoeirada Rice's Crossing Texas Road, em Oregon House, CA.

Todo meu Amor. Com lágrimas nos olhos e o coração apertado de saudades da minha árvore solitária... Seu no Dharma. C.


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