Rita
Lee e o Doce Proibido
Essa
vale a pena ser contada no blog, Antonio! Quem falou isso pra você?
A verdade é que algumas vezes eu cruzei a Rita de esbarrão, sim!
Tinha visto shows dela nos anos 70. Talvez os melhores de que posso
me lembrar. Logo que voltei do Seminário, em 75, a Rita lançou sua
obra prima “Fruto Proibido”. Linda! Vi o show no Teatro Aquarius,
desativado hoje para ser uma Igreja Evangélica. É mole? Vamos
lembrar que neste teatro Altair Lima levou sua montagem histórica de
“Hair” com Armando Bogus, Aracy Balabanian e Sônia Braga, ainda
uma desconhecida à época e que ganhou o papel porque a coreógrafa
do espetáculo era Márika Gidali que por alguma razão gostou da
Sônia. É irônico que no mesmo espaço onde a galera tirou toda a
roupa e cantou “deixa o sol entrar” seja hoje palco de algo bem
menos religioso.
A
Rita surgia linda, com um bastão prateado de baliza que ela manejava
como uma artista de circo nos primeiros acordes de “O Toque”. Na
hora exata de ela começar a cantar o bastão se abria em dois e uma
chuva de purpurina voava sobre ela que iniciava: 'Abri as janelas, um
sol diferente entrou...' Essa coisa visionária da Rita nos pequenos
detalhes e que ela já trouxe pronto, como uma artista mais que
performática, não somente uma cantora pop. A Rita sempre soube
fazer as coisas direitinho! Bobos dos irmãos Batista que não
souberam avaliar o potencial daquela garota ruiva mil anos luz
adiante deles!
Foi
meu segundo show de rock, Antonio! O primeiro tinha sido o do Ney
Matogrosso, recém-saído dos Secos e Molhados no Teatro Treze de
Maio. Um escândalo! Uma banda maravilhosa de excelentes músicos
liderados por Márcio Montarroyos. E o Ney lindo aos 32 anos de idade
botando pra quebrar em cima de um palco que não tinha mais que 30 cm
de altura a mais que o chão da plateia. Havia um pequeno tablado que
se sobressaía além do palco onde ele vinha fazer estripulias de vez
em quando. Os fanáticos, como eu aos 16, sentavam-se no chão para
ficar perto do palco. No teatro havia cheiro de defumador de Umbanda.
Dava um clima todo mágico e natural. Matogrosso... Ele suava muito.
Quando caía suor no chão deste tablado, algumas pessoas tocavam as
gotas e se benziam. Havia uma catarse ali. Ney era tanto uma
revelação quanto um escape para muitos de nós.
E
detalhe: com dois policiais militares um em cada lado do palco. Isso
não impedia Ney de se acabar de orgasmo num poste onde terminava a
música 'Idade do Ouro', por exemplo! Era a própria imagem da
situação política do país. Aquele cabaret de luxúria e bom gosto
do Matogrosso ladeado pela polícia de plantão, ali congelada
enquanto ele atuava, cantava, suava e entorpecia nossos sentidos.
Toda a direção bem resolvida que minha sexualidade tomou, sem
medos, cor de rosa e feliz, eu devo ao Ney. Ney e Caetano Veloso. Foi
muito importante para mim ter a referência do Ney para encarar minha
homossexualidade, isso numa época muito dura, quando ser bicha era
uma vergonha! Mas o Caetano e os Dzi Croquetes tinham aberto o
caminho a purpurina já!
E
por falar em purpurina...foi onde eu parei falando da Rita, né?
Ok.
Passaram-se os anos e eu era garçom no AeroAnta. Essa casa foi
histórica mesmo! O primeiro show de verdade da Marisa Monte em
Sampa. Ela havia cantado numa temporada minúscula no palco do Masp
algum tempo antes, pelo que sabia de amigos que faziam mesa de som.
Mas Marisa Monte no AeroAnta, já produzida pelo Nelsinho Gênio
Motta foi de arrebentar tudo. Casa lotada a semana toda. Você olhava
o mezanino acima do palco e lá estavam todos os Titãs, os meninos
do Tutti Frutti, atores famosos, Luni ainda com Mariza Orth,
starlets, tietes e o caralho a quatro! Todo mundo que era 'in' ou
pensava que fosse, estava lá.
O
lance é que o AeroAnta era um depósito de batatas desativado com um
salão imenso próprio para estocagem desse tubérculo onde foi
montado um balcão ondulante que começava no bar ao fundo, percorria
toda a extensão do espaço que atendia uma área de perto de
cinquenta mesas do restaurante com uma cozinha aberta e um outro bar
que ao contrário do primeiro, atendia clientes que não estavam ala
carte, ou seja, a malucada que só queria dançar, beber e assistir
aos shows.
A
casa faturou horrores naquela semana! A peãozada que só tinha olhos
para os dez por cento no dia da caixinha estava idolatrando Marisa
sem saber ainda que ela seria a única deusa de verdade a
compartilhar o mesmo pedestal que Maria Bethania e Gal Costa. Os
mortais que me perdoem!
Mire-veja!
No último dia, depois do espetáculo, Marisa toda linda numa
roupinha escolhida a dedo no seu guarda-roupa de gatinha, numa boina
marrom cheia de pinta, passou a extensão toda do comprido balcão do
AeroAnta agradecendo um a um todos nós que trabalhamos aquela semana
junto com ela. Lindo, hein? Só uma guria dessas pra ter a audácia
de engrandecer anos depois, como poucos, toda a negrada genial da
Portela e deitar seus olhos maravilhosos num tesouro quase esquecido.
É diva ou não é? Das raras!
Numa
dessas, a Rita num momento em que dizia ia deixar o Brasil foi fazer
um show de despedida no Aero. Numa casa onde só cabiam 500 pessoas a
Rita atulhou mais de 1000. Você não se mexia lá dentro. Abarrotado
de gente doida. Uma galera estranha. Pra me proteger, trabalhei toda
a noite com uma embalagem de Green Champa dentro da minha camisa pra
espantar todo aquele vodu. A Rita andava magoada com a crítica por
causa de umas matérias que o Luiz Antonio Giron escrevera a respeito
do último trabalho dela. Ela dizia que ia embora para a França.
Quando chegava no começo da noite para passar o som com os músicos
ela invariavelmente dizia: “Bon soir!” Estilosa que só!
E
num desses finais de noite cruzo a Rita no mesmo mezanino com um
gorro branco de pele sobre aquele cabelo Vermelhão O'Toole dela! Não
me fiz de rogado. Saquei meu incenso legitimamente indiano e dei para
ela: Ó, é pra você!
Ela
olhou a embalagem e disse: 'Ahh! Esse eu não conhecia!'
É
tudo. Vazei! Oito anos passados e eu era vendedor de livros na Horus,
em Sampa. Ali tinha de entender do riscado. Àquela época não havia
Amazon Books e todo o comércio de livros importados era feito pelos
donos das livrarias. As importações da Horus eram memoráveis. Os
clientes também. A proprietária desse lugar era uma judia tão
esperta que terminou por vender a Horus quando o babado da Amazon
começou e foi viver na praia de Itapuã na Bahia, onde abriu a
Editora Horus e traduziu o monumental “Relatos de Belzebú a seu
Neto” de G.I. Gurdjieff. Coisa que o Instituto em vinte e sete anos
no Brasil jamais conseguiu levar a cabo. Nem dava. Dr. Marcel Horandi
bem que tentou. Mas talvez ele não tivesse da Instituição o
suporte de que precisava. E a edição dela é luxo só. Capa de
couro e tudo. Supimpa! Ela editou outras grandes obras da literatura
do Quarto Caminho. É uma mulher inteligentíssima. As cadeiras
douradas do Instituto Gurdjieff tiveram de engolir sem mastigar.
Já
de posse de Juan Ferré, um anjo de homem, hoje no céu, a Horus
continuou mais alguns anos. E numa bela tarde, no décimo segundo
andar de um edifício da Bela Cintra, surgem Rita Lee Jones e
Roberto de Carvalho, para comprar livros. Ofereci um café mas ela
declinou educadamente respondendo: 'Não, obrigada, meu bem!'
Essa de chamar de meu
bem é bem
Rita Lee mesmo. Me senti dentro de uma música dela.
Rita
procurava dentre outras coisas um livro que tratasse das diversas
Yogas. Sugeri que ela desse uma olhada em “Um Novo Modelo do
Universo”, de P.D. Ouspensky. Disse-lhe que o capítulo que
tratava das diversas modalidades de Yoga era relativamente curto mas
que havia um material interessantíssimo permeando toda a obra,
principalmente 'Civilização e Barbárie' e o capítulo onde
Ouspensky trata dos Evangelhos. A parte de Tarot também era digna de
nota, já que o autor com sua sabedoria de matemático fisga
percepções que eu nunca vira em qualquer obra que discorresse sobre
o assunto.
Rita
folheou o exemplar atentamente e o colocou junto à sua pilha de
outros livros dispostos já então sobre minha mesa.
Passado
um tempo ela traz à mesa um Collin Wilson que tenta fazer um ensaio
sobre a vida e a obra de Gurdjieff e Ouspensky. Um verdadeiro lixo de
livro, Antonio! À queima roupa lhe disse: - Esse livro não vale
nada!
E
a nossa mais completa tradução, como uma garotinha me
perguntou: 'Por que?'
Porque
o livro, Rita, trata de denegrir a imagem e o trabalho desses homens
apoiado no argumento de que ao final da vida eles eram pessoas,
digamos, desapontadas com o que haviam buscado. O que mostra a
burrice e falta de compreensão desse autor.
'Você
é bem enfronhado com essa rapaziada, não?' perguntou
gentilmente...
-
Sou, Rita, tudo o que consegui como ser humano, se é que realmente
consegui alguma coisa, devo a esse trabalho do Quarto Caminho e do
qual Gurdjieff e Ouspensky são os maiores expoentes. Esse livro do
Collin Wilson não vale nada! Não compra isso!
Ela
levou o livro de volta à estante e voltou depois para me perguntar
se eu conhecia alguma coisa de um autor chamado Benjamim Creme.
Não,
não conheço nada dele. Do que trata especificamente?
Basicamente
sobre a vinda de Maitreya.
Mas
essa Rita Lee, hein, Antonio? Maitreya, se não estou enganado, tem
conexões com o advento de um Buddha e a nova veiculação do Budismo
Mahayana. De onde essa garota foi tirar tanta esperteza? A Rita sabe
das coisas!
Perguntei
a ela como se escrevia o nome desse autor. Ela anotou para mim num
pedaço de papel que guardei na carteira por alguns anos com sua
caligrafia límpida e bem talhada, uma letra muito bonita!
A
livraria vendia naquele tempo um incenso muito bom e artesanal feito
por alunos do De Rose. Dei novamente uma embalagem de incenso para
ela. E claro, não comentei nada sobre o Green Champa, ainda meu
incenso favorito até hoje. Não ia tomar o tempo precioso dela com
as minhas loucas coincidências. Eu já estava mais que feliz por ter
vendido um livro tão legal para ela, que me fez feliz com todo o
rock'n'roll que compôs com a maestria e leveza de uma sempre musa.
Sobre a pilha de livros de Rita havia uma embalagem do mesmo incenso
que ela já havia reservado para sua compra.
A
parte restante da história? Conto num outro e-mail, tá legal? A Rita de Ovelha Negra e eu sendo Lobo Mau. Prometo. Com todo Amor. C.
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