terça-feira, 24 de setembro de 2013

Rita Lee e o Doce Proibido




Rita Lee e o Doce Proibido


Essa vale a pena ser contada no blog, Antonio! Quem falou isso pra você? A verdade é que algumas vezes eu cruzei a Rita de esbarrão, sim! Tinha visto shows dela nos anos 70. Talvez os melhores de que posso me lembrar. Logo que voltei do Seminário, em 75, a Rita lançou sua obra prima “Fruto Proibido”. Linda! Vi o show no Teatro Aquarius, desativado hoje para ser uma Igreja Evangélica. É mole? Vamos lembrar que neste teatro Altair Lima levou sua montagem histórica de “Hair” com Armando Bogus, Aracy Balabanian e Sônia Braga, ainda uma desconhecida à época e que ganhou o papel porque a coreógrafa do espetáculo era Márika Gidali que por alguma razão gostou da Sônia. É irônico que no mesmo espaço onde a galera tirou toda a roupa e cantou “deixa o sol entrar” seja hoje palco de algo bem menos religioso.
A Rita surgia linda, com um bastão prateado de baliza que ela manejava como uma artista de circo nos primeiros acordes de “O Toque”. Na hora exata de ela começar a cantar o bastão se abria em dois e uma chuva de purpurina voava sobre ela que iniciava: 'Abri as janelas, um sol diferente entrou...' Essa coisa visionária da Rita nos pequenos detalhes e que ela já trouxe pronto, como uma artista mais que performática, não somente uma cantora pop. A Rita sempre soube fazer as coisas direitinho! Bobos dos irmãos Batista que não souberam avaliar o potencial daquela garota ruiva mil anos luz adiante deles!
Foi meu segundo show de rock, Antonio! O primeiro tinha sido o do Ney Matogrosso, recém-saído dos Secos e Molhados no Teatro Treze de Maio. Um escândalo! Uma banda maravilhosa de excelentes músicos liderados por Márcio Montarroyos. E o Ney lindo aos 32 anos de idade botando pra quebrar em cima de um palco que não tinha mais que 30 cm de altura a mais que o chão da plateia. Havia um pequeno tablado que se sobressaía além do palco onde ele vinha fazer estripulias de vez em quando. Os fanáticos, como eu aos 16, sentavam-se no chão para ficar perto do palco. No teatro havia cheiro de defumador de Umbanda. Dava um clima todo mágico e natural. Matogrosso... Ele suava muito. Quando caía suor no chão deste tablado, algumas pessoas tocavam as gotas e se benziam. Havia uma catarse ali. Ney era tanto uma revelação quanto um escape para muitos de nós.
E detalhe: com dois policiais militares um em cada lado do palco. Isso não impedia Ney de se acabar de orgasmo num poste onde terminava a música 'Idade do Ouro', por exemplo! Era a própria imagem da situação política do país. Aquele cabaret de luxúria e bom gosto do Matogrosso ladeado pela polícia de plantão, ali congelada enquanto ele atuava, cantava, suava e entorpecia nossos sentidos. Toda a direção bem resolvida que minha sexualidade tomou, sem medos, cor de rosa e feliz, eu devo ao Ney. Ney e Caetano Veloso. Foi muito importante para mim ter a referência do Ney para encarar minha homossexualidade, isso numa época muito dura, quando ser bicha era uma vergonha! Mas o Caetano e os Dzi Croquetes tinham aberto o caminho a purpurina já!
E por falar em purpurina...foi onde eu parei falando da Rita, né?
Ok. Passaram-se os anos e eu era garçom no AeroAnta. Essa casa foi histórica mesmo! O primeiro show de verdade da Marisa Monte em Sampa. Ela havia cantado numa temporada minúscula no palco do Masp algum tempo antes, pelo que sabia de amigos que faziam mesa de som. Mas Marisa Monte no AeroAnta, já produzida pelo Nelsinho Gênio Motta foi de arrebentar tudo. Casa lotada a semana toda. Você olhava o mezanino acima do palco e lá estavam todos os Titãs, os meninos do Tutti Frutti, atores famosos, Luni ainda com Mariza Orth, starlets, tietes e o caralho a quatro! Todo mundo que era 'in' ou pensava que fosse, estava lá.
O lance é que o AeroAnta era um depósito de batatas desativado com um salão imenso próprio para estocagem desse tubérculo onde foi montado um balcão ondulante que começava no bar ao fundo, percorria toda a extensão do espaço que atendia uma área de perto de cinquenta mesas do restaurante com uma cozinha aberta e um outro bar que ao contrário do primeiro, atendia clientes que não estavam ala carte, ou seja, a malucada que só queria dançar, beber e assistir aos shows.
A casa faturou horrores naquela semana! A peãozada que só tinha olhos para os dez por cento no dia da caixinha estava idolatrando Marisa sem saber ainda que ela seria a única deusa de verdade a compartilhar o mesmo pedestal que Maria Bethania e Gal Costa. Os mortais que me perdoem!
Mire-veja! No último dia, depois do espetáculo, Marisa toda linda numa roupinha escolhida a dedo no seu guarda-roupa de gatinha, numa boina marrom cheia de pinta, passou a extensão toda do comprido balcão do AeroAnta agradecendo um a um todos nós que trabalhamos aquela semana junto com ela. Lindo, hein? Só uma guria dessas pra ter a audácia de engrandecer anos depois, como poucos, toda a negrada genial da Portela e deitar seus olhos maravilhosos num tesouro quase esquecido. É diva ou não é? Das raras!
Numa dessas, a Rita num momento em que dizia ia deixar o Brasil foi fazer um show de despedida no Aero. Numa casa onde só cabiam 500 pessoas a Rita atulhou mais de 1000. Você não se mexia lá dentro. Abarrotado de gente doida. Uma galera estranha. Pra me proteger, trabalhei toda a noite com uma embalagem de Green Champa dentro da minha camisa pra espantar todo aquele vodu. A Rita andava magoada com a crítica por causa de umas matérias que o Luiz Antonio Giron escrevera a respeito do último trabalho dela. Ela dizia que ia embora para a França. Quando chegava no começo da noite para passar o som com os músicos ela invariavelmente dizia: “Bon soir!” Estilosa que só!
E num desses finais de noite cruzo a Rita no mesmo mezanino com um gorro branco de pele sobre aquele cabelo Vermelhão O'Toole dela! Não me fiz de rogado. Saquei meu incenso legitimamente indiano e dei para ela: Ó, é pra você!
Ela olhou a embalagem e disse: 'Ahh! Esse eu não conhecia!'
É tudo. Vazei! Oito anos passados e eu era vendedor de livros na Horus, em Sampa. Ali tinha de entender do riscado. Àquela época não havia Amazon Books e todo o comércio de livros importados era feito pelos donos das livrarias. As importações da Horus eram memoráveis. Os clientes também. A proprietária desse lugar era uma judia tão esperta que terminou por vender a Horus quando o babado da Amazon começou e foi viver na praia de Itapuã na Bahia, onde abriu a Editora Horus e traduziu o monumental “Relatos de Belzebú a seu Neto” de G.I. Gurdjieff. Coisa que o Instituto em vinte e sete anos no Brasil jamais conseguiu levar a cabo. Nem dava. Dr. Marcel Horandi bem que tentou. Mas talvez ele não tivesse da Instituição o suporte de que precisava. E a edição dela é luxo só. Capa de couro e tudo. Supimpa! Ela editou outras grandes obras da literatura do Quarto Caminho. É uma mulher inteligentíssima. As cadeiras douradas do Instituto Gurdjieff tiveram de engolir sem mastigar.
Já de posse de Juan Ferré, um anjo de homem, hoje no céu, a Horus continuou mais alguns anos. E numa bela tarde, no décimo segundo andar de um edifício da Bela Cintra, surgem Rita Lee Jones e Roberto de Carvalho, para comprar livros. Ofereci um café mas ela declinou educadamente respondendo: 'Não, obrigada, meu bem!' Essa de chamar de meu bem é bem Rita Lee mesmo. Me senti dentro de uma música dela.
Rita procurava dentre outras coisas um livro que tratasse das diversas Yogas. Sugeri que ela desse uma olhada em “Um Novo Modelo do Universo”, de P.D. Ouspensky. Disse-lhe que o capítulo que tratava das diversas modalidades de Yoga era relativamente curto mas que havia um material interessantíssimo permeando toda a obra, principalmente 'Civilização e Barbárie' e o capítulo onde Ouspensky trata dos Evangelhos. A parte de Tarot também era digna de nota, já que o autor com sua sabedoria de matemático fisga percepções que eu nunca vira em qualquer obra que discorresse sobre o assunto.
Rita folheou o exemplar atentamente e o colocou junto à sua pilha de outros livros dispostos já então sobre minha mesa.
Passado um tempo ela traz à mesa um Collin Wilson que tenta fazer um ensaio sobre a vida e a obra de Gurdjieff e Ouspensky. Um verdadeiro lixo de livro, Antonio! À queima roupa lhe disse: - Esse livro não vale nada!
E a nossa mais completa tradução, como uma garotinha me perguntou: 'Por que?'
Porque o livro, Rita, trata de denegrir a imagem e o trabalho desses homens apoiado no argumento de que ao final da vida eles eram pessoas, digamos, desapontadas com o que haviam buscado. O que mostra a burrice e falta de compreensão desse autor.
'Você é bem enfronhado com essa rapaziada, não?' perguntou gentilmente...
- Sou, Rita, tudo o que consegui como ser humano, se é que realmente consegui alguma coisa, devo a esse trabalho do Quarto Caminho e do qual Gurdjieff e Ouspensky são os maiores expoentes. Esse livro do Collin Wilson não vale nada! Não compra isso!
Ela levou o livro de volta à estante e voltou depois para me perguntar se eu conhecia alguma coisa de um autor chamado Benjamim Creme.
Não, não conheço nada dele. Do que trata especificamente?
Basicamente sobre a vinda de Maitreya.
Mas essa Rita Lee, hein, Antonio? Maitreya, se não estou enganado, tem conexões com o advento de um Buddha e a nova veiculação do Budismo Mahayana. De onde essa garota foi tirar tanta esperteza? A Rita sabe das coisas!
Perguntei a ela como se escrevia o nome desse autor. Ela anotou para mim num pedaço de papel que guardei na carteira por alguns anos com sua caligrafia límpida e bem talhada, uma letra muito bonita!
A livraria vendia naquele tempo um incenso muito bom e artesanal feito por alunos do De Rose. Dei novamente uma embalagem de incenso para ela. E claro, não comentei nada sobre o Green Champa, ainda meu incenso favorito até hoje. Não ia tomar o tempo precioso dela com as minhas loucas coincidências. Eu já estava mais que feliz por ter vendido um livro tão legal para ela, que me fez feliz com todo o rock'n'roll que compôs com a maestria e leveza de uma sempre musa. Sobre a pilha de livros de Rita havia uma embalagem do mesmo incenso que ela já havia reservado para sua compra.
A parte restante da história? Conto num outro e-mail, tá legal? A Rita de Ovelha Negra e eu sendo Lobo Mau. Prometo. Com todo Amor. C.



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