sábado, 28 de setembro de 2013

Catarse





A ideia de luz sempre me incendiou. Tenho observado que desde sempre escrevi sobre luz. Para mim, sempre um código entre os Adeptos. Em seu leito de morte, as últimas palavras de Goethe foram: 'Luz! Mais luz!' E ele a tinha como poucos...
O fenômeno da luz, que é insubstancial e existe! Os efeitos inegáveis da luz... Inclusive nas sombras...
Quando voltei de meu primeiro retiro de Mahamudra no deserto de Ein Gedi, após sete dias intensos percebi meus olhos mais sensíveis à luz. Como se tivesse a pupila dilatada. Era mais nítido quando saía à rua ou ambientes com muita claridade.
Observei o fenômeno sem muita fascinação para não azedar a magia. Algo reconhecível e empírico que não deveria ser tratado com receio. Ao mesmo tempo, o acréscimo de uma sensação completamente nova aos sentidos trazia uma surpresa inegavelmente... fluorescente!  Há que se olhar para certos temas do espírito com olhos cautelosos.
Uma das aretés mais prezadas pelos gregos da Antiguidade era Reverência. A Odisséia de Homero está repleta de exemplos da reverência dos heróis aos deuses. E essa reverência fez toda a diferença na Civilização Helênica. O contato dos homens com os deuses e a educação divina recebida dos deuses fez com que homens brilhantes emergissem na História. É quase inacreditável que Homero tenha escrito suas Odisséia e Ilíada num período considerado obscuro dentro da arte grega, o Período Geométrico. O trabalho de cerâmica desse período, por exemplo, adquiriu a rigidez de uma decoração predominantemente geométrica onde o desenho da figura humana convertera-se então num jogo de ângulos e representações bem menos interessantes que as do período anterior, o Minoico.


É lamentável que não se considere o Período Minoico com mais atenção. Ali, rudimentos de uma escrita começaram a desenvolver-se, dando origem à Linear A e Linear B, já em sentido horizontal, contrastando com a anterior, ainda uma escrita hieroglífica e que os minoicos também desenvolveram. Essas escritas lineares foram depois adotadas pelos micênicos, uma cultura nascida dentro do período Minoico, afim de registrarem assim sua forma arcaica de grego.



A cerâmica do período Minoico é belíssima. Pronunciadamente inspirada em motivos marinhos, linhas sinuosas e ondulantes e animais da natureza. Representava por excelência toda a elegância solar e colorida dessa civilização que floresceu principalmente na ilha de Creta.


Há um livro maravilhoso em português sobre as escavações de Arthur Evans, o arqueólogo britânico responsável pelo sítio arqueológico de Cnossos.


Interessante que o idioma em que Homero redigiu seus escritos, se é que ele o fez ou esteve sequer presente ao registro, ainda não era o Grego Antigo, e sim uma forma de linguagem que poderíamos chamar de Jônico. A própria forma em que os Evangelhos foram escritos tem influência do trabalho de Homero, praticamente uma das primeiras referências em literatura até então. O mesmo fenômeno de tradição oral repetiu-se com o épico Gilgamesh, este traduzido no Ocidente apenas em 1860.

Mas Homero não era um escritor. Talvez ele nunca tivesse planejado escrever coisa alguma. Era um Aedo. Uma espécie de Repentista do Nordeste com uma bagagem de histórias na ponta da língua. Raros tempos homeros. A relação do homem com a memória ocupava então o nicho que viria a ser preenchido depois pelas enciclopédias. Saber, dentro dos moldes da Antiguidade, era um conceito bem mais amplo que o nosso de hoje. Não se encontrava as páginas de Sócrates ou Platão no Facebook. A Antiguidade não era informatizada!
Seria curioso saber a posição exata de Urano à época. Planeta inegavelmente conectado à ideia de informática e telecomunicações, segundo a Astrologia, ele permanece uma média de sete anos em cada signo.  Quando Urano resolveu botar as manguinhas de fora e entrou em Aquário, seu domicílio natural, em janeiro de 1996, a era dos computadores instalou-se definitivamente. Urano é justamente essa mente revolucionária, inesperada, impactante. Sua rotação incomum, ao contrário de todos os outros planetas do Sistema Solar, é anti-horária e ilustra bem as qualidades nada ortodoxas desse enigmático corpo celeste. Ao passar para o signo seguinte, Pisces, o bem comum, os celulares tornaram-se então uma utilidade imprescindível. Os beduínos do deserto usam celular tanto quanto os pastores de cabras nas colinas de Ein Karem ou os índios do Parque Xingu no Brasil. Há mais celulares no planeta que seres humanos. Atingimos esse astronômico e absurdo recorde. 
Está cientificamente comprovado que o ser humano é composto da mesma matéria que as estrelas, assim como é fato que o número de celulares hoje é maior que o de seres humanos. Urano em Áries.
Tudo é manifestação de luz. Esse talvez seja o papel que os homens iluminados cumprem na história da humanidade. São grandes faróis apontando para onde tudo deve retornar. O Budismo Mahayana, um mapa desse farol, visa iluminação não somente num nível individual, pelo contrário, todo trabalho feito na direção de evolução em algum sentido, busca o bem comum da humanidade, o compartilhar da luz entre todos! Para mim um modelo expresso de Compaixão, ingrediente vital e legítimo que, junto com Sabedoria, forma as bases da filosofia Mahayana.
Se olharmos os tópicos discorridos neste texto, poderemos afirmar que todos, sem qualquer exceção, e dando-lhes suas devidas relatividades, tratam o tempo todo de manifestações de luz.: Matéria primordial da qual todos somos feitos e para a qual todos, inevitavelmente, retornaremos um dia, quer sejamos pessoas, planetas ou vaga-lumes. 


sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Os Botticellis de Daniela

18.08.13
Hoje acordei pensando tanto em você, Dani. Queria saber das meninas... Todas elas. Inclusive de você, menina ainda com seu puro coração de criança. Manda um alô para mim, tá?
Fique com todo meu Amor. Seu no Dharma. C.

22.08.13
Oi Celso!
Como estão as coisas por aí?
Escrevi pra vc esses dias, mas foi no e-mail do ig.
Pois é, acordou pensando em nós dia 18 porque vc tem algo especial. Foi o dia que as meninas escolheram para nascer!
Elas nasceram dia 18/08 as 20:37h (Mila) e 20:38h (Gabi). Passei o final de semana indisposta e fui, por precaução, ver se estava tudo bem. Eu já estava em trabalho de parto avançado. Mas fizemos cesária, pois a Gabi estava sentada!
A Emilia nasceu com 2.26kg e a Gabriela com 2.03kg. Iriam completar 35semanas de gestação no dia 19. A Gabri ficou na UTI semi-intensiva por causa do peso, mas todas nós saímos juntas do hospital ontem (21/08)! Uma alegria tremenda!
A Catarina está encantada com as irmãs!
Manda notícias suas!

22.08.13
Fico muito feliz com o fato de as meninas terem nascido e de você ter, de certa forma, nascido mais uma vez.
Quatro meninas lindas. Quatro grandes corações.
Obrigado por sua pronta resposta. Tenho alguns trabalhos particulares e semanais que começam a surgir, Dani!
Quatro clientes. Amanhã fecho mais um. Terça começa minha escola de hebraico.
Tenho um blog com minhas poesias:
Há uma postagem nova de dois dias atrás: Hinos ao Sol.
Meu momento é de saudades intensas e adaptação. O coração pulsa novos ritmos.
Meu silencio não dispensa ainda alguns ruídos.
Minhas perguntas não têm peso.
Minhas respostas são um grande abraço em direção a Deus.
Ele me beija todas as manhãs da eternidade.
Sinto seu perfume saído de um banho de lavanda.
Todo meu Amor. Seu no Dharma. C.
Beijos

30.08.13
Oi Celso!
Desculpe-me pela demora, tenho tido dias alegres,mas conturbados! Entende, né! É a adaptação ao novo ritmo, às noites sem sono, alegrias e preocupações se misturam...
às vezes as lágrimas extravasam sem querer, não sei se medo, felicidade, receio... deixo-as fluir, assim que curamos... O segredo é deixá-las ir do mesmo modo que surgiram, de repente, sem motivo, sem avisar! Foi assim com a Catarina, está sendo assim de novo!
Tenho grandes receios quanto ao poder psicológico, físico e financeiro, espero que eu consiga cumprir essa minha missão de mãe!
Esses dias tenho ficado muito distante da Catarina, ela tem dormido até na casa da avó, até nos adaptarmos melhor, o cansaço é intenso! Não estou conseguindo amamentar e isso me deixa triste! Tento ao máximo, mas elas preferem a mamadeira! Dou amor em outras formas!

Que bom receber notícias suas, me faz tão bem!
Fez-me tão bem vê-lo, ver que está bem, com o brilho nos olhos, sorriso...
Você é uma pessoa de luz, acredito que encontrará todas as suas respostas, seu silêncio, sua paz que emana e contagia!

Começarei a ver seu blog, tenho acessado pouco, mas olharei sempre que puder!

Seja muito feliz, isso me contagia!
Tenha todo o seu sucesso, no trabalho, na nova vida e principalmente no espírito!

às vezes saio do caminho da paz, revolto-me, mas existem pessoas que me ajudam a retornar, e lembre-se, você é uma delas!!!!

Manda sempre notícias!!!!

Beijo no coração!
Muita luz!!!

Dani


31.08.13
Crescer dói às vezes. Os antigos acreditavam que as crianças tinham tanta febre por causa do processo de crescimento.
Verdade ou não, gosto de pensar nisto como um símbolo. Assim como o sal, presente tanto nas lágrimas quanto no suor.
É assim mesmo. O tempo é um fator. E ele não deve ser desperdiçado com sofrimento, ainda que já haja o sofrer, não é inteligente
demandar mais dor a uma determinada situação. A gente reage porque é assim que somos. Não aprendemos a ser sábios. A vida te 
ensina no máximo a se virar. Mas ela por si só não te ensina a crer, a inventar, a ser inteligente, a ser amável. A vida em si mesma não te justifica. 
Os comportamentos morais nem sempre se conectam com a vida interior. A vida em si tem propósitos muito precisos, que nem sempre
são os propósitos da alma ou algo que se aproxime dessa ideia. Há que se viver a partir da alma, através dela. É o que conta, todo o restante é sono, massificação, valores tortos e imitados. Por isso não ressinta nada que ocorre nesse momento. Considere que o que lhe sucede é seu destino, foi desenhado para você e você não deve nada a ninguém.
É difícil ser você mesmo. O mundo te nega. E o mundo é maior que a gente. Aparentemente ele tem mais poder. Mas é só aparentemente. Fortuitamente Dani Querida, o nosso buraco é bem mais embaixo. E isso não se ensina. Ou você tem ou não tem. É igual samba no pé.
Há bens preciosos que são nossa herança e direito, e não há modo de imitar uma bênção. Conte e lembre-se da sua graça, da sua luz,
porque só ela e mais nada podem conduzir você a um lugar seguro, ao divino.
Dan, a palavra inteligente vem do grego. Vai vendo! Em grego a palavra é éxipnos. Em demótico, tudo o que está fora é éx. E isso herdamos em português, língua formada da influência greco-latina. Hipnos, é sono, como você bem sabe. Há no anexo a grafia em grego para você apreciar. Note como o grego é uma linguagem sagrada, altamente espiritual. 
                                                                           έξυπνος 
Daí se deduz, que ser inteligente é estar fora dessa lei massificante, ser capaz de sair deste estado de letargia para onde tudo mecanicamente caminha. Entendo todo seu momento. Entendo que não poder amamentar é algo que traz um nível de sofrimento. Mas não deixe isso se transformar no seu deus. 
Sua gravidez foi um projeto dos deuses. Você já se deu conta disso?
Você vai crescer com essa maternidade. E crescer dói. Mas gera vida no sentido mais elevado que um ser humano possa conceber. Criar filhos, junto com a morte, é uma das raras oportunidades de experimentar o milagre do divino. Mas experimentar o divino tem sempre um preço. Mas lembre que os deuses trazem a fome com um pão embaixo do braço.
Todo meu Amor. Seu no Dharma. C.

PS: Não é determinante para mim que você consulte o blog. Não se ocupe disso.  A poesia maior agora chama-se Emilia e Gabriela. Essa, a grande dádiva!

02.09.13
Bom dia, querido!
Como é bom te ler... como sou feliz por ter pessoas especiais como você na minha vida!
A sua compreensão de tudo que vem me acontecendo, não preciso mais falar nada além!
Sabe, essa dor não é medo da responsabilidade, é medo de não ser capaz!
A melhor sensação do mundo é se sentir responsável pela geração de uma pessoa. Ter filhos é eternizar-se, eternizar o amor, Deus, os valores e tudo de bom. Mas com isso vem o ônus, os erros que sempre cometeremos amedronta. Será que conseguirei guiar essas meninas a serem inteligentes, a viverem a alegria plena, a saberem que o que vale é o que somos no nosso interior?
Por mais que eu saiba, não consigo ser eu mesma 100%. Esse mundo corrompe nossos desejos, tenho de deixá-las para ganhar dinheiro, esse dinheiro que rege a vida terrena! Não posso me dedicar somente a elas, fazer a comida, ensiná-las o artesanato que ajuda a alma a transcender, que é terapia para a mente doente, que é amor que flui pelas mãos! Ensiná-las o amor por preparar o alimento, o zelo...
Isso que dói... esse bullying que sofremos diariamente, é por amamentar, por não amamentar, por cuidar, por dar amor, por não delegar... não delego minhas riquezas, elas são de minha responsabilidade... e... de repente, me vejo tendo de adiantar meu retorno ao trabalho devido ao dinheiro que rege esse mundo material!
Isso é o que dói mais... superarei... sei que Deus, anjos de luz no céu e aqui estão para me ajudar, para me guiar e permitir que eu enxergue a minha luz!
Meu milagre de vida maior já aconteceu, essas três jóias, que tudo dizia que não as teria. Milagre da vida! E quero permitir que elas cresçam com amor e liberdade de vivenciar o que a alma lhes mostra... 
Viver o milagre da maternidade sabendo expurgar a culpa inerente a ela...
Conseguir driblar os fracos de espírito, que se deixam influenciar pelas energias negativas, isso é obstáculo grande a ser vencido!
Suas palavras me ajudam muito!
Nunca imaginei que sentiria tanta saudades do seu abraço, mas como um verdadeiro amigo e professor da fé, você tem me ajudado mais do que presente, não poderíamos conversar assim de perto, o tempo corrido imperava!
Desculpe-me pelos pensamentos soltos, como te disse, preciso deixar as lágrimas fluírem para, como você mesmo disse, molhar a terra e permitir-me crescer. 
Não consegui abrir a grafia. 
Tenha muita luz na sua jornada!
Beijo grande!
Dani
9.09.13
Bom dia!
Fico feliz em te escrever sem aquela tristeza e aqueles medos, como sabia, tudo está se encaixando!
Ontem fizemos um passeio pelo nosso bairro, e essa é nossa primeira foto juntas! Pena que o sol estava de frente e não estamos todas olhando para a câmera.
Fique com nossa luz!
Beijos


17.09.13 Querida Daniela, atualmente Israel tem seis horas a mais que Brasil. São dias intensos estes. Há uma série de grandes feriados por conta ainda do Ano Novo Judaico. Não tenho aula na Escola de Hebraico, a Ulpan até dia 28 deste. Bom porque é o primeiro momento em que realmente parei para relaxar um pouco desde que cheguei. 
Vivo um momento de muita produção desse ofício de escrever. Ideias que surgem e vão tomando forma com o passar dos dias até se transformarem em produtos finais. É um processo. Acho que o fato de estar vivendo num lugar tão bucólico tem favorecido um contato maior com minha vida interna. Jamais considerei muito as condições que meu destino foi oferecendo porque jamais me permiti escolhas ou preferências. Mas tenho apreciado como um espectador uma peça se desenrolando ao meu redor. E como sempre há um show de luzes que eu mesmo nunca consegui criar ou pretender acendê-las.
Pra você dimensionar melhor como isso se dá, há poucos dias recebi um e-mail de um amigo virtual que postou uma tradução de um trabalho meu que me tomou sete anos de lida. A postagem foi feita a partir de outro blog e um capítulo todo e mais duas partes de um outro se perderam. E justo neste momento ele me solicita esse 'gap', perguntando se eu tinha esse material disponível. Parece mesmo que os deuses estão com algum firme propósito. Meu papel é ser uma ponte, nada mais. 
Recuperei duas histórias infantis que traduzi para inglês para que a Lily pudesse ler. "O Quintal" e "O Cavalinho Azul do Luna Park". Vou postá-las nas "Cartas de Ein Karem", traduzidas novamente para português (Ufa!), já que faziam parte de correspondências nossas de quando ainda morávamos em países diferentes. 
...
Parei um pouco agora para varrer minha cozinha e me dei conta do tempo. Quanto parece tão recente o nascimento da Catarina e agora, veja! Mais duas meninas, Emilia e Gabriela reacendendo o pavio da eternidade. Mas o tempo não volta, enlaça, como cita minha Mestra. Tudo é parte de um único propósito. A gente realmente não tem cacife para planejar nada. Penso que tudo o que podemos nos dar como meta é procurar ser bom, trazer bondade em nossas ações, sentimentos e palavras.
Gosto muito de pensar no que Jesus disse num certo momento:  "Buscai, pois, em primeiro lugar o Reino de Deus e Sua justiça, e tudo mais vos será dado por acréscimo." Mt 6-33 
Isso para mim sempre foi um refúgio, alento e fonte de fortalecimento. O Trabalho de Cristo é tão inesgotável que nós podemos ver o quanto ainda somos parte de todo aquele drama ocorrido há mais de dois mil anos e do qual Ele foi o personagem principal. Eu tenho Cristo permeado por todo meu ser. Tive uma formação cristã forte que depois abandonei para voltar por conta própria. Mas Cristo hoje para minha vida supera toda e qualquer limitação da mídia que a religião tenha feito sobre o Seu Trabalho. Minha ligação com a Sua pessoa não passa pelo filtro de qualquer organização ou dogma. É na veia, Daniela! Como pode um Trabalho de ação público de apenas três anos ter chacoalhado todo um planeta desta forma?
Minha casa é pegada ao Mosteiro de São João Batista, que tradicionalmente é tido como o lugar de nascimento de João. É neste vale que morava Isabel, sua mãe e que foi num certo momento visitada por Maria, a mãe do Cristo. Do outro lado do vale fica a Igreja da Visitação. Às vezes fico pensando romanticamente se depois de adulto, quando Ele já podia montar um burrico por conta própria, também Ele não tenha vindo aqui fazer uma visita à sua família. Muito da sua história pessoal se perdeu, pequenos detalhes se foram. Restou apenas o assombro. De qualquer forma, trato sempre de me comportar muito bem, mesmo em meus pensamentos mais íntimos, porque este lugar é definitivamente sagrado. Não quero ser profano nem geograficamente. Pessoas divinas andaram por aqui.
Tenho mantido contato com irmãs que amo de paixão. Uma delas foi minha professora de Português. Juntamente com o Irmão Sávio, foi uma das pessoas que mais me incentivaram a escrever. Por conta disso comecei a ler alguns autores ainda na adolescência, Pessoa, por exemplo, para mim a grande influência do meu discurso poético. E Krishnamurti, Dostoiévsky, Guimarães Rosa, William Blake, Goethe... Isso causou forte impacto na minha formação literária. A mais nova delas, uma das minhas musas, inspiração para toda uma vida. Assim são construídos nossos dias ao longo de uma existência, grandes bênçãos contornadas por grandes lacunas que vão sendo preenchidas por mais bênçãos, por maiores graças que vêm por conta de um pagamento que se faz sem saber.
Dani, é bom demais poder me corresponder com você. Irônico que a distância tenha terminado por nos aproximar!
Fique com todo meu Amor. Um beijo na Catarina, Emília e Gabriela. Abraços no Fernando. Seu no Dharma. Sempre. C. 

Um Cheese Salada para Cazuza


1985, São Paulo. Uma das temporadas mais atípicas da minha vida. Eu tinha perdido um grande amor maldito que fora para Belém do Pará por minha decisão e logo a seguir um boxer tigrado com quem até hoje sonho, brinco e converso em jardins. Fortuitamente havia recuperado minhas visitas a um quintal onde passei os melhores momentos da infância e que agora estava quase abandonado nos fundos da casa de um velho tio que morria rezando a Ave Maria todas as tardes, purgando assim sua existência dionisíaca de estrondosos palavrões e danos morais. Certa vez ele confiscara uma biografia de Billie Holiday que eu lia e esquecera por descuido junto a seu copo de água benta. Quando voltei do meu quintal, já chapado, ele me perguntou à queima-roupa logo depois da sua oração vespertina: '-Mas que cazzo de livro é esse que você está lendo, cara?' É a história da vida de uma cantora de Jazz, tio. '-História da vida de uma cantora ou livro de ensinar a dar o cu?' Era assim desde sempre. Não respondi nada. Fiquei olhando para ele me dizendo aquele monte de loucuras logo após tomar sua água benzida colada ainda em seus imensos bigodes cujas pontas ele enrolava à la Gurdjieff. Era apenas e ainda, um velho sátiro dificílimo. Eu, a única criança da família de quem ele realmente gostou. De alguma forma nos entendíamos. Sempre foi assim. Visitá-lo era sempre algo interessante, dinâmico e repleto de contrastes. Coloria minha vida estreita que descendera de tal forma a ponto de em determinado momento me ver morando numa pensão perto do Metrô Santana num cubículo onde só entravam eu, minha cama e uma mala. O 'quarto' era embaixo da escada de madeira do antigo sobrado e devidamente fechado por uma parede de madeira e uma porta com cadeado. Ali, além de mim, da cama e da mala, só cabiam minhas esperanças e meus sonhos cor-de-rosa. Mais nada. Operário noturno que eu era, todos os passos de quem vivia no andar de cima pisavam meu sossego a partir de seis da manhã. Quê mais poderia querer? Era pegar no sono e a martelação começava! Mas havia ainda uma larga coleção de efeitos especiais nessa trilha sonora.
Colado a ele, estava a cozinha da casa onde ao meio-dia outra função maluca se iniciava. Meus sonhos misturavam-se a tudo o que se comentava naquele cômodo, quando uma das filhas da proprietária vinha cozinhar suas refeições à hora do almoço e conversava com alguém que jamais lhe respondia uma única palavra. Nunca vi seu rosto. Mas sua voz, ainda que perturbasse meu sono, me agradava muito. Era a voz de uma guerreira. Forte, decidida, alguém que tinha batalhado uma vida de lutas e contas abertas com filhos potencialmente devedores:
- Não, mas o Michel, um dia, um dia, ainda vai me pagar por tudo aquilo o que eu fiz pra ele nessa vida. Por essa luz que me alumeia!”
Era uma pequena tortura e um afago quando ela iniciava seu discurso diário enquanto lidava com panelas, frituras e aromas que permeavam meu quarto de ilusões e cheiros inatingíveis àquela hora.
Eu tinha naquele tempo a suprema ousadia de continuar minha prática diária de ballet numa escola de renome onde sempre me acolheram, o Ballet Stagium. Um sufoco chegar pela manhã e lavar minhas malhas suadas antes de dormir a tempo de a Orquestra de Barulhos iniciar seu prelúdio de percussão e correria.
À noite eu trabalhava como chapeiro e cozinheiro no Madame Satã, um reduto dark-punk dos anos 80. Estava feliz de certa forma. Cercado de maconheiros por todos os lados, eu tinha no meu balcão um palco onde toda minha elegância de movimentos era observada por clientes invariavelmente chapados que costumavam sentar-se ali entre uma performance e outra na pista de dança. Dentre eles João Gordo, ainda um adolescente de cabelos encaracolados e uma jaqueta jeans especialmente desbotada. Parecia um bonequinho de bolo inofensivo. Uma criança linda sempre me pedindo para dar a ele uma cerveja na faixa. No meio de uma pauleira ele costumava 'marchar': - uma cerveja! e que eu mecanicamente pegava do freezer só para depois olhar severamente a expressão de seu rosto jovial - que ria maroto - e constatar que não havia nenhum ticket em suas mãos para pagar o pedido! Talvez para arrefecer seu truque que sempre funcionou, ele amortecia sorrindo e dizendo logo em seguida:
- 'Ô Alemão, me faz um Satã Wave, vai!'
-Cadê a ficha, João? Pára de me alugar desse jeito, caralho! Você não vê que eu tô ocupado, pô? Um puta movimento desses e você de gozação aí do lado de fora!
-'Ô Alemão, me faz um Satã Wave na faixa, Alemão! Só hoje, só hoje! Tô sem grana, Alemão!'
Hoje não, João! Só pra você aprender a deixar de ser pilantra! Um dia eu faço! Um dia eu faço! Mas hoje não, tá? Vaza daqui! Anda!
Eu era duro com ele mas não havia como não amar uma criança assim!
Um dia eu fiz o diabo do Satã Wave para ele. Um sanduíche medíocre com duas pastas estranhas, uma de espinafre e outra de beterraba. Deus do céu: verde e vermelho! Em três fatias de pão de forma integral e mais nada. Só na larica pra poder comer um treco maligno daqueles!
Mas o João comeu tudo como bom garfo que era, no mínimo louco por junkie food e ligadíssimo como sempre! Não olhei sua voracidade ao comer. Mas minha visão periférica lia sua felicidade vestida num invariável blue jeans emoldurando suas bochechas rosadas de criança sorridente. Nada nele suporia o futuro band leader de uma banda punk chamada Ratos de Porão. Anos depois, quando ele já era famoso e tinha um programa na MTV, nunca pude olhar aquele skinhead (desculpa, João!) com outros olhos que não fosse o daquele menino lindo que colava no meu balcão de trabalho pedindo cerveja de graça! Você continua a ser um menino lindo, João, mesmo quando fala esse monte de palavrões! Talvez seja o mal do nome. Meu sarcástico tio bigodudo também era joão como você.
Eu tinha planos sinistros para o Satã nessa época. Por sugestão da malucada que vivia me pedindo, queria, a certo ponto, fazer um bolo de chocolate com maconha, por exemplo, mas por minha conta, sem causar muito barulho. Não poderia comprometer a direção da casa, que era ótima e tinha uma relação maravilhosa comigo.
Nunca levei adiante esse plano diabólico. Meus clientes aliás não precisavam do meu apoio para fazerem a cabeça. Ali dentro você podia fumar um no banheiro de boa que não dava nada. Fiz isso inúmeras vezes. E cheirei num final de noite com dois atores maravilhosos, um deles amigo muito querido que veio junto com outro grande ídolo meu, alguém que eu amava desde a infância, da época em que aquele quintal era meu único mundo.
Coisas aconteciam naquele casarão preto da Conselheiro Ramalho. No meio da madrugada aparecia a Charô resplandescente. Emersa de uma esquina qualquer de Blade Runner, ela me lembrava quase um clown em ficção científica. Olhava sempre com doçura as flores que eu trazia para a cozinha todos os dias a fim de aplacar a ira dos eventuais demônios. Levou meses até que ela me notasse. Sua primeira fala para mim foi: 'Você deve ser uma pessoa boa, sua cozinha tem flores.' Raras flores como ela, surgiam de vez em quando. Uma delas ainda estava por vir como um tsunami de pétalas!
Ok. Recém saído do Barão Vermelho, uma noite me pinta o Cazuza no Satã. Ele devia ter boas relações com os proprietários. Vira e mexe se enfiava no pequeno escritório pegado à minha copa e ficava a portas trancadas com não sei quem. Pouco me interessava. Ele já devia ter gente suficiente farejando todos os seus movimentos. Naquela noite ele estava especialmente bonito. Com uma camiseta regata cor de rosa e ainda de cabelos compridos... Coisa típica de anjo caído. Pediu algumas cervejas para as meninas que trabalhavam comigo mas parecia não querer nada para comer.
Não ousava sequer olhar para ele. Nunca gostei de dar muito crédito a gente famosa. Sonhei há duas noites com Caetano Veloso e uma das minhas preocupações neste sonho era de não tratá-lo de forma diferente por ele ser quem era. Acho que pessoas que atingem a fama sentem-se ao final prisioneiras de algo que parte de certa forma do ser delas mas que definitivamente não está em nada relacionado à essência simples e sem elaboração da alma que elas realmente são, acima de tudo. Num certo momento acho que artistas famosos ressentem a falta do direito de serem gente comum, sem letreiros luminosos fazendo-lhes moldura. Nada mais.
Mas no decorrer da noite, num certo ponto o Senhor Agenor de Miranda Araújo Neto colou no meu balcão e me disse:
'Ô meu, tem a manha de fazer um Cheese Salada pra mim?'
Fiquei seriamente tentado a responder: Só se você voltar para o Barão Vermelho! Mas contei até dez e logo depois tive um pensamento assim: Essa bicha é tão doida e desbocada que é melhor não me meter a besta fazendo nenhum tipo de gracinha! Só disse-lhe sim e mãos à obra.
Montei o sanduíche pro Cazuza. Caprichei no que pude e fiz um puta Cheese Salada para ele. Escolhi o pão mais bonito, o melhor hambúrguer da caixa e cortei os tomates na hora. Peguei as folhas mais frescas do miolo da alface e coloquei duas fatias de queijo prato sobre a carne assim que virei o hambúrguer para grelhar do outro lado. Ele me observou trabalhando o tempo todo. Quietinho como um bom garoto. Mas em nenhum momento eu avaliei o quanto aquilo seria histórico para mim. Que chance legal! Fazer um sanduíche prum diabinho daqueles!
Servi. Coloquei Ketchup e Mostarda como manda o figurino e arrastei uma televisão de guardanapos para ele. Comeu calado. Perdi a chance de observar como ele se comportava. Não olhei um momento sequer. Ao menos ali ele teria a oportunidade de ser anônimo Agenor.
Quando terminou, tirei seu prato vazio e limpei a bancada por educação, pois ele a deixara intacta, bom e educado menino que ele era acostumado às boas maneiras de um lar burguês.
Mas talvez não tenha sido suficiente para sua fome de leão de rock'n'roll. Então ele disparou:
'- Ô meu, tinha a manha de fazer uma porção de batata frita para mim?'
Eu tinha a manha, claro que tinha! Só não tinha as condições certas pra fazer uma porção de fritas de imediato. Foi o que disse a ele:
- Tenho, mas só se você tiver paciência e esperar um pouco porque, normalmente, eu não solto fritas aqui. Tenho batata para comida de funcionários e posso descascar algumas para você. Você espera?
Ele concordou.
Peguei as três melhores batatas que eu tinha e descasquei. Cortei em palitos matematicamente iguais e lavei para tirar o excesso de amido. Sequei depois com um pano de prato limpo, carta que sempre tenho na manga, enquanto o óleo esquentava numa panela pequena que improvisei à guisa de tacho. Uma menina sentou-se perto de Cazuza e eles começaram a conversar. Terminei meu trabalho e num bowl forrado com papel toalha tirei o excesso de óleo que as fritas porventura tivessem. Servi num prato oval acompanhado de um saleiro e um frasco de Ketchup. Seus olhos brilharam.
Mas sua paciência talvez tenha se esgotado umas cinco batatinhas depois. A próxima cena que vi foi um Cazuza arisco e nervoso saindo da cozinha andando de costas como um siri bravo e falando alto pra garota:
'- Viado merrmo, falô? Viado merrmo! E aposto que tu nunca viu um maior que eu!
Lindo e puto da vida naquela camiseta cor-de-rosa! As fritas? Nem sei que fim levaram. Sinceramente não me lembro se alguém comeu. Cazuza? Deve ter vazado no mundo logo após. Alguns anos depois, já no AeroAnta, cartazes anunciavam seu show Ideologia e que ele cancelou por problemas de saúde. Algum tempo depois, quando eu já não trabalhava mais lá, ele voltou revigorado por um tratamento que iniciara no exterior e mostrou seu Ideologia para uma plateia bem mais agradável que aquela garota que o impediu de comer suas batatas fritas aquela noite. Seguranças amigos meus me disseram algum tempo depois que ele, mesmo doente e muito abatido, fumou um baseado imenso com eles depois do show. Bicha doida...
Nunca mais vi Cazuza. Achei corajosa e artisticamente audaciosa a forma como ele expôs sua dura realidade na MPB. Poucos teriam agido assim. Ele fez de seu sangue poluído um grito de vitória consigo mesmo.
Veio a falecer num sete de julho, ironicamente dia do meu aniversário. Nós somos do mesmo ano. 58. Para mim foi um presente saber que sua longa batalha tivesse chegado ao fim. Acho que todos os brasileiros sofreram amargamente sua agonia, gostassem dele ou não. Quanto a mim, continuo agradecendo eternamente a canja que Cazuza me deu em poder fazer-lhe um sanduíche para que matasse sua fome.
A outra fome que ele sentia, essa não havia com certeza cozinheiro algum no mundo que pudesse saciar, a fome que talvez sentisse de ser ele mesmo, coisa de que tratou como raras estrelas fariam. Cazuza virou a partir de então um nome de constelação no grande céu de todos nós. Um beijo, baby! Te vejo no próximo cometa!

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Rita Lee e o Doce Proibido




Rita Lee e o Doce Proibido


Essa vale a pena ser contada no blog, Antonio! Quem falou isso pra você? A verdade é que algumas vezes eu cruzei a Rita de esbarrão, sim! Tinha visto shows dela nos anos 70. Talvez os melhores de que posso me lembrar. Logo que voltei do Seminário, em 75, a Rita lançou sua obra prima “Fruto Proibido”. Linda! Vi o show no Teatro Aquarius, desativado hoje para ser uma Igreja Evangélica. É mole? Vamos lembrar que neste teatro Altair Lima levou sua montagem histórica de “Hair” com Armando Bogus, Aracy Balabanian e Sônia Braga, ainda uma desconhecida à época e que ganhou o papel porque a coreógrafa do espetáculo era Márika Gidali que por alguma razão gostou da Sônia. É irônico que no mesmo espaço onde a galera tirou toda a roupa e cantou “deixa o sol entrar” seja hoje palco de algo bem menos religioso.
A Rita surgia linda, com um bastão prateado de baliza que ela manejava como uma artista de circo nos primeiros acordes de “O Toque”. Na hora exata de ela começar a cantar o bastão se abria em dois e uma chuva de purpurina voava sobre ela que iniciava: 'Abri as janelas, um sol diferente entrou...' Essa coisa visionária da Rita nos pequenos detalhes e que ela já trouxe pronto, como uma artista mais que performática, não somente uma cantora pop. A Rita sempre soube fazer as coisas direitinho! Bobos dos irmãos Batista que não souberam avaliar o potencial daquela garota ruiva mil anos luz adiante deles!
Foi meu segundo show de rock, Antonio! O primeiro tinha sido o do Ney Matogrosso, recém-saído dos Secos e Molhados no Teatro Treze de Maio. Um escândalo! Uma banda maravilhosa de excelentes músicos liderados por Márcio Montarroyos. E o Ney lindo aos 32 anos de idade botando pra quebrar em cima de um palco que não tinha mais que 30 cm de altura a mais que o chão da plateia. Havia um pequeno tablado que se sobressaía além do palco onde ele vinha fazer estripulias de vez em quando. Os fanáticos, como eu aos 16, sentavam-se no chão para ficar perto do palco. No teatro havia cheiro de defumador de Umbanda. Dava um clima todo mágico e natural. Matogrosso... Ele suava muito. Quando caía suor no chão deste tablado, algumas pessoas tocavam as gotas e se benziam. Havia uma catarse ali. Ney era tanto uma revelação quanto um escape para muitos de nós.
E detalhe: com dois policiais militares um em cada lado do palco. Isso não impedia Ney de se acabar de orgasmo num poste onde terminava a música 'Idade do Ouro', por exemplo! Era a própria imagem da situação política do país. Aquele cabaret de luxúria e bom gosto do Matogrosso ladeado pela polícia de plantão, ali congelada enquanto ele atuava, cantava, suava e entorpecia nossos sentidos. Toda a direção bem resolvida que minha sexualidade tomou, sem medos, cor de rosa e feliz, eu devo ao Ney. Ney e Caetano Veloso. Foi muito importante para mim ter a referência do Ney para encarar minha homossexualidade, isso numa época muito dura, quando ser bicha era uma vergonha! Mas o Caetano e os Dzi Croquetes tinham aberto o caminho a purpurina já!
E por falar em purpurina...foi onde eu parei falando da Rita, né?
Ok. Passaram-se os anos e eu era garçom no AeroAnta. Essa casa foi histórica mesmo! O primeiro show de verdade da Marisa Monte em Sampa. Ela havia cantado numa temporada minúscula no palco do Masp algum tempo antes, pelo que sabia de amigos que faziam mesa de som. Mas Marisa Monte no AeroAnta, já produzida pelo Nelsinho Gênio Motta foi de arrebentar tudo. Casa lotada a semana toda. Você olhava o mezanino acima do palco e lá estavam todos os Titãs, os meninos do Tutti Frutti, atores famosos, Luni ainda com Mariza Orth, starlets, tietes e o caralho a quatro! Todo mundo que era 'in' ou pensava que fosse, estava lá.
O lance é que o AeroAnta era um depósito de batatas desativado com um salão imenso próprio para estocagem desse tubérculo onde foi montado um balcão ondulante que começava no bar ao fundo, percorria toda a extensão do espaço que atendia uma área de perto de cinquenta mesas do restaurante com uma cozinha aberta e um outro bar que ao contrário do primeiro, atendia clientes que não estavam ala carte, ou seja, a malucada que só queria dançar, beber e assistir aos shows.
A casa faturou horrores naquela semana! A peãozada que só tinha olhos para os dez por cento no dia da caixinha estava idolatrando Marisa sem saber ainda que ela seria a única deusa de verdade a compartilhar o mesmo pedestal que Maria Bethania e Gal Costa. Os mortais que me perdoem!
Mire-veja! No último dia, depois do espetáculo, Marisa toda linda numa roupinha escolhida a dedo no seu guarda-roupa de gatinha, numa boina marrom cheia de pinta, passou a extensão toda do comprido balcão do AeroAnta agradecendo um a um todos nós que trabalhamos aquela semana junto com ela. Lindo, hein? Só uma guria dessas pra ter a audácia de engrandecer anos depois, como poucos, toda a negrada genial da Portela e deitar seus olhos maravilhosos num tesouro quase esquecido. É diva ou não é? Das raras!
Numa dessas, a Rita num momento em que dizia ia deixar o Brasil foi fazer um show de despedida no Aero. Numa casa onde só cabiam 500 pessoas a Rita atulhou mais de 1000. Você não se mexia lá dentro. Abarrotado de gente doida. Uma galera estranha. Pra me proteger, trabalhei toda a noite com uma embalagem de Green Champa dentro da minha camisa pra espantar todo aquele vodu. A Rita andava magoada com a crítica por causa de umas matérias que o Luiz Antonio Giron escrevera a respeito do último trabalho dela. Ela dizia que ia embora para a França. Quando chegava no começo da noite para passar o som com os músicos ela invariavelmente dizia: “Bon soir!” Estilosa que só!
E num desses finais de noite cruzo a Rita no mesmo mezanino com um gorro branco de pele sobre aquele cabelo Vermelhão O'Toole dela! Não me fiz de rogado. Saquei meu incenso legitimamente indiano e dei para ela: Ó, é pra você!
Ela olhou a embalagem e disse: 'Ahh! Esse eu não conhecia!'
É tudo. Vazei! Oito anos passados e eu era vendedor de livros na Horus, em Sampa. Ali tinha de entender do riscado. Àquela época não havia Amazon Books e todo o comércio de livros importados era feito pelos donos das livrarias. As importações da Horus eram memoráveis. Os clientes também. A proprietária desse lugar era uma judia tão esperta que terminou por vender a Horus quando o babado da Amazon começou e foi viver na praia de Itapuã na Bahia, onde abriu a Editora Horus e traduziu o monumental “Relatos de Belzebú a seu Neto” de G.I. Gurdjieff. Coisa que o Instituto em vinte e sete anos no Brasil jamais conseguiu levar a cabo. Nem dava. Dr. Marcel Horandi bem que tentou. Mas talvez ele não tivesse da Instituição o suporte de que precisava. E a edição dela é luxo só. Capa de couro e tudo. Supimpa! Ela editou outras grandes obras da literatura do Quarto Caminho. É uma mulher inteligentíssima. As cadeiras douradas do Instituto Gurdjieff tiveram de engolir sem mastigar.
Já de posse de Juan Ferré, um anjo de homem, hoje no céu, a Horus continuou mais alguns anos. E numa bela tarde, no décimo segundo andar de um edifício da Bela Cintra, surgem Rita Lee Jones e Roberto de Carvalho, para comprar livros. Ofereci um café mas ela declinou educadamente respondendo: 'Não, obrigada, meu bem!' Essa de chamar de meu bem é bem Rita Lee mesmo. Me senti dentro de uma música dela.
Rita procurava dentre outras coisas um livro que tratasse das diversas Yogas. Sugeri que ela desse uma olhada em “Um Novo Modelo do Universo”, de P.D. Ouspensky. Disse-lhe que o capítulo que tratava das diversas modalidades de Yoga era relativamente curto mas que havia um material interessantíssimo permeando toda a obra, principalmente 'Civilização e Barbárie' e o capítulo onde Ouspensky trata dos Evangelhos. A parte de Tarot também era digna de nota, já que o autor com sua sabedoria de matemático fisga percepções que eu nunca vira em qualquer obra que discorresse sobre o assunto.
Rita folheou o exemplar atentamente e o colocou junto à sua pilha de outros livros dispostos já então sobre minha mesa.
Passado um tempo ela traz à mesa um Collin Wilson que tenta fazer um ensaio sobre a vida e a obra de Gurdjieff e Ouspensky. Um verdadeiro lixo de livro, Antonio! À queima roupa lhe disse: - Esse livro não vale nada!
E a nossa mais completa tradução, como uma garotinha me perguntou: 'Por que?'
Porque o livro, Rita, trata de denegrir a imagem e o trabalho desses homens apoiado no argumento de que ao final da vida eles eram pessoas, digamos, desapontadas com o que haviam buscado. O que mostra a burrice e falta de compreensão desse autor.
'Você é bem enfronhado com essa rapaziada, não?' perguntou gentilmente...
- Sou, Rita, tudo o que consegui como ser humano, se é que realmente consegui alguma coisa, devo a esse trabalho do Quarto Caminho e do qual Gurdjieff e Ouspensky são os maiores expoentes. Esse livro do Collin Wilson não vale nada! Não compra isso!
Ela levou o livro de volta à estante e voltou depois para me perguntar se eu conhecia alguma coisa de um autor chamado Benjamim Creme.
Não, não conheço nada dele. Do que trata especificamente?
Basicamente sobre a vinda de Maitreya.
Mas essa Rita Lee, hein, Antonio? Maitreya, se não estou enganado, tem conexões com o advento de um Buddha e a nova veiculação do Budismo Mahayana. De onde essa garota foi tirar tanta esperteza? A Rita sabe das coisas!
Perguntei a ela como se escrevia o nome desse autor. Ela anotou para mim num pedaço de papel que guardei na carteira por alguns anos com sua caligrafia límpida e bem talhada, uma letra muito bonita!
A livraria vendia naquele tempo um incenso muito bom e artesanal feito por alunos do De Rose. Dei novamente uma embalagem de incenso para ela. E claro, não comentei nada sobre o Green Champa, ainda meu incenso favorito até hoje. Não ia tomar o tempo precioso dela com as minhas loucas coincidências. Eu já estava mais que feliz por ter vendido um livro tão legal para ela, que me fez feliz com todo o rock'n'roll que compôs com a maestria e leveza de uma sempre musa. Sobre a pilha de livros de Rita havia uma embalagem do mesmo incenso que ela já havia reservado para sua compra.
A parte restante da história? Conto num outro e-mail, tá legal? A Rita de Ovelha Negra e eu sendo Lobo Mau. Prometo. Com todo Amor. C.



segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Um lugar chamado Ipê Amarelo




Ein Karem, 27 Abril 2013
Querido Leonardinho

Gostaria, na verdade, de chegar bem cedo no Ipê para te contar tanta coisa … Esse é o primeiro sentimento que procuro trazer ao me reportar a você. Fica muito difícil achar o dó dessa oitava. Por isso estou engasgando entre palavras e sentimentos. Passei cinco anos bem cozidos vendo e convivendo com você diariamente. É isso também o que torna nosso diálogo tão possível e impassível às leis do tempo. Foi com você mais que ninguém nesse período que pude falar de temas que para mim são aqueles que realmente contam.
Poder te falar de todos os meus heróis e meus deuses, das cores e das formas, das palavras e dos silêncios, da magia que pode existir numa pimenta vermelha e dos segredos que podem estar contidos numa lasca de gengibre.
Junto com você minhas mãos amadureceram de todos os cortes e queimaduras para tornar sagrado qualquer alimento que preparasse. Num sentido muito abrangente e puro, o que a gente vivenciou chega ao patamar de um romance verdadeiro, de tão bem costurado e evidente. E para mim pareceu-me que os deuses apontaram de várias formas e em diferentes momentos que nossos mapas cruzaram-se num determinado ponto por razões que o devido tempo nos fará apreciar com a inteligência e compreensão que só digestão e relatividade costumam trazer. Leonardinho...
Logo depois que nos falamos ao telefone fui com o Eres, Rutha, Iftah e Lily numa festa em Iahud, a 40' de Jerusalém. Mordi e Sonia estavam lá, assim como Kiki e Merav que surgiram como duas estrelas silenciosas e meteóricas. Conversei rapidamente com a Merav sobre a tradução e publicação de Guimarães Rosa em hebraico. Como penso que cheguei a comentar com você, as herdeiras de seus direitos autorais pediram algo em torno de U$5000 por “Grande Sertão: Veredas”.
O budget da editora que ela possui não permite um empreendimento desse porte. Desconheço também a habilidade que seus tradutores possam ter para um trabalho astronômico desse calibre. Um excelente tradutor significaria no mínimo mais U$5000.
Voltei a falar com ela sobre as chances de “Corpo de Baile”, o conto onde aparece o adorável personagem Miguilim. Reforço sempre com ela que publicar Guimarães Rosa em hebraico é uma das coisas mais arrojadas e uranianas que ela poderia arriscar como editora, já que é questão de mais alguns anos para que a literatura mundial, de uma forma mais dinâmica e abrangente, possa reconhecer o gênio inigualável de Guimarães Rosa como escritor universal. Não há em língua portuguesa alguém de vulto tão relevante que se possa colocar no mesmo patamar de Dante Alighieri, Goethe, Homero e Leon Tolstói, senão Rosa. Assim como acontece com Fernando Pessoa em poesia. São gigantes. Autores de uma grandeza assim são mais que literatura. O que eles criaram chega às raias da mais pura forma de invenção e profundidade. E por isso eles são universais. Eles expressam valores tanto na linha horizontal quanto vertical do tempo. Há linearidade. Mas altitude e abismos também. Tudo o que posso ver de mítico nos meus peões de cozinha deve-se em parte à referência superior e sublimada de Riobaldo Tatarana.
Duas genias essas meninas, Leo. A Kiki está sendo cada vez mais requisitada em seu trabalho para a TV Israelense como editora de filmes. O melhor de tudo é elas não terem o ranço medíocre de artista. Você encontra com elas e é como ter a visão de dois anjos aqui.
Estou lendo um livro sobre o trabalho de GR. São textos que estão sendo reunidos pela Difel a partir de artigos de crítica literária de Benedito Nunes, um dos grandes entusiastas e estudioso da obra dele. E Benedito busca ressonâncias no trabalho de alguns desses autores que mencionei, principalmente Dante e Goethe.

28.04.13
00:06
Fui nesta sexta-feira ver a casa que gostaríamos de alugar. É de um casal jovem com um filho de um ano e seis dias. Os três estavam lá. Asaf, Karem e Ilay, o bebê. É uma casa árabe com grossas paredes de pedra. Uma cozinha com uma grande janela que dá para o jardim que tem um limoeiro siciliano, flores de alcaparra, um roseiral ao fundo repleto de flores encarnadas chapadas contra um muro também de pedras mal lapidadas. Há uma grande sala com lavabo onde eles levantaram um pequeno quarto para Ilay. Esse baby me pareceu tão familiar... Seus olhos meio esverdeados... E ele tomou quase toda minha atenção; fiquei mais interessado em fazê-lo rir que em perceber e avaliar o potencial da residência. Depois fui dar fé que a familiaridade que reconheci em Ilay era o simples fato de que ele se parece muito com o bebê que um dia também fui. Um pequeno choque para aquele momento.
Asaf e Karem gostaram muito de nós e acho que o pequeno Ilay também. Havia a possibilidade de que eles desmanchassem o babyroom dele caso desejássemos. Mas eu quis manter a disposição desta forma. Ali há potencialmente um quarto de hóspedes.
A planta da casa termina numa suíte. Há uma outra moradia na parte de cima, o que significa estarmos abaixo do nível da rua. Nesta mesma, uma vaga para nosso carro. E que muito provelmente será um Suzuki de segunda.
Quis vir para cá em abril somente por causa da primavera. Pelo menos em relação a temperatura a segunda força seria menor. E as flores estariam desse modo, prontas para minha chegada. Assim, vejo Israel por meio delas, florescendo perante meus olhos, contando segredos vindos, coloridos e tenros, diretamente do ventre negro da terra.
Outra é que nesta semana (quarta-feira), tivemos nossa primeira entrevista com o advogado que trabalha meu processo de imigração.
Na próxima fecharemos um contrato sobre a casa devidamente lavrado e assinado. É importante que tenhamos um imóvel já alugado em nossos nomes. Isso no tocante a imigração.
A viagem foi ótima. Talvez a melhor de todas as que já fiz para cá. Tomei logo de cara três relaxantes musculares. Acho que até com Papai Noel eu sonhei naquele voo, Leo!
Em Istanbul, a mesma doideira que corre ali de madrugada no aeroporto. O deck para nicotina e outras substâncias tóxicas parece uma rave. Gente do mundo todo. Tipo Disneylândia. Conexões para quase toda Europa, Ásia e Oriente Médio.
Nesta segunda é o casamento de Nemrod e Luiza. O pai do Eres voltou da Alemanha para a cerimônia. Nunca fui a um casamento judaico. Estou muito feliz por eles.
Meus livros enviados pelo Correio ainda não chegaram. Fazem falta neste momento os livros de hebraico e o dicionário hebraico-português. Mas tenho procurado aprender o que o momento me permite. Estou atento às letras nos jornais, TV, placas de rua e estradas e infernizando a vida da Lily com perguntas que muitas vezes ela não sabe responder. Mas ela tem sido a mais doce das companheiras, como sempre.

Querido, é isso. Legal que vou te ver muito em breve. Mas enquanto isso vou mandando notícias. Fique com todo meu Amor. Beijo para Isadora. Sempre. C. 

 

A Pequena Igreja Azul de Aba Cháriton



A pequena igreja de Aba Cháriton é a que mais gosto de ir. Ela tem a dimensão do que consigo alcançar, a escala do que é possível abranger num único vislumbre.
Às vezes vou em algumas rezas que ele faz com alguns poucos gregos ortodoxos que vivem por aqui.
Aléksandros e seus cinco filhos, Nicoláos, Dionísios... Aba Cháriton e eu. Em alguns domingos vamos ao Mosteiro Russo. Mas a Liturgia Ortodoxa Russa é diferente da Antioquina, à qual estou mais habituado e para mim é mais leve e alegre.
Ele tem insistido em me levar à Igreja do Santo Sepulcro para uma missa que acontece de madrugada. Da meia-noite às quatro da manhã. É possível depois dormir no alojamento que o Patriarcado de Jerusalém reserva aos poucos insones privilegiados que podem assistir a esses ofícios.
É bem possível que amanhã à noite eu vá com ele. De qualquer forma, o mais interessante para mim é a companhia humilde, leve e engraçada dele. 
Ontem, enquanto olhava os ícones tão bem pintados de sua pequena igreja, pensava nas múltiplas formas que os homens inventam para Deus. E Ele está sempre ali, imutável, inconfundível, sempre sorridente.
Tive a sorte de me encontrar com Ele inúmeras vezes, e hoje é para mim um Amigo que sussurra segredos silenciosos nos meus ouvidos,
que povoa minha cidade deserta, que acende o calor quando meu coração está frio, assobia uma canção quando estou triste e sopra minha testa quando a febre da ira ronda meus paraísos...
Como sempre Aba Cháriton me dá três velinhas resinadas para que eu acenda na caixa de areia. Duas são inevitavelmente para você e para a Isadora. Rezei um Pai Nosso para cada um de vocês. Já não rezo mais. Como sempre falo a você, a vida para mim tornou-se uma oração. Se ela não for bem rezada, de nada valem todas as fórmulas e ladainhas para atingir o Alto.
Encontrei em Santana uma vez, uma nega doida que trabalhava num colégio que estudei logo que voltei do Seminário. Ela costumava então ler as mãos das alunas e pedir dinheiro em troca. Uma pilantra cheia de mandinga
Desta volta, ela tinha se convertido. Era evangélica. E comendo biscoitos de polvilho ela me falava da tal da "palavra" do senhor cuspindo todas as sílabas surdas em que tropeçava ao professar sua fé de boca cheia.
Isso valeria uma história bem mal contada... Cômico. Deus diluído na calçada do Metrô como biscoito de polvilho...
Mas é como geralmente Deus tem sido usado. Um capacho à entrada em que os homens invariavelmente  limpam suas botas enlameadas.
Feliz é o Padre Cháriton. Ali quietinho em sua pequena igreja cuidando dos seus gatos magros que correm embaixo da parreira como se estivessem no Jardim do Éden.
Levei moussaka para ele um dia desses junto com meia dúzia de melomakáronos de quebra que havia assado. Ele agradeceu muito generosamente. Mas em nenhum momento senti nele a paixão assoladora por ter diante de si uma moussaka linda e biscoitos gregos que tanto lembram sua terra, seus sabores e seus delírios de criança ao pé do forno. 
Aba Cháriton é que é feliz. Os ícones não tossem nem reclamam da fumaça excessiva dos incensos, não pedem velas nem exigem mais luz para enxergar o pouco número de seus fiéis cantando num idioma que eles não entendem muito bem. 
Aba Cháriton é que é feliz. Porque Aba Cháriton somos todos nós. Porque Aba Cháriton não precisa de nada, nem de seu hábito negro e surrado para lembrar-se de estar mais perto de Deus, que sempre sorri sob os bigodes quando ele entra.