sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Jackson Pollock



Jackson Pollock

Nada do que você me escreveu, Chella, eu tinha realmente ciência. Seu conhecimento sobre Cinema é bárbaro. E como você mesma disse, algo que ama de paixão! Quando isso acontece, a gente é tomado por uma eloquência que de modo geral achamos que nos escapa. Falta-me mesmo é tempo para poder ver tanta coisa no monitor. Cinema é para mim uma das artes mais interessantes hoje em dia. A menos pretensiosa, ainda que haja uma indústria inevitável e mafiosa por trás dela. Leis de um planeta insólito! Tudo o mais me soa ridículo. Música moderna, artes plásticas, teatro, enfim, Chella, não acho necessário tanto up to date assim como o mundo pinta. Para mim, acho que para nós, não é?, essa preocupação em criar uma estética ultra moderna é ilusória... 
Certas coisas têm o poder de tocar a alma de forma muito especial. Rumi, Guimarães Rosa, Fernando Pessoa, Hafiz... E claro, Shakespeare, Rilke, Goethe, Blake, Whitman, Kabir, Sanai...a lista de homens santos é grande! Afortunadamente!
A Arte Moderna supra-valorizou a apologia do horror. Vejo muito mais arte num tapete caucasiano feito manualmente há duzentos anos do que em toda essa papagaiada que anda pelos museus afora. Os maiores ainda são os mesmos. Leonardo, Rembrandt, Klimt, Vlaminck, Van Gogh...
O Cinema tem um grande diferencial, ele é uma arte de entretenimento, que depende do gosto popular e não da nata de grã-pensadores que irá discernir o correto do incorreto. De uma coisa estou certo, Cinema é uma arte que toca diretamente o coração das pessoas e não o que a cabeça delas pensa ser corretamente moderno. A capacidade de transmissão pictórica que ele oferece é assombrosa. Com tudo isso a Arte Cinematográfica vem a ser um veículo  estupendo de formação de opinião. Seu poder positivo de influenciar é imenso. Acho, por exemplo, que a longa série de filmes tratando de culinária como resgate ou vínculo para maiores sentidos, desde o pioneiro "A Festa de Babbete", passando por "Como água para chocolate", Comer, Beber, Viver" e outros tão ou mais maravilhosos, contribuíram de forma decisiva para divulgar a culinária e o mundo da alta gastronomia como uma arte por excelência acessível a todos, não somente aos mais privilegiados. Mais que isso ainda, poderia afirmar que o Cinema é um fenômeno cultural de massa tão ou até mais importante que o rock'n'roll. A cultura do rock está morta. A do Cinema não. Não há um grupo determinante de rock. Só lixo! A Arte Cinematográfica continua a surpreender positivamente. Tem um poder espiritualizante. A gente precisa mesmo é de sublimação, não é mesmo, Sagrada Irmã? Se a Arte perder a conexão com o espírito, com a alma, tudo ficará calcado em construção estética, pensamento lógico. A gente está mais é atrás do pensamento psicológico, que fala ao espírito. Isso faz grande diferença.
Estou ouvindo neste momento música árabe numa rádio daqui. Adoro a música desse povo. Ela tem entranhas, vísceras, alegria e entrega.
Tenho visto alguns filmes sobre pintores que uma amiga (a Andrea) downloaded pra mim. Gostei demais de um sobre Goya. "Goya's Ghosts". Quanta dificuldade para fazer Arte na época em que ele viveu, numa Espanha caótica dominada pela Inquisição. Ainda preciso terminar de assistir um que comecei sobre Jackson Pollock, um pintor americano dos anos 40-50.
Pollock era um atormentado. Com uma alma que não cabia em si, tão grande quanto a de Van Gogh. Criou uma pintura legítima e belíssima, oriunda da sua febre instintiva e brutal. Mas caoticamente harmônico. É um dos poucos artistas contemporâneos que realmente chama minha atenção. Sua inteligente mulher, Lee Krasner (sem ela Pollock seria nada) também é muito interessante. Lembrei-me agora de Lucian Freud, outro digno de nota!
O tempo corrói coisas que entre eu e vocês jamais se enferrujou. Talvez seja uma questão de confiança, de quais níveis de vínculos de alguma forma especial e inexplicável se conectem .
Compartilhamos, eu penso, o pão e o vinho, Chella! Transubstanciação. Consubstancial! Talvez sejam os termos mais apropriados para nossa aura que esparge cheiro de laranja nos finais de tarde cujo por de sol só nos sabemos a cor. A poesia dos flamboyants incendiando as ruas e a cumplicidade do sorriso e da dor conjuntas... Entre nós, mesmo os mais queridos que já se foram, ainda estão presentes. Tão em nós estão! Mas isso não se explica, vive-se! Eucaristia pura.
A neve finalmente derreteu-se. Os cactos ainda estão bravamente firmes. Parece que nada lhes aconteceu. Algumas plantas definitivamente morreram. Seria um milagre com a forte nevasca que caiu. Havia previsões de que ela seria tão forte como a de 1917. Foi pior ainda. Pobres flores... Porém, a íris roxa está novamente a florir! Quem a viu, sucumbindo sob a crosta de gelo, não poderia supor.
Tenho muito a lhe dizer. Os Fados das Tormentas vagando ao meu redor! Os dias tomados de gente ao meu redor não têm permitido muita paz para que me sente integralmente a escrever-lhe. Escrevo mais. Todo Amor, Irmã Querida, um Feliz Novo Ano! Que nos vejamos neste 2014, é tudo que espero! Seu. No Dharma. C.


Jackson Pollock

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Ginga de preto


Ein Karem, 15.12.13

Bela íris que se foi. Olhei para ela hoje, ainda sucumbida pelo peso do gelo imparcial sobre sua vivacidade lilás arroxeada de fim. Destino de uma flor... Assim como o destino de sua grande e querida amiga que sucumbiu à quimioterapia. Acima de toda dor há um olhar dos deuses.
Três rosas amarelas sobreviveram, porém, reféns dentro de um vaso sobre minha mesa. Eu as colhera alguns dias antes. Há um botão de rosa no jardim. Criança solitária que não abriu seus olhos de pétalas para o frio ao redor. Um dia ele será príncipe num mundo em reconstrução. Não sei o que aconteceu com Frida Kahlo's Cactus Garden.
O alecrim, no entanto, resiste como toda planta de poder. É assim. Não é o primeiro jardim que desaparece perante meus olhos. Outros jardins também se foram, ser flores em outras atmosferas mais rarefeitas que esta, sujeita ainda a Oxigênio, Carbono e Hidrogênio.
Nós também iremos de tapete voador para outros jardins! Tratemos de ser agora as mais belas flores, de extrair da nossa clorofila as mais belas cores e seus possíveis matizes. Os perfumes e as essências virão confirmar o enredo.
Vi meu jardim agonizar na aridez do último verão e agora o novo inverno me apresenta um novo quadro de regeneração. Mudam os motivos mas o sentido continua latejando sua fonte de luz para sempre. Impermanência.

Marin Marais foi músico de Luís XIV. Como músico oficial da corte do Rei Sol, criou uma música muito suave de entretenimento, própria para o ambiente de Versalhes. Ele tem peças lindíssimas e foi o responsável pelo enaltecimento da viola da gamba como instrumento solo. Há um filme belíssimo com Gerard Depardieu que trata da vida de Marin Marais: "Todas as manhãs do mundo". Por trás da figura popular e bem sucedida de Marais estava o misterioso e hermético Monsieur de Sainte Colombe. Considera-se tradicionalmente que Marais tenha estudado num certo ponto de sua vida com Sainte Colombe. Marais era na verdade um grande virtuose e precisava de pouca informação para seguir em frente. Procurei como um louco as músicas de Colombe, que julgava ser uma eminência parda de Marais, mas para mim, as melodias de Marin Marais têm uma poética que supera qualquer peça barroca. Assim como Chopin, que é pura poesia, não somente música.

Quanto à falta de eletricidade, foi uma experiência magnífica! Ouvi um pouco de música, pois havia bateria no computador. Mas foi só. O meu fogão é elétrico. Não pude tomar banho, cozinhar, fazer café, chá ou comer nada quente. Mihal, nossa proprietária, chamou-nos para uma sopa de lentilhas (as rosadas, que você tanto gosta) à hora do almoço. Mas quem acabou cozinhando em sua cozinha fui eu, senhor de todos os aventais: Lentilhas, batata, cebola e alho à beça, mandingas (páprica, cominho e tomilho) e linguiça defumada, que pega muito bem com lentilhas. Foram 25 horas sem energia. Meditei várias vezes durante o dia. O texto chamado Haikai foi escrito à luz de velas durante a noite e transcrito no dia seguinte. E Kailash, cujas contrações começaram a acontecer na quarta-feira veio logo em seguida, num parto dourado! Para os dez graus dentro de casa, nada que dois cachecóis, quatro camisetas, duas blusas, três calças e um gorro de lã não resolvessem. Ah! Três meias nos pés. Detalhe: fui para cama assim, como um temulento! Mamulengo em sábado de aleluia!
Chella, Jerusalém está um caos desde a última quinta. Só em Jerusalém seis mil residências estão sem energia. A neve forte acumulou-se nas árvores que não resistiram e cederam ao peso, caindo sobre fios de alta-tensão. Não há aulas até amanhã. As escolas estão fechadas. Andar nas ruas está mais perigoso, o gelo sedimentou-se e ficou mais escorregadio. Fui ao armazém agora à tarde para comprar leite e alguns legumes para assar uma galinha mas não havia quase nada. Parecia tempo de guerra, quando as provisões somem das prateleiras. E israelense é neura com precauções. Coisa de quem deve no cartório. Pra mim está tudo bem. Faço caipirinha com água e o que sobrou do meu limão siciliano e danço samba, se precisar! Nada como ter ginga de preto!
Fique com todo meu Amor! Saudades muitas. Seu no Dharma. C.








sábado, 14 de dezembro de 2013

Haikai




13.12.13

Tênue, firme e precisa, a neve cai sobre Jerusalém há dois dias impiedosamente, assim como as mãos dos deuses.
Não há eletricidade. São 17:00 hs e estou à luz de velas. Já está escuro. As estradas para Jerusalém estão fechadas. Não há comida quente porque meu fogão é elétrico. Dentro de casa a temperatura talvez esteja a 10°. O peso do gelo derrubou um grande galho do limoeiro siciliano no jardim.
As flores estão cobertas pela neve.
A sensual e formosa íris roxa curva-se agora nas pedras do canteiro, submissa como uma odalisca escravizada pelo gelo sobre ela. Um modelo tenro de resignação. Nenhuma palavra. Nenhum gemido. Lilás transparência terrena sob um destino divino imaculado e inevitável. Vida.
Mas meu coração sutil não pode deixar de contemplar o quanto a alma branca da neve que cai,  carrega consigo o poder que sua beleza destruidora oculta como um véu para recomeços.
Nada termina. A sabedoria e a flexibilidade da Natureza trazem em seu íntimo orgânico a mesma inteligência que reconheci uma vez nas colossais montanhas de pedra em Yosemite: o quanto o Todo é impassível à nossa parcialização do tempo...
Tal é a impermanência, tal é o caráter efêmero, a pouca solidez de tudo o que é construído." Buda
                                                                                                                                    









quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Jetsun Milarepa






Ein Karem 12.12.13

 Neve sobre Jerusalém. Nove horas da manhã. Não há Ulpan hoje. Nos preveniram desde ontem que se nevasse de madrugada, não teríamos aula. Não nevou durante a noite mas quando saí, uma chuva fina vinha acompanhada de pequenos e leves flocos brancos quase imperceptíveis. Voltei para casa. Não demorou para que ela começasse a vir, desta vez sem a fina garoa. É incomum que neve nesta época do ano. A meteorologia diz que é a quarta vez que isso acontece. Que fenômeno lindo! Um silencio himalaico ao redor.
 Os flocos caem mais espessos sobre o jardim agora. Ontem iniciei um novo poema chamado Kailash. É uma montanha sagrada para várias religiões: Hinduísmo, Budismo, Jainismo e Bön, a religião nativa do Tibete antes que Padmasambhava viesse da Índia para trazer ao Tibete os ensinamentos de Buda Shakiamuni.
 O Bön é uma religião quase shamânica. Talvez esse fértil terreno tenha possibilitado que o Budismo se desenvolvesse de forma tão incomum, dinâmica, profunda e milagrosa, iniciando a partir de então uma longa tradição de notáveis e retumbantes Mestres Iogues. Os relatos sobre a vida desses veneráveis  e santos homens atinge os limites do fantástico.
 A vida de Milarepa, por exemplo, é envolta em mistério e assombros. Perdendo o pai quando ainda era um adolescente, seus tios ficaram responsáveis por manter a considerável fortuna da família. Terminaram por desterrar tudo e humilharam publicamente os irmãos e a mãe de Jetsun Milarepa quando esta reclamou a herança do marido para suprir as necessidades da casa que carecia então de apoio urgente. Viram-se praticamente na miséria.
 Indignada, só e desesperada pela injustiça do cunhado, ela pediu a Milarepa que fosse aprender magia negra para que ele se vingasse dos tios ultrajantes. Caso não obedecesse suas ordens, ela declarou que poria fim à própria vida. Por reverência, ainda que a contragosto ele cumpriu seus desejos  e partiu em busca de seu mestre.
 Quando voltou, escolado, lançou de imediato um feitiço sobre o vilarejo que foi acometido de um temporal inexplicável que destruiu casas, plantações e isso exterminou a vida de várias pessoas.
Depois, inconformado pelos resultados de sua vingança fatal, ele se arrependeu amargamente e decidiu corajosamente que deveria 'limpar' seu karma. Procurou então um Mestre Perfeito que pudesse aceitá-lo como discípulo. Viajou guiado por sua sede de remorso e mãos divinas, que sempre se estendem quando o coração agoniza na sede da verdade. 
 Encontrou Marpa Lotsawa, o Tradutor (1012-1097) já esperando por ele num lugar que era muito distante de sua aldeia natal. Iniciou junto ao Mestre uma longa e penosa série de 'trabalhos forçados' que o levaram muitas vezes à completa exaustão e desespero.
 Precursor de uma das linhagens ou 'escolas' de Budismo Tibetano, a Kagyu - sendo as outras cinco, Nyingma, Sakya, Bön e Gelugpa - Marpa é reverenciado como o transmissor máximo de Vajrayana e Guru Yoga na tradição do Budismo Tibetano. Em sua homenagem, a linhagem Kagyu é também chamada Marpa Kagyu.
 Como práticas preliminares, Marpa pediu-lhe desde o início que construísse várias edificações em sua propriedade e que, quando ficavam prontas,  a próxima ordem geralmente era de que Milarepa demolisse tudo e começasse uma nova obra, tendo esta última quase que inevitavelmente o mesmo destino da anterior. Marpa era impiedoso com seu 'pedreiro'. 
 Além disso, não o aceitava no círculo fechado de seus privilegiados discípulos. Milarepa implorava para receber os ensinamentos mas não obtinha permissão de juntar-se ao grupo de alunos; nem sequer assistir as práticas lhe era permitido. Quando tentou fazê-lo, por intermédio de Dakmema, a mulher de Marpa, que se apiedou dele, foi humilhado e colocado para fora sem reservas. Milarepa esteve perto do suicídio. Os deuses vergam mas não quebram. Desenvolveu assim, uma força de vontade e perseverança raramente encontradas num aspirante marginalizado.
 Após uma série de novas atribulações, que lhe valeram inclusive a fuga do templo de Marpa e seu inevitável retorno, Milarepa foi enfim admitido como discípulo e transformou-se ele mesmo em um grande e poderoso Mestre.
 Marpa sabia desde o início que Jetsun Milarepa viria procurá-lo. Havia sido previsto pelo Mahasidha Naropa, o Mestre Iluminado de Marpa, que um potencial discípulo viria a seu encontro e que este seria seu sucessor. Ainda assim, Marpa não exitou em nenhum momento em colocar seu brilhante aluno à prova com o intuito de eliminar suas obscurações e fazer dele não apenas um estudante mas um Mestre Incomparável, à altura de seu maravilhoso e divino potencial.
 Algumas edificações que Milarepa ergueu ainda se encontram firmes e resistentes até os dias de hoje. É possível visitá-las no lugar da antiga e ampla propriedade de Marpa em Lhodrak, região sudeste do Tibete.
 É dito que Jetsun Milarepa tinha poderes extraordinários. Ele podia transformar-se em diferentes animais e era visto com frequência voando pela vastidão dos céus gelados das montanhas.






terça-feira, 10 de dezembro de 2013

O ser físico do Sol que nos incendeia




Uma janela para o Monte Kailash



Tanta saudade de você... Ouvindo Marin Marais... Há alguns meses me doía ouvir essa música. Pensava em você, na nossa cozinha...
Até hoje quando olho minha bancada vazia que você fotografou um dia me dá um nó na boca do estômago. E não é de fome. Evito olhar para essa foto. Mas sempre esbarro nela em minhas imagens. A dor não se apaga. Ela cria cicatrizes. Tribais. Lembram tatuagens. Feitas com o fogo do coração. Combustíveis que movem a existência... Forno e fogão.

Você é minha grande saudade. A única saudade que cria um oco por dentro. Um restaurante faz a gente viver grandes verdades. Sempre lhe falei que a cozinha é uma escola esotérica. Faz todo sentido. A cozinha é um cosmos de possibilidades. Acho que trabalhar em cozinha me preparou muito para abraçar o Quarto Caminho e as idéias práticas de Gurdjieff, ele próprio um grande e exímio cozinheiro. Os cozinheiros carregam consigo o fogo do inferno e as cinzas bentas do paraíso. Eles são anjos e demônios. Você não, Tito, você é anjo o tempo todo.

Não trocaria meu destino de peão por nada nesse mundo. A cozinha me deu tudo. Inclusive você, que tenho como meu filho de sangue. Tenho quase certeza que já fui seu pai numa outra vida. Chamei muitos amigos de filho e filha. Mas um eco ressoava dentro de meu coração quando me dirigia a você assim. E só de pensar, me colocar neste sentimento, o mesmo som move-se quieto e latente como um leito de rio, calmo e firme como um Buda, um eco diferente, vindo de um ponto que não tenho claro.

Talvez seja mesmo algo que vem da eternidade, ventura que não conhece noção de tempo. Atemporal. Por isso você está comigo todos os dias, em todos os momentos. Mesmo minha casa tem um preparo sempre dirigido à sua visita com a Isa e que também é atemporal, acontece desde sempre. Ela existe agora, com todo esse Oceano geográfico envolvendo paisagens imaculadas.

O universo é um organismo vivo que não conhece cisões. É um crime contra si mesmo pensar algo contra o próximo. Todo mundo é uma coisa só. O mundo é um moinho, como dizia Cartola. Tudo o que fazemos, fazemos a favor ou contra nós mesmos. Não há despertar individual se os seres humanos estiverem cegos. Por isso o Mahayana é tão abrangente. Nada é individual. Isso é insano. Só é lamentável o quanto nos esquecemos dessas grandes e magnânimas verdades.

Conversava um dia desses a respeito da oitava do despertar. E de como muitas vezes não entendemos como pessoas saem de nossas vidas porque decidimos num certo ponto, rumos que pertenciam exclusivamente à nossa busca pessoal. Pessoas do Instituto que nunca mais vi... Amigos que não entendem porque continuo na Escola... Amigos da Escola que não entendem porque estou praticando Mahamudra...

Acima de tudo está a busca. A incansável busca da qual falei minha vida toda em tantos poemas, mesmo quando não sabia que buscava algo. Quando tinha oito ou sete anos de idade, me olhei uma vez no espelho do banheiro da minha avó Maria e  me perguntei: Quem sou eu? Tenho isso vivo dentro de mim. E por anos na minha infância carreguei um sentimento que me batia forte sobre a minha impressão de estar vivo, dentro de um corpo, como se de repente meu ser falasse mais alto que meu organismo...

Não significa que fui precoce, aliás não fui precoce em nada. Em tudo demorei para amadurecer. Mas nunca tive pressa. Meus esforços, humildes esforços, são parte da linha vertical do tempo, aquela que acontece em ascensão. Por isso não deixo essa Escola. Mesmo que o que se diga ou faça não me toque pessoalmente, não me atenda internamente, a gratidão é um elemento básico e presente na minha oitava do despertar, esse o grande tesouro da minha vida, que não é meu, assim como também a minha vida, que não me pertence de todo. Mesmo em meus oito anos longe da Escola, quando estive no Instituto Gurdjieff, Robert sempre continuou presente na minha alma.

Rodeei um mundo para te dizer que você, querido filho, mais que ninguém neste mundo, é também parte viva do meu trabalho interior. Que universo misterioso este nosso! Você vai me levar consigo ao longo de muitas vidas... O meu despertar é o seu despertar. Quanta claridade ao nosso redor! Em alguns momentos nossa realidade é muito mais eletrônica que molecular. Esse Sol, que tanto nos incendeia e que jamais será negado!
Todo Amor. Beijos na Isadora. Seu no Dharma. C.





quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Rita Lee e o Doce Proibido - Parte II


Ok. Aqui vai a segunda parte da minha saga com Rita Lee, Antonio! Cheguei a te falar do Doce de Abóbora que fazia no Ipê Amarelo, não é? Sempre foi meu doce predileto. Mas passou a ser realmente, depois que experimentei o doce maravilhoso que minha amiga Dalva Imaculada fazia e ainda faz até hoje. Com ela aprendi todos os truques: a qualidade da abóbora pela quantidade de fibras, seu tempo de apuração, nível de fogo e etc. Só para serviço de utilidade pública, gostaria de lembrá-lo, Antonio, que utilizo técnica de confecção de geleia para fazê-lo.
Para que a geleia chegue a um ponto consistente, é necessário que ela seja totalmente resfriada após algum tempo de fervura. O açúcar cristaliza-se e dá consistência ao doce. No dia seguinte termino de apurá-lo deixando ferver novamente em fogo baixíssimo desde o início do novo aquecimento. Todas as especiarias (sete ao todo) são colocadas num buquê garni para que não se percam no doce. Sempre achei desagradável encontrar cravos na hora de comê-lo, geralmente com uma boa fatia de queijo fresco, como se faz no interior de São Paulo, onde está a São Paulo de verdade, resguardada por uma identidade sertaneja mas cosmopolita.
Retiro o buquê garni no dia seguinte, já que ele dormiu toda a noite na panela larga em que o doce foi cozido para otimizar a redução dos líquidos. Todos os sabores, essências e o bouquet dos temperos foram implementados à alquimia deste pequeno tesouro. Não utilizo coco ralado. Nem todos apreciam. De dez quilos líquidos de abóbora inicial, são obtidos seis de doce devidamente apurado. É muito trabalho!
Uma obra de arte que causou furor no Ipê Amarelo nestes cinco anos. E essa era minha meta: encantar. Não fosse a mistura de vários temperos e o fogão ocupado com o tacho grande eu faria esse doce quase à hora do almoço, para causar mesmo, entende? Pelo aroma que invadiria o restaurante e daria um clima assim de... casa de avó! Mas nunca quis correr o risco de ter meu doce preferido comprometido pelo óleo dos salteados e salgados em seu interior quase sagrado. Chegava mais cedo para apurá-lo lentamente no dia seguinte, sem pedir hora extra, sem manchetes nos jornais, apenas por prazer e honestidade em servir algo não menos que excelente.
Devido ao trabalho e tempo hábil empenhados nessa bruxaria toda, não permitia que as pessoas levassem doce para viagem. Cheguei a chamar atenção de clientes que insistiam em contrariar minhas ordens. Parece tirania culinária, não é? E é isso mesmo. E o doce era feito geralmente no final do expediente, para não correr riscos de nenhum outro mix na iguaria. Eu falava com esse doce, Antonio: Isso, meu lindo, apura mesmo...
No final, dependendo da quantidade, gotas de limão cortado na hora em medidas matematicamente ponderadas. Nada em excesso, como no portal do Templo de Delfos. O limão vai dar um brilho a ele.
Tive clientes que comeram esse doce religiosamente todos os dias. Estou falando de cinco anos, Antonio! Queria tê-lo disponível para clientes que estivessem se servindo do buffet. Da mesma forma não permitia que se levasse falafel, um bolinho feito à base de grão de bico popularíssimo em todo o Oriente Médio. O meu tem dezessete ingredientes. Também esse, elogiado tanto pela comunidade judaica quanto pela árabe. Nisso fui hábil e diplomata! Pelo menos em nível de paladar chegou-se aqui a um acordo. O falafel exige um tempo de preparação muito grande também. Começa a ser feito no dia anterior, é frito de forma artesanal e numa quantidade limitada.
O mesmo com os nossos pastéis artesanais de sexta-feira, feitos pelas mãos mágicas de bronze grego do meu açougueiro Vitório Rodrigues dos Santos, um baiano de Boa Nova com a melhor mão para lidar com comida que já vi nesse mundo. Os pastéis eram disputados e ainda devem ser porque o Vito é o cara mesmo! Saudades daquele cabra! Então, devido a esses pormenores e caprichos, tanto o doce de abóbora quanto o falafel e os pastéis não eram permitidos para viagem.
Quando me ponho a fazer algo, Antonio, não estou de brincadeira. Você me conhece bem há quarenta anos. Desta forma, não só aprendi a cozinhar desde os onze anos de idade, porque éramos eu e meu pai, como também escrevo, pinto minhas aquarelas por prazer pessoal e fui professor de ballet clássico por 12 anos. Aliás, devo ao ballet minha incursão pelo mundo da cozinha. Quando ganhei uma das 20 bolsas que Márika Gidali e Décio Otero resolveram oferecer numa audição para 200 candidatos em 1981, algumas das aulas que tive de fazer para cumprir a carga horária necessária como bolsista, aconteciam durante o período vespertino. Para isso comecei a trabalhar à noite. Restaurantes sempre foram uma opção satisfatória para levar um plano desses a cabo. Deu certo. E me levou um pouco mais além, como você vê.
Nada do que fiz foi pela metade. Procuro colocar arte em tudo que faço, não sei atuar de outra forma. Trago o belo em tudo que me cerca. Na minha relação com os amigos pessoais, com os meus clientes, com os mendigos da rua, que conheço pelo nome, com os cachorros, com as flores, com os poetas que amo... Toda minha vida está rodeada de amor e beleza. Me arrependo dos erros que cometi. Mas até isso deu uma guinada na minha vida. Tive que comer o pão que o diabo amassou muitas vezes, e sabendo fazer pães muito bem, você mesmo um grande apreciador dos meus integrais. Os tombos nos fazem dar de cara com diamantes que não veríamos de outra forma como simples transeuntes.
Tá, vamos logo ao ponto. Uma bela manhã, antes de o restaurante abrir, um cliente veio falar com o Leonardinho sobre um problema que tinha. Uma cliente nossa, para quem ele trabalhava, estava triste, muito triste, na verdade, pois ela não comia o doce de abóbora de que tanto gostava havia muito tempo, já que o doce estava proibido de se levar 'para viagem'. Todos os dias ele vinha buscar comida para ela. E segundo ele, essa cliente era a Rita Lee.
Ouvi a história bastante cético a respeito. As pessoas podem tentar burlar as regras de qualquer jeito. Conheço a linguagem dos estômagos. Eles não sabem cantar belas canções. Ao contrário, roncam! Ok. Eu tinha num pequeno tupperware uma sobra de um doce que saíra excelente e poderia dispor dele. Mas como cortesia. A venda do doce para viagem estava vedada. Eu não seria cretino de quebrar minhas próprias regras. Nem pra Rita Lee, nem pro Mick Jagger que fosse! Quer um tratamento diferenciado? Contrate o cozinheiro, baby!
Veio o rapaz buscar o almoço da suposta cliente e postou-se à porta da minha cozinha como um enviado de Helena Blavatsky. Olhei descaradamente para ele e despachei: Esse doce é mesmo para a Rita Lee?
E por que eu mentiria?”
Por que não sei, cara! O fato é que as pessoas mentem. Olha, toma esse doce que está aqui e isso é uma cortesia, ok? E pergunte para sua patroa, se ela for mesmo a Rita Lee, quais eram os livros que ela costumava comprar na Livraria Horus. Daí eu vou saber se ela é a Rita Lee mesmo! 
Ele saiu. Não deu resposta. Eu fui jagunço até o último fio de navalha! Não suporto atitudes de vassalagem. Você pode ser digno limpando latrinas. E pode ser um covarde quando pensa que está trabalhando para a CIA e vende sua humanidade por nada.
O fato é que à hora do almoço, alguns rapazes vieram e jogaram sobre o balcão do caixa do restaurante a comida que o rapaz havia comprado há pouco. Com tanto mendigo sem o que comer pelas ruas! Vai procurar lógica nos estômagos contrariados, Antonio! É assim que eles roncam, latindo... E para complementar, uma voz feminina disse ao telefone numa ligação quase que à mesma hora:
-Eu quero que vocês vão todos se foder! Eu não tenho que provar nada pra ninguém!”
Talvez fosse ela mesmo! Não me importa! O final da história é que ela não teve o doce, que voltou e que eu mesmo comi, só por desaforo. Com uma tenra fatia de queijo minas...
Não ouvi mais falarem nada a respeito. Mudei o nome de uma das quiches que fazia por precaução. Não quis correr o risco de pagar royalties. Ficou sendo Bauru com Ervas Frescas e não Quiche Rita Lee, como um dia batizei essa quiche de queijo, presunto e ervas (salsa, manjericão e tomilho!). 
Meu amor pela pessoa dela, sua importância em minha juventude e em minha identidade de paulista e brasileiro, como ela, continuam a ser um marco. Nada mudaria isso. Como apagar sua doce imagem dos anos 60 cantando com os Mutantes na TV Record com um coraçãozinho pintado no rosto? O coração não esquece essas referências... A Rita pra mim está além dos seus eventuais pecados. E eu não sou um deles, com certeza! 
Se foi mesmo a Rita, Antonio, não posso afirmar. O fato não diminui em nada minha apreciação pela pessoa dela, como já lhe disse!
Meus heróis estão muito acima das cordas de uma guitarra. Talvez eu fizesse exceções para Guimarães Rosa, Rumi, Fernando Pessoa ou Hafiz. Mas os meus heróis, mesmo quando estão insatisfeitos, costumam pagar a conta e saírem para passear por toda a rua, sem xingar os cozinheiros. 


domingo, 1 de dezembro de 2013

As Flores do Ipê Amarelo



Léo Querido, escrevi para você na semana passada, mas relendo a mensagem, no meio da redação dela desisti completamente de mandá-la. Achei que depois de um intervalo, enviar uma mensagem repleta de queixas pelo momento seria algo inferior e não quis compartilhar um instante de tensão, achei que seria muito inapropriado. 
Muita da minha energia e do meu tempo para escrever tenho dispendido nos blogs. Não param de surgir coisas novas e as cartas que tenho escrito tanto para você como para Chela e Mará, as irmãs da Maga em Araraquara, têm sido um impulso para compor novos textos. Há um blog de cartas, inclusive duas endereçadas a você estão lá. Mas outros textos estão surgindo e em paralelo as poesias respondem de outra forma. Pareço entrar de repente numa sala de espelhos e adivinhar em cada canto uma revelação que esteve ali esperando por ser descoberta de alguma forma. Léo, não me lembro de nenhuma época em que escrevesse tanto minhas próprias coisas.
E as aquarelas também, que não param de me atormentar. Com elas estou sempre em falta. Às vezes surgem como relâmpagos. É só seguir o lampejo. Faróis em pleno alto-mar. Algumas serão suas. E só de escrever isso agora, minha lista de débitos com elas só faz aumentar. Além das séries de pimentas, pássaros locais e still life ainda quero trabalhar algumas paisagens. Criar é a melhor e mais fiel companhia. Não há méritos. Mas não há garantias, só esforços.
Observar como o processo de criação se dá tem sido uma surpresa. As poesias sempre aconteceram de uma forma própria, parecendo seguirem leis que não estão de todo sob meu controle ou possibilidade de visão. Os textos por seu turno, tratam muitas vezes de várias perspectivas ao mesmo tempo e ao final tudo se amarra. Novamente surge a analogia da sala de espelhos. E às vezes de uma forma completamente independente de como havia concebido o rumo da narrativa, surgem encruzilhadas onde entro confiante para depois colher o assombro na conclusão de tudo. A Mará tem mandado uns comentários estratosféricos para mim e que têm me surpreendido e encorajado ainda mais. Foco de uma visão literária afiada como a dela, onde tudo ela analisa sob um ângulo linguístico e extremamente treinado, o que concluo muitas vezes é que a coisa brota de mim totalmente isenta do meu controle ou capacidade. Vem de um além-mim. A ousadia de tratar grandes oitavas nos mostra nossa dimensão e tamanho, assim como aponta possibilidades e transcendências das quais não somos lúcidos a respeito.
Incrível que depois de passar uma vida escrevendo ainda encontre tanto material a ser compreendido. 
A energia do outono tem trazido maior introspecção. O jardim mudou por completo. Imediatamente as folhagens adquiriram mais vida  e as flores começaram a surgir. Preciso tirar logo alguns cactos da terra porque talvez eles ressintam a temperatura que diminui cada vez mais. Estou mais silencioso. Pareço viver uma nova estação também. Tomado por vocabulários e verbos. Penso em comida algumas vezes, mas nada que me tome o tempo e a inspiração. E com você o tempo todo no meu sentido como uma companhia constante e ausente. E aquilo que poderia parecer antagônico se mostra gentil como um bebê que quieto dorme.
Escrevi para a Eliana dizendo que a única coisa da qual realmente sinto falta no Brasil é do Ipê. É óbvio que não tenho claro as fronteiras entre você e o restaurante, Léo, já que para mim um prolonga a dimensão do outro. Noto também que não deixo muito que meu olhar se solte no vácuo que sua falta me traz. Há um sofrer, uma saudade que não há meio de esfriar e junto com esses sentimentos, uma certeza maior de que faz parte da nossa geografia pessoal este traçado. De que é assim que tem de ser e esse passo para você talvez seja muito mais decisivo que para mim. O mais significativo é que nada disso tem qualquer peso quanto à sinceridade do nosso afeto mútuo e sua grandeza. Ainda que distante de você, há um processo de crescimento conectado entre nossos seres. Um fermento necessário para nossos pães. Espero que tenhamos delicadeza e sabedoria o suficiente para pilotar esse forno!
E minha experiência no Ipê Amarelo, Léo, ainda estou digerindo e tenho certeza de que vai render muito pano pra manga. Com você eu vivi neste lugar um pequeno grande cosmos. Meu único lamento é não ter tido mais equilíbrio emocional e inteligência em momentos onde isso me faltou e, obrigatoriamente, o restaurante como organismo vivo que é, de uma forma ou outra refletiu essa incapacidade. Meus amigos sentem um pouco de ciúme pela dedicação que sempre tive por você. Talvez se eu estivesse no lugar deles sentiria o mesmo. E minha relação com você é algo completamente legítimo, jamais aconteceu um script parecido com este. 
O Retiro está por acontecer e nem por isso tenho me lançado a nenhuma expectativa ou imaginação a respeito dele. No meu último Follow Up estava tão à vontade com o Dan que achei uma brecha para ler "Ein Gedi", poema dedicado a ele. Ficou comovido. E o Dan em Follow Up, Léo, é igual a espada de Manjushri, cuja lâmina é dupla. Corte certeiro em qualquer redundância ou excesso. Mas seu coração de Mestre Compassivo ficou tocado. Bingo.
Bem, uma novidade é que a Andrea está pensando seriamente em vir passear aqui em Novembro. Acho que pode ser muito positivo para ela sair um pouco da rotina de vida que a cerca, principalmente a super proteção de casa que ao invés de fortalecer muitas vezes debilita. Criar... Quem sabe a fórmula? 
Vou manter a carta de lamentações aqui junto a esta. Só para deixar claro que o Cássio já se recuperou 100%. Acabei de socorrer um gato adolescente das garras negras dele agora mesmo, na ruazinha de casa. Macaco Preto! 
Preciso fazer a lição, Tito! Quero te ligar qualquer dia desses. Matar saudades da sua voz. Gostei tanto daquela foto de terno! Fiquei namorando vocês dois na tela ampliando no zoom do View. Essa marca que você tem na sua testa, quase no terceiro olho... O sino de S. João Batista bate as 18:30. Hora de bom menino fazer o dever de casa.
Fique com Todo meu Amor, Tito! Um beijo estalado no rosto da Isa! Sempre seu. No Dharma. C.



quinta-feira, 28 de novembro de 2013

O Cavalinho Azul do Luna Park



O Cavalinho Azul do Luna Park

a MLML

O parque instalara-se naquele canto da praia havia muitos anos. Talvez por gerações estivesse ali. Não se sabia ao certo. Havia muitos rumores sobre o Luna Park. Mas ele sempre nos pareceu fantástico.
Por causa da maresia os brinquedos foram sendo substituídos ao longo do tempo por outros mais modernos. Mas eram basicamente alguns carrosséis, a roda gigante, os carros que trombavam e o grande chapéu mexicano. Havia também barracas de jogos de argolas, incontáveis maçãs do amor revelando groselhas, pipocas coloridas e amendoins na brasa que as negras caiçaras sabiam preparar como ninguém.
Era um parque comum que atendeu a milhares de crianças maravilhadas. Eu não me lembro de ter estado sequer uma única vez em qualquer um daqueles brinquedos. Mas recordo meu deslumbramento só de passar perto do Luna Park. Entrar nele então, era como adentrar um mundo de luzes em movimento, rodopiar sonhos coloridos que ainda não sonhara.
Contaram essa estória muito depois. O caso é que os cavalinhos do carrossel foram feitos pelo velho homem responsável pelo parque. Lembro-me bem dele. Uma figura esguia e branca vagando pelas ruelas a tilintar um colete cheio de chaves preciosas. Para mim elas tinham o acesso a todos os brinquedos, assim imaginava. E seu nome, tão estranho, Mestre Venâncio, ecoando em seu universo giratório por todos os lados, era uma senha incansável, pois havia sempre alguém a chamá-lo, alguém sempre murmurando seu nome pelas aleias daquele mundo de luzes em movimento. Parecia que a muito custo exercia seu papel central de dono da fantasia. Mas a impressão mais sutil é que, na verdade, ele apenas se resignava. Era de todos o que mais fazia de conta. Eu pensava que ele era feliz porque vivia nesse limite do sonho e do dia a dia. Mas não. Ele já vencera os prazos de ser feliz.
Mestre Venâncio era um homem só. Mas nem sempre foi assim. Tivera família numerosa e criara seus filhos ali, dentro do parque.
Porém eles se foram, atrás de outros brinquedos, de outros sonhos, de outras vidas. A mulher que docemente o acompanhara ao longo de muitos anos, um dia também se foi, para o grande carrossel do universo de não sei onde, buscar encantamentos nas estrelas de outros parques, onde todos os dias os anjos dizem amém.
E assim o Luna Park resistiu persistentemente. Nem o tempo nem a maresia são capazes de enferrujar os sonhos. E num momento assim ele começou a esculpir os cavalinhos. Lembrança giratória como um álbum de família. Um para cada filho, e o branco sendo Aracy, nome esquecido de sua amada.
Cavalinhos com nomes parecendo uma vida. Preto, Brincante, Cedo, Piloto, Aracy e Vermelho. Mas Mestre Venâncio esculpira os animais para serem alados, por liberdade intuída, acordo entre um homem e as estrelas à guisa de constelação. Em cada um deles dispusera um par de asas. E não se montava aqueles animais. Não se destinavam a condução infantil ou motivo de brinquedo. Mas giravam o tempo todo, mesmo quando os outros brinquedos estavam parados, para fazer lembrar que o destino conduz tudo a passos largos e espera sempre pela próxima valsa como o mais paciente dos partners. E era ali que ele passava a maior parte do tempo. Um lugar de segredos...
Mestre Venâncio sentado diante do carrossel em movimento... Girando em seus dedos nodosos um dos molhos que os bolsos de seu colete engoliam em segredo de sete chaves. Kombolói grego de país algum. O cabelo já todo branco, a perna direita que vez por outra falhava escorando a bengala nova. E o carrossel em movimento contando em arquétipos de felicidade, sua vida ali quase que por inteiro. Eram assim suas noites até que tudo se apagasse e a vida vazia mostrasse o profundo de seu oco insubstancial. Só as estrelas por companhia. Era difícil dormir. O parque rodopiava suas luzes ainda no escuro de seu velho trailer. Mestre Venâncio no escuro e a eternidade se abrindo. Os olhos fechados vendo luzes recorrendo mandalas insones. Sorrisos dentro das trevas transcendendo túneis...
Foi por volta de não sei quando, ele iniciou do nada um estranho hábito noturno. Dizem que isso sempre acontecera, mas não acredito. Acho que ele planejou tudo, mesmo porque, Mestre Venâncio não era assim uma espécie de deus de não sei quê? Ele podia tudo. Não era mesmo o dono senhor dos brinquedos todos? A um toque seu, todos os brinquedos funcionariam! Sua magia dispensava fórmulas de abracadabras.
E numa noite tudo começou! Entrados novembros e mesmo sendo um sábado, o parque fechou mais cedo. O carrossel, entretanto, continuou girando suas mil e uma noites de todos os dias.
Mas Mestre Cedo Venâncio não foi para a cama.
Aboletou-se no seu banco baixo e começou a entalhar um pedaço de boa madeira olhando os cavalinhos enquanto murmurava uma canção ao deus-dará, olhando sua vida inteira sem olhar para ela...
E foi assim. Canivete que te quero, não há tempo rima ou medida que façam a eternidade ser interrompida. Não é preciso viver dentro da gaiola quando a porta está aberta. Como se soubesse de tudo isso e muitas outras coisas mais insuspeitáveis ainda, o velho Mestre Venâncio descansava o azul longe de seus olhos ciganos em cada um de seus pégasos. E levemente eles agitavam por encanto de condão imediato suas asas de madeira até que elas adquirissem as penas leves de uma gaivota. E depois voavam. Para apenas se confundirem no céu e não serem mais nada. E de encantamento em encantamento, um por um, os cavalinhos se foram. Lendas de outras épocas que se desvaneceram depois da Ponte Pênsil.
Foram ser personagens de outros carrosséis ao longo do grande universo. O último deles, Cedo, o azul, levou consigo aquele homem mágico até que os dois se fundiram numa nuvem que passava casualmente sobre o mar noturno
E o parque todo, na manhã seguinte, também desaparecera para sempre, envolto em brumas, tendo como únicas testemunhas, as ondas, que até hoje contam esse segredo umas às outras enquanto o vento continua ainda cantando aos marujos aquela música em sopranos.



quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Maria do Carmo Rodrigues

Arlequinadas


Meu pai costumava jogar cartas ali todos os sábados. Eram velhos primos afastados cuja árvore genealógica nunca pude compreender muito bem. Ele adquiriu esse hábito quando minha tia ainda morava conosco. Talvez para dar mais liberdade a ela, comprometida agora na meia idade com um partido de ouro que viria a ser um dos seus maiores infernos, Manuel Teixeira inventara-se no gosto de não estar em casa nestes dias.
Era um dos seus pequenos prazeres, se é que ele os tinha. Jamais entendi as regras daquele carteado típico de Madeirenses, a tal da bisca. Mas ao que tudo indica, e com o tempo da neblina dissipada, outras ordens estavam sendo já dispostas num mapa bem acima de nossas cabeças, com cartas previamente marcadas a ferro e fogo e sem ganhadores ao final, diga-se de passagem. Todos, sem exceção, perdemos!
Titia, aos cinquenta e dois anos de idade casou-se afinal, indo viver num bairro bem próximo ao nosso. Aos onze anos comecei a pilotar o fogão de nossa casa. E a pegar gosto pela coisa. Com um menu espartano nossa vida era então regida a arroz branco, feijão e sopas...ecléticas! E batatas cozidas também, isso quando São Benedito, o patrono da cozinha, não me trazia inspiração suficiente e eu constatava entre faminto e desapontado, os tubérculos esquecidos na cesta das cebolas. Amassávamos num prato fundo e comíamos com azeite e sal. Nenhum purê incrementadíssimo que faria como Chef no futuro poderia se comparar àquela nossa refeição frugal e feliz. Meu pai comia calado. Ele não era pessoa de bons garfos. Alimentava-se apenas para sobreviver, sem a mínima fascinação.
O ato de comer sempre fora uma graça que conhecera às duras custas no seu tempo de infância e juventude na Ilha da Madeira, onde toda sua família estava. Único brasileiro, fui alguém que jamais conseguiram colonizar de modo eficiente sem que ironia e sarcasmo se implantassem e eu começasse em seguida a imitar o forte e arrastado sotaque lusitano dos Madeirenses. Cruzes, Abernúncio!
Eu fora criado por nordestinos até os quatro anos de idade. O suficiente para preencher minha ampulheta com farinha de mandioca comida aos bolos misturada ao feijão, e com as mãos, de preferência! Em Exu, no Pernambuco, essa matula era chamada capitão. Uma avó negra, cuja casa recendia a curau de milho verde, cercada de gatos por todos os lados, era uma ilha segura de alfazema à guisa de colo onde eu bebia toda a senzala de seus cantos congos para me fazer dormir. Essa quebrada de preto, ninguém foi capaz de me tirar. Meu avô Jerniel, caboclo índio avermelhado, via minhas reinações atrás dos felinos o tempo todo com seus olhos de sabre e me dizia: Celso Gato! Era outro mote, que terminava sempre comigo respondendo em certo ponto: Eu não sou gato, não tenho rabo! - levantando a parte de trás da camisa para que, rindo, ele me agarrasse em mãos enormes tentando me convencer do contrário com uma salva de cócegas para meus gritos e guinchos em lugares indevidos!
Criei outros rabos quando uma Carta de Chamada trouxe de Portugal até ao Porto de Santos, num dia de calor, uma severa senhora suada que me beijou para meu desconforto aos cinco anos de idade. Ali selara-se nossa relação. Uma ladainha de orações num acento canhestro tomadas ao pé da cama todas as noites só faria crescer em mim a certeza de que, embora os fatos quisessem enfaticamente confirmar, eu nunca pertenceria de todo à Casa Grande. Minha ginga já estava toda armada na mandinga da Senzala. Portanto, de branco ou de português, cedo aprendi, celso gato não tinha nada!


Comecei a frequentar aquele cortiço com meu pai todos os sábados. Quando chegamos, no primeiro dia, ele me pediu que sentasse num degrau da cozinha e por uns dez minutos olhei desinteressado aquela cena muda sem qualquer sentido. Jogavam aos pares e entreolhavam-se desconfiados como se um crime hediondo estivesse subitamente por acontecer.
Minha redenção surgiu rápida na figura de um menino que se recostou à porta e me convidou para brincar. Aos onze anos, brincar para mim já era coisa do passado. Minhas bonecas tinham crescido o suficiente para precisarem dos meus cuidados. Mas aliviado pela chance única, consenti satisfeito e fui.
Ele me levou até a próxima casa, um cômodo e cozinha que seria por alguns anos o meu palácio dourado. Na grande cama de casal, uma menina diferente assistia TV. Pedro apresentou-me a ela: Essa é a minha irmã, Maria.
Duas pequenas bacias de plástico estavam a seu lado repletas de um amontoado colorido parecendo confeitos de bolo. Quê isso? - perguntei curioso.
- É florzinha! Não tá pronto ainda! É pruma dona que vem amanhã aqui buscar; falta ainda pôr nos buquezinhos! Toda semana ela vem. É serviço que eu faço pra fora! Não tá pronto ainda! - insistiu, guardando com mãozinhas pequenas seu precioso trabalho.
Tentou pacientemente explicar-me como as pilhas de pétalas eram desfolhadas, depois colocadas em pistilos de arame cobertos com papel de seda verde passado em cola e um pedaço de lã amarela numa das pontas, dobrada e torcida, se descabelava depois numa corola pronta para a próxima primavera. E houve muitas... Mas não entendi mesmo assim.
Ela era tímida. Estava vestida num pijama curto que deixava à mostra as pernas morenas de sol. Não pude deixar de notar seus pulsos desproporcionalmente fortes para sua idade e cuja formação me causou estranheza. Tínhamos a mesma idade, fiquei sabendo a seguir. Seu fio metálico de voz tinha o tom agudo e débil de uma criança de cinco anos. Os cabelos extremamente curtos não ocultavam seu rosto irregular. Seu tamanho também era inferior ao esperado para sua idade. As solas de seus pés minúsculos eram fantásticas, lisas como as de um bebê recém-nascido. Descobri a razão quando Encarnação, sua mãe, foi chamada por Pedro, num certo momento, para levá-la ao banheiro. Meu monstrinho adorável era paralítica.
Tia Encarnação recolheu depois as florzinhas de pano que Maria fizera, colocou numa caixa maior e apressou-se para o carteado na casa dos sogros ao lado, sorrindo brejeira ao sair e perguntar se eu queria um pedaço de bolo... Claro que eu queria!
- Você já jantou? Não? Ô Pedro, esquenta um pouco de minestra pra esse menino e depois cê dá o bolo de fubá pra ele comer de sobremesa. Saiu correndo, acatando os brados dos parceiros de mesa!
Minestra era uma mistura de arroz e feijão com água fervendo e sal que se transformava numa sopa, acrescida no prato de algumas gotas de limão. Era a comida que os trabalhadores da cana-de-açúcar faziam ao chegar em casa após a lida, aprendi.
Sertaneja de Araraquara, Tia Encarnação, ex boia-fria de engenho de cana, mantinha vivos os costumes da gente do sítio. Sua casa pequena era um espelho de limpeza. Tudo em ordem, simplicidade e asseio, como só as caboclas do interior têm o primor e a ciência de manter. A cozinha tinha o colorido aroma das muitas frutas que trazia da feira com suas próprias economias de lavadeira. Não me lembro de ter ouvido dela uma única reclamação que fosse, seja com seu destino ou com o fardo que ela heroicamente suportou em resignação e silencio por quarenta anos.
Minha amizade com Maria durou sua vida inteira. Aprendi com ela o ofício das florzinhas e sua produção logo tornou-se uma das melhores. Juntos nós trabalhávamos bem. Ríamos muito de tudo e todos. Fiz para suas bonecas coleções intermináveis que atravessaram estações. Ela tinha por mim um apreço que não demonstrava com outras pessoas. Tentei ensiná-la a ler mas não obtive sucesso algum. Nunca fomos além da primeira letra do alfabeto. No segundo dia de aula, seu espírito selvagem e débil arremessou os cadernos longe: - Eu não quero mais saber dessa merda!
Longe também foram nossos trabalhos infantis. Houve um tempo de uma pequena confecção do bairro nos entregar remessas de calças para que pregássemos botões. Tia Encarnação era quem fazia as barras. As bonecas ficaram nuas desde então.
Três dias na semana passávamos nossas tardes ocupados com linhas e agulhas. A hora de voltar para casa era sempre um transtorno. Ela fazia questão de me acompanhar até o portão. Subia a longa escada em marcha a ré sentada no chão, locomovendo-se como podia. Os fundos das calças sempre remendados e os punhos com o decorrer dos anos criando uma calcificação completamente atípica e grotesca. Meu pequeno monstrinho, anjo terrível acenando no mínimo três adeuses e um beijinho atirado no final.
Eu tinha me transformado num péssimo aluno e ótimo amigo. Para consternação de todos, minhas únicas notas “Excelentes” - conceito adotado no ensino de então - eram Francês e Português, as quais também não estudava de todo.
Por conta disso, meu pai, português, cansado e viúvo até sua última raspa de alma, resolveu que eu deveria estudar num colégio interno. Os conhecidos eram caros demais para seu salário de pedreiro. Por fim, não se sabe de onde, surgiu uma remota possibilidade de estudar num seminário no interior de São Paulo... em Araraquara, terra dos primos que Maria tanto adorava e onde passava algum tempo na casa das tias uma vez por ano. Mas nem isso pôde consolar sua inválida tristeza.
Assim, numa noite chuvosa de sábado, fui pela última vez à casa de Maria. Nossa minestra daquela noite ganhou um tempero extra à base de limão-cravo e lágrimas sentidas. Lancei-lhe à mesa uma última injúria de criança: - Viu, se você tivesse aprendido a ler, agora a gente podia escrever cartas um pro outro!
-Vai pra merda, Neno! Pratos e talheres ao chão...


O Verbo Divino

A Congregação do Verbo Divino mudou definitivamente minha vida. Uma rotina educacional rígida com várias horas de estudo, trabalho braçal e esportes. Nossa vida comunitária era intensa, uma grande família de oitenta alunos. Um jornal interno lido quinzenalmente no domingo à noite contava sempre com minhas poesias rimadas e de cadência marcada. Irmão Nélson Pires André, nossa mãe preta e grande estudioso da Língua Portuguesa, foi um dos meus grandes incentivadores na arte da escrita. Aulas de Latim com um gênio-reitor chamado Padre Joaquim Piepcke ampliaram minha paixão pelos idiomas estrangeiros.
Quando voltava à capital em férias, trazia rapadura e favo de mel do Mercado Central para meu monstrinho. Umas duas ou três bourbons da grande mangueira da entrada completavam seu tesouro anual, amassado entre as roupas na minha mala. Tinha prazer em vê-la lambuzar de amarelo e felicidade sua boquinha deformada!
Eu me transformara agora em bom aluno. A vida em comunidade organizou meu mundo interior. Para que mantivéssemos contato com o mundo externo, estudávamos fora das dependências do Seminário. No Colégio Progresso, a pedra filosofal veio de encontro. Conheci Li, irmã caçula de uma Mestra Iluminada e que viera dançar em minha formatura da Oitava Série. Foi um presente inestimável. Um som de flauta foi ouvido na rua aquela noite. Seu eco perpetuou-se por quatro décadas pelas colinas da bucólica Spring Valley, pelos becos frios da vida noturna e sórdida da Cidade de São Paulo, vindo em seguida bater forte e alto de encontro às pedras do Vale de Ein Karem até atingir meu coração entreaberto como o ressoar de um gongo tibetano. Pautas que vêm diretamente desta partitura escrita em silencio pelos deuses do alto e que de nós sorriem em segredo. Jogos divinos...
Para ir ao Progresso, costumava cortar caminho pelo Cemitério São Bento, vindo da Avenida Espanha, só para poder passar embaixo do incêndio de flamboyants da Rua Humaitá. Na entrada deste portão dos fundos, recolheria do chão alguns naipes caídos anos depois e leria mapas entrecruzados nas linhas da minha mão, numa tradução amarga e irônica que eu seria obrigado a beber da realidade visível como uma cicuta em reticências.
1974 foi meu último ano como seminarista. O cansaço de viver levara meu pai afinal. Voltei para a capital depois da grande encruzilhada que norteou por completo meu futuro. Minha independência foi celebrada com Yoga, Ballet Clássico e Macrobiótica. Logo estava colaborando com Li e aprendendo com ela grandes lições. Então seu império de musa instalou-se no meu coração de uma vez por todas. Frisos que abrigaram sede de seus mármores...
Havia um halo intraduzível em torno dela. Raros momentos de convivência eram o suficiente para me introduzir num ecossistema rarefeito onde até meu modo de falar sofria influências que repercutiam biologicamente meses a fio. Inventava motes que duravam curto espaço de tempo para depois abandoná-los como qualquer um dos seus figurinos vencidos do ano anterior. Tanto podia ser extremamente enérgica quanto teatralmente cômica até o último, inesperada e tão legítima quanto um sol. Mágica. Maga Li.


Um kabuki de possibilidades percorria seus passos através do mundo com a complexidade e o brilho de seu ser indecifrável. Não havia como não segui-la, como não buscá-la e incondicionalmente encontrá-la, indivisível fragrância, justificada em puro perfume espargindo encanto onde quer que suas pontas pisassem. Sua passagem criava um rastro luminoso de pedrinhas de brilhantes. Pura magia.
Sua independência, uma inspiração de liberdade, e eu, pássaro vira-lata, criei plumas por minha devoção a ela, que as coloria pacientemente sempre que se desbotavam em minhas ousadias de fênix. Li gastou muita tinta comigo! Em muitos momentos obscuros de cerração e neblina, sua rua ladrilhada foi meu único caminho seguro na esperança de alguma cor e farol para meu amor passar.
Iniciei todo o percurso de uma via sacra em várias escolas numa vida completamente alternativa e maluca de professor. Meu contato com Li estreitou-se ainda mais fortemente. Dei aulas em sua academia num certo período. Ela jamais precisou de mim profissionalmente. Uma fera que se entregara de corpo e alma para a Dança não precisaria de corifeus. Nunca fui bailarino à sua altura. Nem coreógrafo. E no entanto ela dançou prontamente comigo algumas coisas que criei e que foram inesquecíveis para mim. Paz de Deus. Havia uma cumplicidade mútua que se estendia além da concessão que ela sempre me ofereceu como uma igual, uma alma gêmea, sem comparações técnicas ou sociais. Nossa colaboração era uma correspondência biunívoca a favor de algo que estava acima de qualquer ordem ou valores. Estar com ela num teatro era ter um respaldo incomparável, ao ponto de, até o cheiro das coxias, ser algo tão familiar quanto cozinhar um arroz integral com algas marinhas.
Demorei para afiar minha técnica e ser capaz de criar algo convincente. Tinha planos mirabolantes de criar um ballet-cartoon onde ela seria o coringa tentando driblar as cartas do baralho para prendê-las numa caixa. Alguns clichês de desenhos animados seriam usados. Lembro que conversamos sobre esse roteiro por telefone. Uma música de Count Basie seria perfeita para a peça.
Impossível. Um Ás atravessou nossa linha. Terminei a ligação chorando, certo do que estava por vir. Criei uma coreografia para suas alunas: “O Segredo da Flor de Ouro”. E ali mesmo, ainda perto do telefone já desligado, comecei a escrever uma série de quatro canções inspiradas na 3ª Sinfonia de Mahler e dedicadas a Li, tentando de alguma forma criar uma moldura sublime para aplacar minha dor irreparável.
Não comparecemos ao espetáculo de encerramento do ano de 1993. Minha musa partiu num verão de 94 deixando o sol daquele ano um pouco mais frio. Eu também fechei meus olhos para a Dança. Jamais esses olhos voltariam a se abrir.
Voltei ao São Bento num dia de janeiro e não lembrei dos Flamboyants incinerando o lado oposto. Mesa virada! Jogo perdido.


Truco

Maria estranhou minha tristeza. Não poderia compartilhar meu gólgota com sua cruz. O silencio prevaleceu em nossos passeios. Finalmente depois de tantos anos ela concordara em usar uma cadeira de rodas. Morávamos agora no mesmo bairro. Nunca falei de Li para Maria, assim como nunca dancei para ela. Lia minhas poesias para sua aprovação, ciente de que ela não tinha a mínima noção do que eu falava. A cada verso ela retrucava... Hum! Hum, como se aquilo fosse uma piada conhecida e contada até a exaustão para sua impaciência de ouvinte equivocada.
Com o passar dos anos ela desenvolveu uma bronquite crônica. O uso de medicamentos que auxiliavam as vias respiratórias causaram alteração em seu metabolismo e decorrente disso um estado de anemia profunda exigia que tivesse de recorrer ao banco de sangue constantemente. Os braços infantis criavam hematomas assombrosos quando voltava das internações. Nos víamos com frequência. A cadeira de rodas fora desativada e mofava no porão da casa. Não precisaríamos mais dela para cumprir nosso próximo itinerário.
Um aparelho foi colocado próximo à sua jugular para facilitar as transfusões. Uma corrida contra o tempo instalou-se paralelamente. As internações cresceram em progressão geométrica. O inverno de 1999 foi rigoroso. Pneumonia dupla.
São 17:00 hs. Já de banho tomado para sair recebo um telefonema. Tia Encarnação ao telefone me pedindo para correr até a Santa Casa. Ela sofrera um ataque cardíaco. Nos aparelhos foi informada pela mãe que eu estava a caminho. Abriu os olhos e mirou a mãe sem poder dizer nada.
Tomei um táxi. O motorista seguiu um caminho que passava pelo cemitério mais próximo. Senti ali um mau presságio. Conheço esse jogo. Sei quando os deuses começam a me dar pistas.
Não houve tempo. Esperava no saguão para vê-la quando aconteceu. Um botão despregou-se de minha camisa e caiu no chão. Não há meios de costurar o tempo.
Saí dali direto para o meu trabalho. Tarde da noite liguei para Tia Encarnação para saber do funeral. Ela queria ser enterrada em Araraquara, terra que tanto amou. Minha terra também.
Devido a isso sua autópsia seria feita em Taboão da Serra, protocolo seguido por todos os serviços fúnebres que se dirigiam a outras cidades que não São Paulo. Nesta noite não lavei a cozinha com meus peões. Desculpei-me e disse-lhes que iria para casa mais cedo. Tomei um táxi, como era de costume na madrugada. Próximo a nossas casas, na Avenida Engenheiro Caetano Álvares, um carro cruza meu caminho. Serviço Funerário. Li a placa: Taboão da Serra.
-Amigo, por gentileza, se na Avenida Imirim esse carro dobrar à esquerda, pode segui-lo, por favor?
-Uai, por quê, moço?
-Pode ser que esteja enganado. Mas talvez eu tenha uma grande amiga ali dentro.
-Moço, desse jeito o senhor tá me assustando.
-Não tem nada pra se assustar, Amigo. Se acontecer como lhe disse, faça como pedi, ok?
O carro dobrou à esquerda. Tirei uma nota da carteira e saí do táxi quando o motorista parou em frente a casa de Maria. O pai, seu padrinho de batismo e Pedro esperavam no portão. Segurei a quarta alça de seu pequeno caixão. Uma palavra em sua camiseta P: Friends. Sorriso dos deuses. Algo chegara a um fim. Olhei suas pequenas mãos. Há situações tão vastas que chorar torna-se uma redundância...
Voltei ao túmulo de Li várias vezes ao longo dos anos. Incensos. Flores amarelas, brancas, vermelhas...menos a primavera. Uma lápide cuja construção e sintaxe reconheceria mesmo cego: “A Dança foi sua...”
Certa vez, antes de retornar à Morada do Sol, passei em casa de Tia Encarnação. Perguntei a direção do lugar onde o corpo de Maria fora sepultado.
-É fácil, filho. Sabe o portão do fundo, como quem vem do seminário onde cê estudou?
Chegando à cidade fui direto ao São Bento, tendo o capricho de entrar pelos fundos. Sentei-me diante da lápide: “...de uma Obra sem fim.” Incensos. Flores. Meu coração será sua eterna primavera, Maga Li! Um flash murmurado então em meu pensamento.
Os deuses são tão irônicos que não seria impossível que daqui eu visse o túmulo de Maria.
Reconheci a fotografia de longe. Oito túmulos de diferença. Deixei uma pequena boneca de pano junto à sua foto e parti. Chorei amargamente.
Poderia terminar minha história amarrando aqui as cartas do baralho para dar-lhe um belo desfecho literário. Mas não poderia encerrar minha realidade com uma bela caixa adornada por um laço dourado. Seria cínico e irreverente com a ironia divina. A dor jamais se transforma em ouro. Tiramos dela, quando muito, apenas um processo de fundição. É só o que a vida nos permite derreter ao longo do tempo. Divinamente.