terça-feira, 10 de dezembro de 2013

O ser físico do Sol que nos incendeia




Uma janela para o Monte Kailash



Tanta saudade de você... Ouvindo Marin Marais... Há alguns meses me doía ouvir essa música. Pensava em você, na nossa cozinha...
Até hoje quando olho minha bancada vazia que você fotografou um dia me dá um nó na boca do estômago. E não é de fome. Evito olhar para essa foto. Mas sempre esbarro nela em minhas imagens. A dor não se apaga. Ela cria cicatrizes. Tribais. Lembram tatuagens. Feitas com o fogo do coração. Combustíveis que movem a existência... Forno e fogão.

Você é minha grande saudade. A única saudade que cria um oco por dentro. Um restaurante faz a gente viver grandes verdades. Sempre lhe falei que a cozinha é uma escola esotérica. Faz todo sentido. A cozinha é um cosmos de possibilidades. Acho que trabalhar em cozinha me preparou muito para abraçar o Quarto Caminho e as idéias práticas de Gurdjieff, ele próprio um grande e exímio cozinheiro. Os cozinheiros carregam consigo o fogo do inferno e as cinzas bentas do paraíso. Eles são anjos e demônios. Você não, Tito, você é anjo o tempo todo.

Não trocaria meu destino de peão por nada nesse mundo. A cozinha me deu tudo. Inclusive você, que tenho como meu filho de sangue. Tenho quase certeza que já fui seu pai numa outra vida. Chamei muitos amigos de filho e filha. Mas um eco ressoava dentro de meu coração quando me dirigia a você assim. E só de pensar, me colocar neste sentimento, o mesmo som move-se quieto e latente como um leito de rio, calmo e firme como um Buda, um eco diferente, vindo de um ponto que não tenho claro.

Talvez seja mesmo algo que vem da eternidade, ventura que não conhece noção de tempo. Atemporal. Por isso você está comigo todos os dias, em todos os momentos. Mesmo minha casa tem um preparo sempre dirigido à sua visita com a Isa e que também é atemporal, acontece desde sempre. Ela existe agora, com todo esse Oceano geográfico envolvendo paisagens imaculadas.

O universo é um organismo vivo que não conhece cisões. É um crime contra si mesmo pensar algo contra o próximo. Todo mundo é uma coisa só. O mundo é um moinho, como dizia Cartola. Tudo o que fazemos, fazemos a favor ou contra nós mesmos. Não há despertar individual se os seres humanos estiverem cegos. Por isso o Mahayana é tão abrangente. Nada é individual. Isso é insano. Só é lamentável o quanto nos esquecemos dessas grandes e magnânimas verdades.

Conversava um dia desses a respeito da oitava do despertar. E de como muitas vezes não entendemos como pessoas saem de nossas vidas porque decidimos num certo ponto, rumos que pertenciam exclusivamente à nossa busca pessoal. Pessoas do Instituto que nunca mais vi... Amigos que não entendem porque continuo na Escola... Amigos da Escola que não entendem porque estou praticando Mahamudra...

Acima de tudo está a busca. A incansável busca da qual falei minha vida toda em tantos poemas, mesmo quando não sabia que buscava algo. Quando tinha oito ou sete anos de idade, me olhei uma vez no espelho do banheiro da minha avó Maria e  me perguntei: Quem sou eu? Tenho isso vivo dentro de mim. E por anos na minha infância carreguei um sentimento que me batia forte sobre a minha impressão de estar vivo, dentro de um corpo, como se de repente meu ser falasse mais alto que meu organismo...

Não significa que fui precoce, aliás não fui precoce em nada. Em tudo demorei para amadurecer. Mas nunca tive pressa. Meus esforços, humildes esforços, são parte da linha vertical do tempo, aquela que acontece em ascensão. Por isso não deixo essa Escola. Mesmo que o que se diga ou faça não me toque pessoalmente, não me atenda internamente, a gratidão é um elemento básico e presente na minha oitava do despertar, esse o grande tesouro da minha vida, que não é meu, assim como também a minha vida, que não me pertence de todo. Mesmo em meus oito anos longe da Escola, quando estive no Instituto Gurdjieff, Robert sempre continuou presente na minha alma.

Rodeei um mundo para te dizer que você, querido filho, mais que ninguém neste mundo, é também parte viva do meu trabalho interior. Que universo misterioso este nosso! Você vai me levar consigo ao longo de muitas vidas... O meu despertar é o seu despertar. Quanta claridade ao nosso redor! Em alguns momentos nossa realidade é muito mais eletrônica que molecular. Esse Sol, que tanto nos incendeia e que jamais será negado!
Todo Amor. Beijos na Isadora. Seu no Dharma. C.






Um comentário:

  1. O melhor de tudo é que nada é tão sedimentado que não possa sofrer mudanças. Dois anos depois dessa postagem, saí definitivamente do Quarto Caminho para abraçar com maior liberdade o que somente o Budismo Mahayana poderia me responder. Conduta e simplicidade são a melhor resposta. Mas tudo deve ser devidamente valorizado e reverenciado na vida espiritual. Nada pode ser rejeitado. Corre-se o risco de deteriorar as próprias experiências positivas que se viveu num certo período. Definitivamente, não se joga pedras na cruz. Mesmo porque de diferentes maneiras e em cores novas ela continua firme em nossos ombros. Tudo é Um.

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