Uma janela para o Monte Kailash
Tanta
saudade de você... Ouvindo Marin Marais... Há alguns meses me doía
ouvir essa música. Pensava em você, na nossa cozinha...
Até
hoje quando olho minha bancada vazia que você fotografou um dia me
dá um nó na boca do estômago. E não é de fome. Evito olhar para
essa foto. Mas sempre esbarro nela em minhas imagens. A dor não se
apaga. Ela cria cicatrizes. Tribais. Lembram tatuagens. Feitas com o
fogo do coração. Combustíveis que movem a existência... Forno e
fogão.
Você
é minha grande saudade. A única saudade que cria um oco por dentro.
Um restaurante faz a gente viver grandes verdades. Sempre lhe falei
que a cozinha é uma escola esotérica. Faz todo sentido. A cozinha é
um cosmos de possibilidades. Acho que trabalhar em cozinha me
preparou muito para abraçar o Quarto Caminho e as idéias práticas
de Gurdjieff, ele próprio um grande e exímio cozinheiro. Os
cozinheiros carregam consigo o fogo do inferno e as cinzas bentas do
paraíso. Eles são anjos e demônios. Você não, Tito, você é
anjo o tempo todo.
Não
trocaria meu destino de peão por nada nesse mundo. A cozinha me deu
tudo. Inclusive você, que tenho como meu filho de sangue. Tenho
quase certeza que já fui seu pai numa outra vida. Chamei muitos
amigos de filho e filha. Mas um eco ressoava dentro de meu coração
quando me dirigia a você assim. E só de pensar, me colocar neste
sentimento, o mesmo som move-se quieto e latente como um leito de
rio, calmo e firme como um Buda, um eco diferente, vindo de um ponto
que não tenho claro.
Talvez
seja mesmo algo que vem da eternidade, ventura que não conhece noção
de tempo. Atemporal. Por isso você está comigo todos os dias, em
todos os momentos. Mesmo minha casa tem um preparo sempre dirigido à
sua visita com a Isa e que também é atemporal, acontece desde
sempre. Ela existe agora, com todo esse Oceano geográfico envolvendo
paisagens imaculadas.
O
universo é um organismo vivo que não conhece cisões. É um crime
contra si mesmo pensar algo contra o próximo. Todo mundo é uma
coisa só. O mundo é um moinho, como dizia Cartola. Tudo o que
fazemos, fazemos a favor ou contra nós mesmos. Não há despertar
individual se os seres humanos estiverem cegos. Por isso o Mahayana é
tão abrangente. Nada é individual. Isso é insano. Só é
lamentável o quanto nos esquecemos dessas grandes e magnânimas
verdades.
Conversava
um dia desses a respeito da oitava do despertar. E de como muitas
vezes não entendemos como pessoas saem de nossas vidas porque
decidimos num certo ponto, rumos que pertenciam exclusivamente à
nossa busca pessoal. Pessoas do Instituto que nunca mais vi... Amigos
que não entendem porque continuo na Escola... Amigos da Escola que
não entendem porque estou praticando Mahamudra...
Acima
de tudo está a busca. A incansável busca da qual falei minha vida
toda em tantos poemas, mesmo quando não sabia que buscava algo.
Quando tinha oito ou sete anos de idade, me olhei uma vez no espelho
do banheiro da minha avó Maria e me perguntei: Quem sou eu?
Tenho isso vivo dentro de mim. E por anos na minha infância
carreguei um sentimento que me batia forte sobre a minha impressão
de estar vivo, dentro de um corpo, como se de repente meu ser falasse
mais alto que meu organismo...
Não
significa que fui precoce, aliás não fui precoce em nada. Em tudo
demorei para amadurecer. Mas nunca tive pressa. Meus esforços,
humildes esforços, são parte da linha vertical do tempo, aquela que
acontece em ascensão. Por isso não deixo essa Escola. Mesmo que o
que se diga ou faça não me toque pessoalmente, não me atenda
internamente, a gratidão é um elemento básico e presente na minha
oitava do despertar, esse o grande tesouro da minha vida, que não é
meu, assim como também a minha vida, que não me pertence de todo.
Mesmo em meus oito anos longe da Escola, quando estive no Instituto
Gurdjieff, Robert sempre continuou presente na minha alma.
Rodeei
um mundo para te dizer que você, querido filho, mais que ninguém
neste mundo, é também parte viva do meu trabalho interior. Que
universo misterioso este nosso! Você vai me levar consigo ao longo
de muitas vidas... O meu despertar é o seu despertar. Quanta
claridade ao nosso redor! Em alguns momentos nossa realidade é muito
mais eletrônica que molecular. Esse Sol, que tanto nos incendeia e
que jamais será negado!
Todo
Amor. Beijos na Isadora. Seu no Dharma. C.
O melhor de tudo é que nada é tão sedimentado que não possa sofrer mudanças. Dois anos depois dessa postagem, saí definitivamente do Quarto Caminho para abraçar com maior liberdade o que somente o Budismo Mahayana poderia me responder. Conduta e simplicidade são a melhor resposta. Mas tudo deve ser devidamente valorizado e reverenciado na vida espiritual. Nada pode ser rejeitado. Corre-se o risco de deteriorar as próprias experiências positivas que se viveu num certo período. Definitivamente, não se joga pedras na cruz. Mesmo porque de diferentes maneiras e em cores novas ela continua firme em nossos ombros. Tudo é Um.
ResponderExcluir