Ok.
Aqui vai a segunda parte da minha saga com Rita Lee, Antonio! Cheguei
a te falar do Doce de Abóbora que fazia no Ipê Amarelo, não é?
Sempre foi meu doce predileto. Mas passou a ser realmente, depois que
experimentei o doce maravilhoso que minha amiga Dalva Imaculada fazia
e ainda faz até hoje. Com ela aprendi todos os truques: a qualidade
da abóbora pela quantidade de fibras, seu tempo de apuração, nível
de fogo e etc. Só para serviço de utilidade pública, gostaria de
lembrá-lo, Antonio, que utilizo técnica de confecção de geleia
para fazê-lo.
Para
que a geleia chegue a um ponto consistente, é necessário que ela
seja totalmente resfriada após algum tempo de fervura. O açúcar
cristaliza-se e dá consistência ao doce. No dia seguinte termino de
apurá-lo deixando ferver novamente em fogo baixíssimo desde o
início do novo aquecimento. Todas as especiarias (sete ao todo) são
colocadas num buquê garni para que não se percam no doce. Sempre
achei desagradável encontrar cravos na hora de comê-lo, geralmente
com uma boa fatia de queijo fresco, como se faz no interior de São
Paulo, onde está a São Paulo de verdade, resguardada por uma
identidade sertaneja mas cosmopolita.
Retiro o buquê garni no dia seguinte, já que ele dormiu toda a noite na
panela larga em que o doce foi cozido para otimizar a redução dos
líquidos. Todos os sabores, essências e o bouquet dos temperos
foram implementados à alquimia deste pequeno tesouro. Não utilizo
coco ralado. Nem todos apreciam. De dez quilos líquidos de abóbora
inicial, são obtidos seis de doce devidamente apurado. É muito trabalho!
Uma
obra de arte que causou furor no Ipê Amarelo nestes cinco anos. E
essa era minha meta: encantar. Não fosse a mistura de vários
temperos e o fogão ocupado com o tacho grande eu faria esse doce
quase à hora do almoço, para causar mesmo, entende? Pelo aroma que
invadiria o restaurante e daria um clima assim de... casa de avó!
Mas nunca quis correr o risco de ter meu doce preferido comprometido pelo óleo dos salteados e salgados em seu interior quase
sagrado. Chegava mais cedo para apurá-lo lentamente no dia seguinte,
sem pedir hora extra, sem manchetes nos jornais, apenas por prazer e honestidade em servir algo não menos que excelente.
Devido
ao trabalho e tempo hábil empenhados nessa bruxaria toda, não
permitia que as pessoas levassem doce para viagem. Cheguei a chamar
atenção de clientes que insistiam em contrariar minhas ordens.
Parece tirania culinária, não é? E é isso mesmo. E o doce era
feito geralmente no final do expediente, para não correr riscos de
nenhum outro mix na iguaria. Eu falava com esse doce, Antonio: Isso,
meu lindo, apura mesmo...
No
final, dependendo da quantidade, gotas de limão cortado na hora
em medidas matematicamente ponderadas. Nada em excesso, como
no portal do Templo de Delfos. O limão vai dar um brilho a ele.
Tive
clientes que comeram esse doce religiosamente todos os dias. Estou
falando de cinco anos, Antonio! Queria tê-lo disponível para
clientes que estivessem se servindo do buffet. Da mesma forma não
permitia que se levasse falafel, um bolinho feito à base de grão de
bico popularíssimo em todo o Oriente Médio. O meu tem dezessete
ingredientes. Também esse, elogiado tanto pela comunidade judaica
quanto pela árabe. Nisso fui hábil e diplomata! Pelo menos em nível
de paladar chegou-se aqui a um acordo. O falafel exige um tempo de
preparação muito grande também. Começa a ser feito no dia
anterior, é frito de forma artesanal e numa quantidade limitada.
O
mesmo com os nossos pastéis artesanais de sexta-feira, feitos pelas
mãos mágicas de bronze grego do meu açougueiro Vitório Rodrigues
dos Santos, um baiano de Boa Nova com a melhor mão para lidar com
comida que já vi nesse mundo. Os pastéis eram disputados e ainda
devem ser porque o Vito é o cara mesmo! Saudades daquele cabra!
Então, devido a esses pormenores e caprichos, tanto o doce de
abóbora quanto o falafel e os pastéis não eram permitidos para viagem.
Quando
me ponho a fazer algo, Antonio, não estou de brincadeira. Você me
conhece bem há quarenta anos. Desta forma, não só aprendi a
cozinhar desde os onze anos de idade, porque éramos eu e meu pai,
como também escrevo, pinto minhas aquarelas por prazer pessoal e fui
professor de ballet clássico por 12 anos. Aliás, devo ao ballet
minha incursão pelo mundo da cozinha. Quando ganhei uma das 20
bolsas que Márika Gidali e Décio Otero resolveram oferecer numa
audição para 200 candidatos em 1981, algumas das aulas que tive de
fazer para cumprir a carga horária necessária como bolsista,
aconteciam durante o período vespertino. Para isso comecei a
trabalhar à noite. Restaurantes sempre foram uma opção
satisfatória para levar um plano desses a cabo. Deu certo. E me
levou um pouco mais além, como você vê.
Nada
do que fiz foi pela metade. Procuro colocar arte em tudo que faço, não sei atuar de outra forma. Trago o belo em tudo que me cerca. Na
minha relação com os amigos pessoais, com os meus clientes, com os
mendigos da rua, que conheço pelo nome, com os cachorros, com as
flores, com os poetas que amo... Toda minha vida está rodeada de
amor e beleza. Me arrependo dos erros que cometi. Mas até isso deu
uma guinada na minha vida. Tive que comer o pão que o diabo amassou
muitas vezes, e sabendo fazer pães muito bem, você mesmo um grande
apreciador dos meus integrais. Os tombos nos fazem dar de cara com
diamantes que não veríamos de outra forma como simples transeuntes.
Tá,
vamos logo ao ponto. Uma bela manhã, antes de o restaurante abrir,
um cliente veio falar com o Leonardinho sobre um problema que tinha.
Uma cliente nossa, para quem ele trabalhava, estava triste, muito
triste, na verdade, pois ela não comia o doce de abóbora de que
tanto gostava havia muito tempo, já que o doce estava proibido de se
levar 'para viagem'. Todos os dias ele vinha buscar comida para ela.
E segundo ele, essa cliente era a Rita Lee.
Ouvi
a história bastante cético a respeito. As pessoas podem tentar
burlar as regras de qualquer jeito. Conheço a linguagem dos
estômagos. Eles não sabem cantar belas canções. Ao contrário,
roncam! Ok. Eu tinha num pequeno tupperware uma sobra de um doce que
saíra excelente e poderia dispor dele. Mas como cortesia. A venda do
doce para viagem estava vedada. Eu não seria cretino de quebrar
minhas próprias regras. Nem pra Rita Lee, nem pro Mick Jagger que fosse! Quer
um tratamento diferenciado? Contrate o cozinheiro, baby!
Veio
o rapaz buscar o almoço da suposta cliente e postou-se à porta da
minha cozinha como um enviado de Helena Blavatsky. Olhei
descaradamente para ele e despachei: Esse doce é mesmo para a Rita
Lee?
“E
por que eu mentiria?”
Por
que não sei, cara! O fato é que as pessoas mentem. Olha, toma esse doce
que está aqui e isso é uma cortesia, ok? E pergunte para sua
patroa, se ela for mesmo a Rita Lee, quais eram os livros que ela
costumava comprar na Livraria Horus. Daí eu vou saber se ela é a
Rita Lee mesmo!
Ele saiu. Não deu resposta. Eu fui jagunço até o último fio de navalha! Não suporto atitudes de vassalagem. Você pode ser digno limpando latrinas. E pode ser um covarde quando pensa que está trabalhando para a CIA e vende sua humanidade por nada.
O fato é que à hora do almoço, alguns rapazes vieram e jogaram sobre o balcão do
caixa do restaurante a comida que o rapaz havia comprado há pouco. Com tanto mendigo sem o
que comer pelas ruas! Vai procurar lógica nos estômagos contrariados, Antonio! É assim que eles roncam, latindo... E para complementar, uma voz feminina disse ao
telefone numa ligação quase que à mesma hora:
“-Eu
quero que vocês vão todos se foder! Eu não tenho que provar nada
pra ninguém!”
Talvez
fosse ela mesmo! Não me importa! O final da história é que ela não teve o doce, que voltou e que
eu mesmo comi, só por desaforo. Com uma tenra fatia de queijo
minas...
Não ouvi mais falarem nada a respeito. Mudei o nome de uma das quiches que fazia por precaução. Não quis correr o risco de pagar royalties. Ficou sendo Bauru com Ervas Frescas e não Quiche Rita Lee, como um dia batizei essa quiche de queijo, presunto e ervas (salsa, manjericão e tomilho!).
Meu amor pela pessoa dela, sua importância em minha juventude e em minha identidade de paulista e brasileiro, como ela, continuam a ser um marco. Nada mudaria isso. Como apagar sua doce imagem dos anos 60 cantando com os Mutantes na TV Record com um coraçãozinho pintado no rosto? O coração não esquece essas referências... A Rita pra mim está além dos seus eventuais pecados. E eu não sou um deles, com certeza!
Se
foi mesmo a Rita, Antonio, não posso afirmar. O fato não diminui em
nada minha apreciação pela pessoa dela, como já lhe disse!
Meus heróis estão muito acima das cordas de uma guitarra. Talvez eu fizesse exceções para Guimarães Rosa, Rumi, Fernando Pessoa ou Hafiz. Mas os meus heróis, mesmo quando estão insatisfeitos, costumam pagar a conta e saírem para passear por toda a rua, sem xingar os cozinheiros.
Meus heróis estão muito acima das cordas de uma guitarra. Talvez eu fizesse exceções para Guimarães Rosa, Rumi, Fernando Pessoa ou Hafiz. Mas os meus heróis, mesmo quando estão insatisfeitos, costumam pagar a conta e saírem para passear por toda a rua, sem xingar os cozinheiros.
Há no final do texto uma referência explícita ao poema "Dobrada à moda do Porto" do maior poeta em Língua Portuguesa, Fernando Pessoa. In Álvaro de Campos.
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