Arlequinadas
Meu
pai costumava jogar cartas ali todos os sábados. Eram velhos primos
afastados cuja árvore genealógica nunca pude compreender muito bem.
Ele adquiriu esse hábito quando minha tia ainda morava conosco.
Talvez para dar mais liberdade a ela, comprometida agora na meia
idade com um partido de ouro que viria a ser um dos seus maiores
infernos, Manuel Teixeira inventara-se no gosto de não estar em casa
nestes dias.
Era
um dos seus pequenos prazeres, se é que ele os tinha. Jamais entendi
as regras daquele carteado típico de Madeirenses, a tal da bisca.
Mas ao que tudo indica, e com o
tempo da neblina dissipada, outras ordens estavam sendo já dispostas
num mapa bem acima de nossas cabeças, com cartas previamente
marcadas a ferro e fogo e sem ganhadores ao final, diga-se de
passagem. Todos, sem exceção, perdemos!
Titia, aos cinquenta e dois
anos de idade casou-se afinal, indo viver num bairro bem próximo ao
nosso. Aos onze anos comecei a pilotar o fogão de nossa casa. E a
pegar gosto pela coisa. Com um menu espartano nossa vida era então
regida a arroz branco, feijão e sopas...ecléticas! E batatas
cozidas também, isso quando São Benedito, o patrono da cozinha, não
me trazia inspiração suficiente e eu constatava entre faminto e
desapontado, os tubérculos esquecidos na cesta das cebolas.
Amassávamos num prato fundo e comíamos com azeite e sal. Nenhum
purê incrementadíssimo que faria como Chef no futuro poderia se
comparar àquela nossa refeição frugal e feliz. Meu pai comia
calado. Ele não era pessoa de bons garfos. Alimentava-se apenas para
sobreviver, sem a mínima fascinação.
O
ato de comer sempre fora uma graça que conhecera às duras custas no
seu tempo de infância e juventude na Ilha da Madeira, onde toda sua
família estava. Único brasileiro, fui alguém que jamais
conseguiram colonizar de modo eficiente sem que ironia e sarcasmo se
implantassem e eu começasse em seguida a imitar o forte e arrastado
sotaque lusitano dos Madeirenses. Cruzes, Abernúncio!
Eu
fora criado por nordestinos até os quatro anos de idade. O
suficiente para preencher minha ampulheta com farinha de mandioca
comida aos bolos misturada ao feijão, e com as mãos, de
preferência! Em Exu, no Pernambuco, essa matula era chamada capitão.
Uma avó negra, cuja casa recendia a curau de milho verde, cercada de
gatos por todos os lados, era uma ilha segura de alfazema à guisa de
colo onde eu bebia toda a senzala de seus cantos congos para me fazer
dormir. Essa quebrada de preto, ninguém foi capaz de me tirar. Meu
avô Jerniel, caboclo índio avermelhado, via minhas reinações
atrás dos felinos o tempo todo com seus olhos de sabre e me dizia:
Celso Gato! Era outro
mote, que terminava sempre comigo respondendo em certo ponto: Eu não
sou gato, não tenho rabo! - levantando a parte de trás da camisa
para que, rindo, ele me agarrasse em mãos enormes tentando me
convencer do contrário com uma salva de cócegas para meus gritos e
guinchos em lugares indevidos!
Criei outros rabos quando uma
Carta de Chamada trouxe de Portugal até ao Porto de Santos, num dia
de calor, uma severa senhora suada que me beijou para meu desconforto
aos cinco anos de idade. Ali selara-se nossa relação. Uma ladainha
de orações num acento canhestro tomadas ao pé da cama todas as
noites só faria crescer em mim a certeza de que, embora os fatos
quisessem enfaticamente confirmar, eu nunca pertenceria de todo à
Casa Grande. Minha ginga já estava toda armada na mandinga da
Senzala. Portanto, de branco ou de português, cedo aprendi, celso
gato não tinha nada!
Comecei a frequentar aquele
cortiço com meu pai todos os sábados. Quando chegamos, no primeiro
dia, ele me pediu que sentasse num degrau da cozinha e por uns dez
minutos olhei desinteressado aquela cena muda sem qualquer sentido.
Jogavam aos pares e entreolhavam-se desconfiados como se um crime
hediondo estivesse subitamente por acontecer.
Minha redenção surgiu
rápida na figura de um menino que se recostou à porta e me convidou
para brincar. Aos onze anos, brincar para mim já era coisa do
passado. Minhas bonecas tinham crescido o suficiente para precisarem
dos meus cuidados. Mas aliviado pela chance única, consenti
satisfeito e fui.
Ele
me levou até a próxima casa, um cômodo e cozinha que seria por
alguns anos o meu palácio dourado. Na grande cama de casal, uma
menina diferente assistia TV. Pedro apresentou-me a ela: Essa
é a minha irmã, Maria.
Duas
pequenas bacias de plástico estavam a seu lado repletas de um
amontoado colorido parecendo confeitos de bolo. Quê isso? -
perguntei curioso.
-
É florzinha! Não tá pronto ainda! É pruma dona que vem
amanhã aqui buscar; falta ainda pôr nos buquezinhos! Toda semana
ela vem. É serviço que eu faço pra fora! Não tá pronto ainda!
- insistiu, guardando
com mãozinhas pequenas seu precioso trabalho.
Tentou
pacientemente explicar-me como as pilhas de pétalas eram
desfolhadas, depois colocadas em pistilos de arame cobertos com papel
de seda verde passado em cola e um pedaço de lã amarela numa das
pontas, dobrada e torcida, se descabelava depois numa corola pronta
para a próxima primavera. E houve muitas... Mas não entendi mesmo
assim.
Ela
era tímida. Estava vestida num pijama curto que deixava à mostra as
pernas morenas de sol. Não pude deixar de notar seus pulsos
desproporcionalmente fortes para sua idade e cuja formação me
causou estranheza. Tínhamos a mesma idade, fiquei sabendo a seguir.
Seu fio metálico de voz tinha o tom agudo e débil de uma criança
de cinco anos. Os cabelos extremamente curtos não ocultavam seu
rosto irregular. Seu tamanho também era inferior ao esperado para
sua idade. As solas de seus pés minúsculos eram fantásticas, lisas
como as de um bebê recém-nascido. Descobri a razão quando
Encarnação, sua mãe, foi chamada por Pedro, num certo momento,
para levá-la ao banheiro. Meu monstrinho adorável era paralítica.
Tia Encarnação recolheu
depois as florzinhas de pano que Maria fizera, colocou numa caixa
maior e apressou-se para o carteado na casa dos sogros ao lado,
sorrindo brejeira ao sair e perguntar se eu queria um pedaço de
bolo... Claro que eu queria!
-
Você já jantou? Não? Ô Pedro, esquenta um pouco de
minestra pra esse menino e depois cê dá o bolo de fubá pra ele
comer de sobremesa. Saiu
correndo, acatando os brados dos parceiros de mesa!
Minestra era uma mistura de
arroz e feijão com água fervendo e sal que se transformava numa
sopa, acrescida no prato de algumas gotas de limão. Era a comida que
os trabalhadores da cana-de-açúcar faziam ao chegar em casa após a
lida, aprendi.
Sertaneja de Araraquara, Tia
Encarnação, ex boia-fria de engenho de cana, mantinha vivos os
costumes da gente do sítio. Sua casa pequena era um espelho de
limpeza. Tudo em ordem, simplicidade e asseio, como só as caboclas
do interior têm o primor e a ciência de manter. A cozinha tinha o
colorido aroma das muitas frutas que trazia da feira com suas
próprias economias de lavadeira. Não me lembro de ter ouvido dela
uma única reclamação que fosse, seja com seu destino ou com o
fardo que ela heroicamente suportou em resignação e silencio por
quarenta anos.
Minha amizade com Maria durou
sua vida inteira. Aprendi com ela o ofício das florzinhas e sua
produção logo tornou-se uma das melhores. Juntos nós trabalhávamos bem. Ríamos muito de tudo e todos. Fiz para suas bonecas
coleções intermináveis que atravessaram estações. Ela tinha por
mim um apreço que não demonstrava com outras pessoas. Tentei
ensiná-la a ler mas não obtive sucesso algum. Nunca fomos além da
primeira letra do alfabeto. No segundo dia de aula, seu espírito
selvagem e débil arremessou os cadernos longe: - Eu não quero
mais saber dessa merda!
Longe também foram nossos
trabalhos infantis. Houve um tempo de uma pequena confecção do
bairro nos entregar remessas de calças para que pregássemos botões.
Tia Encarnação era quem fazia as barras. As bonecas ficaram nuas
desde então.
Três dias na semana
passávamos nossas tardes ocupados com linhas e agulhas. A hora de
voltar para casa era sempre um transtorno. Ela fazia questão de me
acompanhar até o portão. Subia a longa escada em marcha a ré
sentada no chão, locomovendo-se como podia. Os fundos das calças
sempre remendados e os punhos com o decorrer dos anos criando uma
calcificação completamente atípica e grotesca. Meu pequeno
monstrinho, anjo terrível acenando no mínimo três adeuses e um
beijinho atirado no final.
Eu tinha me transformado num
péssimo aluno e ótimo amigo. Para consternação de todos, minhas
únicas notas “Excelentes” - conceito adotado no ensino de então
- eram Francês e Português, as quais também não estudava de todo.
Por conta disso, meu pai,
português, cansado e viúvo até sua última raspa de alma, resolveu
que eu deveria estudar num colégio interno. Os conhecidos eram caros
demais para seu salário de pedreiro. Por fim, não se sabe de onde,
surgiu uma remota possibilidade de estudar num seminário no interior
de São Paulo... em Araraquara, terra dos primos que Maria tanto
adorava e onde passava algum tempo na casa das tias uma vez por ano.
Mas nem isso pôde consolar sua inválida tristeza.
Assim, numa noite chuvosa de
sábado, fui pela última vez à casa de Maria. Nossa minestra
daquela noite ganhou um tempero extra à base de limão-cravo e
lágrimas sentidas. Lancei-lhe à mesa uma última injúria de
criança: - Viu, se você tivesse aprendido a ler, agora a gente
podia escrever cartas um pro outro!
-Vai pra merda, Neno!
Pratos e talheres ao chão...
O Verbo Divino
A Congregação do Verbo
Divino mudou definitivamente minha vida. Uma rotina educacional
rígida com várias horas de estudo, trabalho braçal e esportes.
Nossa vida comunitária era intensa, uma grande família de oitenta
alunos. Um jornal interno lido quinzenalmente no domingo à noite
contava sempre com minhas poesias rimadas e de cadência marcada.
Irmão Nélson Pires André, nossa mãe preta e grande estudioso da
Língua Portuguesa, foi um dos meus grandes incentivadores na arte da
escrita. Aulas de Latim com um gênio-reitor chamado Padre Joaquim
Piepcke ampliaram minha paixão pelos idiomas estrangeiros.
Quando voltava à capital em
férias, trazia rapadura e favo de mel do Mercado Central para meu
monstrinho. Umas duas ou três bourbons da grande mangueira da
entrada completavam seu tesouro anual, amassado entre as roupas na
minha mala. Tinha prazer em vê-la lambuzar de amarelo e felicidade
sua boquinha deformada!
Eu me transformara agora em
bom aluno. A vida em comunidade organizou meu mundo interior. Para
que mantivéssemos contato com o mundo externo, estudávamos fora das
dependências do Seminário. No Colégio Progresso, a pedra filosofal
veio de encontro. Conheci Li, irmã caçula de uma Mestra Iluminada
e que viera dançar em minha formatura da Oitava Série. Foi um
presente inestimável. Um som de flauta foi ouvido na rua aquela
noite. Seu eco perpetuou-se por quatro décadas pelas colinas da
bucólica Spring Valley, pelos becos frios da vida noturna e sórdida
da Cidade de São Paulo, vindo em seguida bater forte e alto de
encontro às pedras do Vale de Ein Karem até atingir meu coração
entreaberto como o ressoar de um gongo tibetano. Pautas que vêm
diretamente desta partitura escrita em silencio pelos deuses do alto
e que de nós sorriem em segredo. Jogos divinos...
Para ir ao Progresso,
costumava cortar caminho pelo Cemitério São Bento, vindo da Avenida
Espanha, só para poder passar embaixo do incêndio de flamboyants da
Rua Humaitá. Na entrada deste portão dos fundos, recolheria do chão
alguns naipes caídos anos depois e leria mapas entrecruzados nas
linhas da minha mão, numa tradução amarga e irônica que eu seria
obrigado a beber da realidade visível como uma cicuta em
reticências.
1974 foi meu último ano como
seminarista. O cansaço de viver levara meu pai afinal. Voltei para a
capital depois da grande encruzilhada que norteou por completo meu
futuro. Minha independência foi celebrada com Yoga, Ballet Clássico
e Macrobiótica. Logo estava colaborando com Li e aprendendo com ela
grandes lições. Então seu império de musa instalou-se no meu
coração de uma vez por todas. Frisos que abrigaram sede de seus
mármores...
Havia um halo intraduzível
em torno dela. Raros momentos de convivência eram o suficiente para
me introduzir num ecossistema rarefeito onde até meu modo de falar
sofria influências que repercutiam biologicamente meses a
fio. Inventava motes que duravam curto espaço de tempo para depois
abandoná-los como qualquer um dos seus figurinos vencidos do ano
anterior. Tanto podia ser extremamente enérgica quanto teatralmente
cômica até o último, inesperada e tão legítima quanto um sol.
Mágica. Maga Li.
Um kabuki de possibilidades
percorria seus passos através do mundo com a complexidade e o brilho
de seu ser indecifrável. Não havia como não segui-la, como não
buscá-la e incondicionalmente encontrá-la, indivisível fragrância,
justificada em puro perfume espargindo encanto onde quer que suas
pontas pisassem. Sua passagem criava um rastro luminoso de pedrinhas
de brilhantes. Pura magia.
Sua independência, uma
inspiração de liberdade, e eu, pássaro vira-lata, criei plumas por
minha devoção a ela, que as coloria pacientemente sempre que se
desbotavam em minhas ousadias de fênix. Li gastou muita tinta
comigo! Em muitos momentos obscuros de cerração e neblina, sua rua
ladrilhada foi meu único caminho seguro na esperança de alguma cor
e farol para meu amor passar.
Iniciei todo o percurso de uma
via sacra em várias escolas numa vida completamente alternativa e
maluca de professor. Meu contato com Li estreitou-se ainda mais
fortemente. Dei aulas em sua academia num certo período. Ela jamais
precisou de mim profissionalmente. Uma fera que se entregara de corpo
e alma para a Dança não precisaria de corifeus. Nunca fui bailarino
à sua altura. Nem coreógrafo. E no entanto ela dançou prontamente
comigo algumas coisas que criei e que foram inesquecíveis para mim.
Paz de Deus. Havia uma cumplicidade mútua que se estendia além da
concessão que ela sempre me ofereceu como uma igual, uma alma gêmea,
sem comparações técnicas ou sociais. Nossa colaboração era uma
correspondência biunívoca a favor de algo que estava acima de
qualquer ordem ou valores. Estar com ela num teatro era ter um
respaldo incomparável, ao ponto de, até o cheiro das coxias, ser
algo tão familiar quanto cozinhar um arroz integral com algas
marinhas.
Demorei para afiar minha
técnica e ser capaz de criar algo convincente. Tinha planos
mirabolantes de criar um ballet-cartoon onde ela seria o coringa
tentando driblar as cartas do baralho para prendê-las numa caixa.
Alguns clichês de desenhos animados seriam usados. Lembro que
conversamos sobre esse roteiro por telefone. Uma música de Count
Basie seria perfeita para a peça.
Impossível. Um Ás
atravessou nossa linha. Terminei a ligação chorando, certo do que
estava por vir. Criei uma coreografia para suas alunas: “O Segredo
da Flor de Ouro”. E ali mesmo, ainda perto do telefone já
desligado, comecei a escrever uma série de quatro canções
inspiradas na 3ª Sinfonia de
Mahler e dedicadas a Li, tentando de alguma forma criar uma moldura
sublime para aplacar minha dor irreparável.
Não comparecemos ao
espetáculo de encerramento do ano de 1993. Minha musa partiu num
verão de 94 deixando o sol daquele ano um pouco mais frio. Eu também
fechei meus olhos para a Dança. Jamais esses olhos voltariam a se
abrir.
Voltei ao São Bento num dia
de janeiro e não lembrei dos Flamboyants incinerando o lado oposto.
Mesa virada! Jogo perdido.
Truco
Maria estranhou minha
tristeza. Não poderia compartilhar meu gólgota com sua cruz. O
silencio prevaleceu em nossos passeios. Finalmente depois de tantos
anos ela concordara em usar uma cadeira de rodas. Morávamos agora no
mesmo bairro. Nunca falei de Li para Maria, assim como nunca dancei
para ela. Lia minhas poesias para sua aprovação, ciente de que ela
não tinha a mínima noção do que eu falava. A cada verso ela
retrucava... Hum! Hum, como se aquilo fosse uma piada
conhecida e contada até a exaustão para sua impaciência de ouvinte
equivocada.
Com o passar dos anos ela
desenvolveu uma bronquite crônica. O uso de medicamentos que
auxiliavam as vias respiratórias causaram alteração em seu
metabolismo e decorrente disso um estado de anemia profunda exigia
que tivesse de recorrer ao banco de sangue constantemente. Os braços
infantis criavam hematomas assombrosos quando voltava das
internações. Nos víamos com frequência. A cadeira de rodas fora
desativada e mofava no porão da casa. Não precisaríamos mais dela
para cumprir nosso próximo itinerário.
Um aparelho foi colocado
próximo à sua jugular para facilitar as transfusões. Uma corrida
contra o tempo instalou-se paralelamente. As internações cresceram
em progressão geométrica. O inverno de 1999 foi rigoroso. Pneumonia
dupla.
São 17:00 hs. Já de banho
tomado para sair recebo um telefonema. Tia Encarnação ao telefone
me pedindo para correr até a Santa Casa. Ela sofrera um ataque
cardíaco. Nos aparelhos foi informada pela mãe que eu estava a
caminho. Abriu os olhos e mirou a mãe sem poder dizer nada.
Tomei um táxi. O motorista
seguiu um caminho que passava pelo cemitério mais próximo. Senti
ali um mau presságio. Conheço esse jogo. Sei quando os deuses
começam a me dar pistas.
Não houve tempo. Esperava no
saguão para vê-la quando aconteceu. Um botão despregou-se de minha
camisa e caiu no chão. Não há meios de costurar o tempo.
Saí dali direto para o meu
trabalho. Tarde da noite liguei para Tia Encarnação para saber do
funeral. Ela queria ser enterrada em Araraquara, terra que tanto
amou. Minha terra também.
Devido a isso sua autópsia
seria feita em Taboão da Serra, protocolo seguido por todos os
serviços fúnebres que se dirigiam a outras cidades que não São
Paulo. Nesta noite não lavei a cozinha com meus peões. Desculpei-me
e disse-lhes que iria para casa mais cedo. Tomei um táxi, como era
de costume na madrugada. Próximo a nossas casas, na Avenida
Engenheiro Caetano Álvares, um carro cruza meu caminho. Serviço
Funerário. Li a placa: Taboão da Serra.
-Amigo, por gentileza, se na
Avenida Imirim esse carro dobrar à esquerda, pode segui-lo, por
favor?
-Uai, por quê, moço?
-Pode ser que esteja
enganado. Mas talvez eu tenha uma grande amiga ali dentro.
-Moço, desse jeito o
senhor tá me assustando.
-Não tem nada pra se
assustar, Amigo. Se acontecer como lhe disse, faça como pedi, ok?
O carro dobrou à esquerda.
Tirei uma nota da carteira e saí do táxi quando o motorista parou
em frente a casa de Maria. O pai, seu padrinho de batismo e Pedro
esperavam no portão. Segurei a quarta alça de seu pequeno caixão.
Uma palavra em sua camiseta P: Friends. Sorriso dos deuses. Algo
chegara a um fim. Olhei suas pequenas mãos. Há situações tão
vastas que chorar torna-se uma redundância...
Voltei ao túmulo de Li várias
vezes ao longo dos anos. Incensos. Flores amarelas, brancas,
vermelhas...menos a primavera. Uma lápide cuja construção e
sintaxe reconheceria mesmo cego: “A Dança foi sua...”
Certa vez, antes de retornar
à Morada do Sol, passei em casa de Tia Encarnação. Perguntei a
direção do lugar onde o corpo de Maria fora sepultado.
-É fácil, filho. Sabe o
portão do fundo, como quem vem do seminário onde cê estudou?
Chegando à cidade fui direto
ao São Bento, tendo o capricho de entrar pelos fundos. Sentei-me
diante da lápide: “...de uma Obra sem fim.” Incensos. Flores.
Meu coração será sua eterna primavera, Maga Li! Um flash murmurado
então em meu pensamento.
Os deuses são tão
irônicos que não seria impossível que daqui eu visse o túmulo de
Maria.
Reconheci a fotografia de
longe. Oito túmulos de diferença. Deixei uma pequena boneca de pano
junto à sua foto e parti. Chorei amargamente.
Poderia terminar minha
história amarrando aqui as cartas do baralho para dar-lhe um belo
desfecho literário. Mas não poderia encerrar minha realidade com uma
bela caixa adornada por um laço dourado. Seria cínico e irreverente
com a ironia divina. A dor jamais se transforma em ouro. Tiramos dela, quando muito,
apenas um processo de fundição. É só o que a vida nos permite derreter
ao longo do tempo. Divinamente.
São fatos. O quê significam não sei. Nunca me perguntei. Vivê-los é quanto basta.
ResponderExcluirTodas as grandes perdas são lições de infinito.