quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Maria do Carmo Rodrigues

Arlequinadas


Meu pai costumava jogar cartas ali todos os sábados. Eram velhos primos afastados cuja árvore genealógica nunca pude compreender muito bem. Ele adquiriu esse hábito quando minha tia ainda morava conosco. Talvez para dar mais liberdade a ela, comprometida agora na meia idade com um partido de ouro que viria a ser um dos seus maiores infernos, Manuel Teixeira inventara-se no gosto de não estar em casa nestes dias.
Era um dos seus pequenos prazeres, se é que ele os tinha. Jamais entendi as regras daquele carteado típico de Madeirenses, a tal da bisca. Mas ao que tudo indica, e com o tempo da neblina dissipada, outras ordens estavam sendo já dispostas num mapa bem acima de nossas cabeças, com cartas previamente marcadas a ferro e fogo e sem ganhadores ao final, diga-se de passagem. Todos, sem exceção, perdemos!
Titia, aos cinquenta e dois anos de idade casou-se afinal, indo viver num bairro bem próximo ao nosso. Aos onze anos comecei a pilotar o fogão de nossa casa. E a pegar gosto pela coisa. Com um menu espartano nossa vida era então regida a arroz branco, feijão e sopas...ecléticas! E batatas cozidas também, isso quando São Benedito, o patrono da cozinha, não me trazia inspiração suficiente e eu constatava entre faminto e desapontado, os tubérculos esquecidos na cesta das cebolas. Amassávamos num prato fundo e comíamos com azeite e sal. Nenhum purê incrementadíssimo que faria como Chef no futuro poderia se comparar àquela nossa refeição frugal e feliz. Meu pai comia calado. Ele não era pessoa de bons garfos. Alimentava-se apenas para sobreviver, sem a mínima fascinação.
O ato de comer sempre fora uma graça que conhecera às duras custas no seu tempo de infância e juventude na Ilha da Madeira, onde toda sua família estava. Único brasileiro, fui alguém que jamais conseguiram colonizar de modo eficiente sem que ironia e sarcasmo se implantassem e eu começasse em seguida a imitar o forte e arrastado sotaque lusitano dos Madeirenses. Cruzes, Abernúncio!
Eu fora criado por nordestinos até os quatro anos de idade. O suficiente para preencher minha ampulheta com farinha de mandioca comida aos bolos misturada ao feijão, e com as mãos, de preferência! Em Exu, no Pernambuco, essa matula era chamada capitão. Uma avó negra, cuja casa recendia a curau de milho verde, cercada de gatos por todos os lados, era uma ilha segura de alfazema à guisa de colo onde eu bebia toda a senzala de seus cantos congos para me fazer dormir. Essa quebrada de preto, ninguém foi capaz de me tirar. Meu avô Jerniel, caboclo índio avermelhado, via minhas reinações atrás dos felinos o tempo todo com seus olhos de sabre e me dizia: Celso Gato! Era outro mote, que terminava sempre comigo respondendo em certo ponto: Eu não sou gato, não tenho rabo! - levantando a parte de trás da camisa para que, rindo, ele me agarrasse em mãos enormes tentando me convencer do contrário com uma salva de cócegas para meus gritos e guinchos em lugares indevidos!
Criei outros rabos quando uma Carta de Chamada trouxe de Portugal até ao Porto de Santos, num dia de calor, uma severa senhora suada que me beijou para meu desconforto aos cinco anos de idade. Ali selara-se nossa relação. Uma ladainha de orações num acento canhestro tomadas ao pé da cama todas as noites só faria crescer em mim a certeza de que, embora os fatos quisessem enfaticamente confirmar, eu nunca pertenceria de todo à Casa Grande. Minha ginga já estava toda armada na mandinga da Senzala. Portanto, de branco ou de português, cedo aprendi, celso gato não tinha nada!


Comecei a frequentar aquele cortiço com meu pai todos os sábados. Quando chegamos, no primeiro dia, ele me pediu que sentasse num degrau da cozinha e por uns dez minutos olhei desinteressado aquela cena muda sem qualquer sentido. Jogavam aos pares e entreolhavam-se desconfiados como se um crime hediondo estivesse subitamente por acontecer.
Minha redenção surgiu rápida na figura de um menino que se recostou à porta e me convidou para brincar. Aos onze anos, brincar para mim já era coisa do passado. Minhas bonecas tinham crescido o suficiente para precisarem dos meus cuidados. Mas aliviado pela chance única, consenti satisfeito e fui.
Ele me levou até a próxima casa, um cômodo e cozinha que seria por alguns anos o meu palácio dourado. Na grande cama de casal, uma menina diferente assistia TV. Pedro apresentou-me a ela: Essa é a minha irmã, Maria.
Duas pequenas bacias de plástico estavam a seu lado repletas de um amontoado colorido parecendo confeitos de bolo. Quê isso? - perguntei curioso.
- É florzinha! Não tá pronto ainda! É pruma dona que vem amanhã aqui buscar; falta ainda pôr nos buquezinhos! Toda semana ela vem. É serviço que eu faço pra fora! Não tá pronto ainda! - insistiu, guardando com mãozinhas pequenas seu precioso trabalho.
Tentou pacientemente explicar-me como as pilhas de pétalas eram desfolhadas, depois colocadas em pistilos de arame cobertos com papel de seda verde passado em cola e um pedaço de lã amarela numa das pontas, dobrada e torcida, se descabelava depois numa corola pronta para a próxima primavera. E houve muitas... Mas não entendi mesmo assim.
Ela era tímida. Estava vestida num pijama curto que deixava à mostra as pernas morenas de sol. Não pude deixar de notar seus pulsos desproporcionalmente fortes para sua idade e cuja formação me causou estranheza. Tínhamos a mesma idade, fiquei sabendo a seguir. Seu fio metálico de voz tinha o tom agudo e débil de uma criança de cinco anos. Os cabelos extremamente curtos não ocultavam seu rosto irregular. Seu tamanho também era inferior ao esperado para sua idade. As solas de seus pés minúsculos eram fantásticas, lisas como as de um bebê recém-nascido. Descobri a razão quando Encarnação, sua mãe, foi chamada por Pedro, num certo momento, para levá-la ao banheiro. Meu monstrinho adorável era paralítica.
Tia Encarnação recolheu depois as florzinhas de pano que Maria fizera, colocou numa caixa maior e apressou-se para o carteado na casa dos sogros ao lado, sorrindo brejeira ao sair e perguntar se eu queria um pedaço de bolo... Claro que eu queria!
- Você já jantou? Não? Ô Pedro, esquenta um pouco de minestra pra esse menino e depois cê dá o bolo de fubá pra ele comer de sobremesa. Saiu correndo, acatando os brados dos parceiros de mesa!
Minestra era uma mistura de arroz e feijão com água fervendo e sal que se transformava numa sopa, acrescida no prato de algumas gotas de limão. Era a comida que os trabalhadores da cana-de-açúcar faziam ao chegar em casa após a lida, aprendi.
Sertaneja de Araraquara, Tia Encarnação, ex boia-fria de engenho de cana, mantinha vivos os costumes da gente do sítio. Sua casa pequena era um espelho de limpeza. Tudo em ordem, simplicidade e asseio, como só as caboclas do interior têm o primor e a ciência de manter. A cozinha tinha o colorido aroma das muitas frutas que trazia da feira com suas próprias economias de lavadeira. Não me lembro de ter ouvido dela uma única reclamação que fosse, seja com seu destino ou com o fardo que ela heroicamente suportou em resignação e silencio por quarenta anos.
Minha amizade com Maria durou sua vida inteira. Aprendi com ela o ofício das florzinhas e sua produção logo tornou-se uma das melhores. Juntos nós trabalhávamos bem. Ríamos muito de tudo e todos. Fiz para suas bonecas coleções intermináveis que atravessaram estações. Ela tinha por mim um apreço que não demonstrava com outras pessoas. Tentei ensiná-la a ler mas não obtive sucesso algum. Nunca fomos além da primeira letra do alfabeto. No segundo dia de aula, seu espírito selvagem e débil arremessou os cadernos longe: - Eu não quero mais saber dessa merda!
Longe também foram nossos trabalhos infantis. Houve um tempo de uma pequena confecção do bairro nos entregar remessas de calças para que pregássemos botões. Tia Encarnação era quem fazia as barras. As bonecas ficaram nuas desde então.
Três dias na semana passávamos nossas tardes ocupados com linhas e agulhas. A hora de voltar para casa era sempre um transtorno. Ela fazia questão de me acompanhar até o portão. Subia a longa escada em marcha a ré sentada no chão, locomovendo-se como podia. Os fundos das calças sempre remendados e os punhos com o decorrer dos anos criando uma calcificação completamente atípica e grotesca. Meu pequeno monstrinho, anjo terrível acenando no mínimo três adeuses e um beijinho atirado no final.
Eu tinha me transformado num péssimo aluno e ótimo amigo. Para consternação de todos, minhas únicas notas “Excelentes” - conceito adotado no ensino de então - eram Francês e Português, as quais também não estudava de todo.
Por conta disso, meu pai, português, cansado e viúvo até sua última raspa de alma, resolveu que eu deveria estudar num colégio interno. Os conhecidos eram caros demais para seu salário de pedreiro. Por fim, não se sabe de onde, surgiu uma remota possibilidade de estudar num seminário no interior de São Paulo... em Araraquara, terra dos primos que Maria tanto adorava e onde passava algum tempo na casa das tias uma vez por ano. Mas nem isso pôde consolar sua inválida tristeza.
Assim, numa noite chuvosa de sábado, fui pela última vez à casa de Maria. Nossa minestra daquela noite ganhou um tempero extra à base de limão-cravo e lágrimas sentidas. Lancei-lhe à mesa uma última injúria de criança: - Viu, se você tivesse aprendido a ler, agora a gente podia escrever cartas um pro outro!
-Vai pra merda, Neno! Pratos e talheres ao chão...


O Verbo Divino

A Congregação do Verbo Divino mudou definitivamente minha vida. Uma rotina educacional rígida com várias horas de estudo, trabalho braçal e esportes. Nossa vida comunitária era intensa, uma grande família de oitenta alunos. Um jornal interno lido quinzenalmente no domingo à noite contava sempre com minhas poesias rimadas e de cadência marcada. Irmão Nélson Pires André, nossa mãe preta e grande estudioso da Língua Portuguesa, foi um dos meus grandes incentivadores na arte da escrita. Aulas de Latim com um gênio-reitor chamado Padre Joaquim Piepcke ampliaram minha paixão pelos idiomas estrangeiros.
Quando voltava à capital em férias, trazia rapadura e favo de mel do Mercado Central para meu monstrinho. Umas duas ou três bourbons da grande mangueira da entrada completavam seu tesouro anual, amassado entre as roupas na minha mala. Tinha prazer em vê-la lambuzar de amarelo e felicidade sua boquinha deformada!
Eu me transformara agora em bom aluno. A vida em comunidade organizou meu mundo interior. Para que mantivéssemos contato com o mundo externo, estudávamos fora das dependências do Seminário. No Colégio Progresso, a pedra filosofal veio de encontro. Conheci Li, irmã caçula de uma Mestra Iluminada e que viera dançar em minha formatura da Oitava Série. Foi um presente inestimável. Um som de flauta foi ouvido na rua aquela noite. Seu eco perpetuou-se por quatro décadas pelas colinas da bucólica Spring Valley, pelos becos frios da vida noturna e sórdida da Cidade de São Paulo, vindo em seguida bater forte e alto de encontro às pedras do Vale de Ein Karem até atingir meu coração entreaberto como o ressoar de um gongo tibetano. Pautas que vêm diretamente desta partitura escrita em silencio pelos deuses do alto e que de nós sorriem em segredo. Jogos divinos...
Para ir ao Progresso, costumava cortar caminho pelo Cemitério São Bento, vindo da Avenida Espanha, só para poder passar embaixo do incêndio de flamboyants da Rua Humaitá. Na entrada deste portão dos fundos, recolheria do chão alguns naipes caídos anos depois e leria mapas entrecruzados nas linhas da minha mão, numa tradução amarga e irônica que eu seria obrigado a beber da realidade visível como uma cicuta em reticências.
1974 foi meu último ano como seminarista. O cansaço de viver levara meu pai afinal. Voltei para a capital depois da grande encruzilhada que norteou por completo meu futuro. Minha independência foi celebrada com Yoga, Ballet Clássico e Macrobiótica. Logo estava colaborando com Li e aprendendo com ela grandes lições. Então seu império de musa instalou-se no meu coração de uma vez por todas. Frisos que abrigaram sede de seus mármores...
Havia um halo intraduzível em torno dela. Raros momentos de convivência eram o suficiente para me introduzir num ecossistema rarefeito onde até meu modo de falar sofria influências que repercutiam biologicamente meses a fio. Inventava motes que duravam curto espaço de tempo para depois abandoná-los como qualquer um dos seus figurinos vencidos do ano anterior. Tanto podia ser extremamente enérgica quanto teatralmente cômica até o último, inesperada e tão legítima quanto um sol. Mágica. Maga Li.


Um kabuki de possibilidades percorria seus passos através do mundo com a complexidade e o brilho de seu ser indecifrável. Não havia como não segui-la, como não buscá-la e incondicionalmente encontrá-la, indivisível fragrância, justificada em puro perfume espargindo encanto onde quer que suas pontas pisassem. Sua passagem criava um rastro luminoso de pedrinhas de brilhantes. Pura magia.
Sua independência, uma inspiração de liberdade, e eu, pássaro vira-lata, criei plumas por minha devoção a ela, que as coloria pacientemente sempre que se desbotavam em minhas ousadias de fênix. Li gastou muita tinta comigo! Em muitos momentos obscuros de cerração e neblina, sua rua ladrilhada foi meu único caminho seguro na esperança de alguma cor e farol para meu amor passar.
Iniciei todo o percurso de uma via sacra em várias escolas numa vida completamente alternativa e maluca de professor. Meu contato com Li estreitou-se ainda mais fortemente. Dei aulas em sua academia num certo período. Ela jamais precisou de mim profissionalmente. Uma fera que se entregara de corpo e alma para a Dança não precisaria de corifeus. Nunca fui bailarino à sua altura. Nem coreógrafo. E no entanto ela dançou prontamente comigo algumas coisas que criei e que foram inesquecíveis para mim. Paz de Deus. Havia uma cumplicidade mútua que se estendia além da concessão que ela sempre me ofereceu como uma igual, uma alma gêmea, sem comparações técnicas ou sociais. Nossa colaboração era uma correspondência biunívoca a favor de algo que estava acima de qualquer ordem ou valores. Estar com ela num teatro era ter um respaldo incomparável, ao ponto de, até o cheiro das coxias, ser algo tão familiar quanto cozinhar um arroz integral com algas marinhas.
Demorei para afiar minha técnica e ser capaz de criar algo convincente. Tinha planos mirabolantes de criar um ballet-cartoon onde ela seria o coringa tentando driblar as cartas do baralho para prendê-las numa caixa. Alguns clichês de desenhos animados seriam usados. Lembro que conversamos sobre esse roteiro por telefone. Uma música de Count Basie seria perfeita para a peça.
Impossível. Um Ás atravessou nossa linha. Terminei a ligação chorando, certo do que estava por vir. Criei uma coreografia para suas alunas: “O Segredo da Flor de Ouro”. E ali mesmo, ainda perto do telefone já desligado, comecei a escrever uma série de quatro canções inspiradas na 3ª Sinfonia de Mahler e dedicadas a Li, tentando de alguma forma criar uma moldura sublime para aplacar minha dor irreparável.
Não comparecemos ao espetáculo de encerramento do ano de 1993. Minha musa partiu num verão de 94 deixando o sol daquele ano um pouco mais frio. Eu também fechei meus olhos para a Dança. Jamais esses olhos voltariam a se abrir.
Voltei ao São Bento num dia de janeiro e não lembrei dos Flamboyants incinerando o lado oposto. Mesa virada! Jogo perdido.


Truco

Maria estranhou minha tristeza. Não poderia compartilhar meu gólgota com sua cruz. O silencio prevaleceu em nossos passeios. Finalmente depois de tantos anos ela concordara em usar uma cadeira de rodas. Morávamos agora no mesmo bairro. Nunca falei de Li para Maria, assim como nunca dancei para ela. Lia minhas poesias para sua aprovação, ciente de que ela não tinha a mínima noção do que eu falava. A cada verso ela retrucava... Hum! Hum, como se aquilo fosse uma piada conhecida e contada até a exaustão para sua impaciência de ouvinte equivocada.
Com o passar dos anos ela desenvolveu uma bronquite crônica. O uso de medicamentos que auxiliavam as vias respiratórias causaram alteração em seu metabolismo e decorrente disso um estado de anemia profunda exigia que tivesse de recorrer ao banco de sangue constantemente. Os braços infantis criavam hematomas assombrosos quando voltava das internações. Nos víamos com frequência. A cadeira de rodas fora desativada e mofava no porão da casa. Não precisaríamos mais dela para cumprir nosso próximo itinerário.
Um aparelho foi colocado próximo à sua jugular para facilitar as transfusões. Uma corrida contra o tempo instalou-se paralelamente. As internações cresceram em progressão geométrica. O inverno de 1999 foi rigoroso. Pneumonia dupla.
São 17:00 hs. Já de banho tomado para sair recebo um telefonema. Tia Encarnação ao telefone me pedindo para correr até a Santa Casa. Ela sofrera um ataque cardíaco. Nos aparelhos foi informada pela mãe que eu estava a caminho. Abriu os olhos e mirou a mãe sem poder dizer nada.
Tomei um táxi. O motorista seguiu um caminho que passava pelo cemitério mais próximo. Senti ali um mau presságio. Conheço esse jogo. Sei quando os deuses começam a me dar pistas.
Não houve tempo. Esperava no saguão para vê-la quando aconteceu. Um botão despregou-se de minha camisa e caiu no chão. Não há meios de costurar o tempo.
Saí dali direto para o meu trabalho. Tarde da noite liguei para Tia Encarnação para saber do funeral. Ela queria ser enterrada em Araraquara, terra que tanto amou. Minha terra também.
Devido a isso sua autópsia seria feita em Taboão da Serra, protocolo seguido por todos os serviços fúnebres que se dirigiam a outras cidades que não São Paulo. Nesta noite não lavei a cozinha com meus peões. Desculpei-me e disse-lhes que iria para casa mais cedo. Tomei um táxi, como era de costume na madrugada. Próximo a nossas casas, na Avenida Engenheiro Caetano Álvares, um carro cruza meu caminho. Serviço Funerário. Li a placa: Taboão da Serra.
-Amigo, por gentileza, se na Avenida Imirim esse carro dobrar à esquerda, pode segui-lo, por favor?
-Uai, por quê, moço?
-Pode ser que esteja enganado. Mas talvez eu tenha uma grande amiga ali dentro.
-Moço, desse jeito o senhor tá me assustando.
-Não tem nada pra se assustar, Amigo. Se acontecer como lhe disse, faça como pedi, ok?
O carro dobrou à esquerda. Tirei uma nota da carteira e saí do táxi quando o motorista parou em frente a casa de Maria. O pai, seu padrinho de batismo e Pedro esperavam no portão. Segurei a quarta alça de seu pequeno caixão. Uma palavra em sua camiseta P: Friends. Sorriso dos deuses. Algo chegara a um fim. Olhei suas pequenas mãos. Há situações tão vastas que chorar torna-se uma redundância...
Voltei ao túmulo de Li várias vezes ao longo dos anos. Incensos. Flores amarelas, brancas, vermelhas...menos a primavera. Uma lápide cuja construção e sintaxe reconheceria mesmo cego: “A Dança foi sua...”
Certa vez, antes de retornar à Morada do Sol, passei em casa de Tia Encarnação. Perguntei a direção do lugar onde o corpo de Maria fora sepultado.
-É fácil, filho. Sabe o portão do fundo, como quem vem do seminário onde cê estudou?
Chegando à cidade fui direto ao São Bento, tendo o capricho de entrar pelos fundos. Sentei-me diante da lápide: “...de uma Obra sem fim.” Incensos. Flores. Meu coração será sua eterna primavera, Maga Li! Um flash murmurado então em meu pensamento.
Os deuses são tão irônicos que não seria impossível que daqui eu visse o túmulo de Maria.
Reconheci a fotografia de longe. Oito túmulos de diferença. Deixei uma pequena boneca de pano junto à sua foto e parti. Chorei amargamente.
Poderia terminar minha história amarrando aqui as cartas do baralho para dar-lhe um belo desfecho literário. Mas não poderia encerrar minha realidade com uma bela caixa adornada por um laço dourado. Seria cínico e irreverente com a ironia divina. A dor jamais se transforma em ouro. Tiramos dela, quando muito, apenas um processo de fundição. É só o que a vida nos permite derreter ao longo do tempo. Divinamente.



Um comentário:

  1. São fatos. O quê significam não sei. Nunca me perguntei. Vivê-los é quanto basta.
    Todas as grandes perdas são lições de infinito.

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