sábado, 5 de outubro de 2013

O Berimbau de Naná Vasconcelos








Os dois cisnes negros viviam naquele lago à beira da estrada em deslizes, próximo à colina de pinheiros e carvalhos onde morava. Era meu trajeto diário; fazia de bike ou caminhando quando era inverno. Saía de casa muito cedo para chegar ao Apollo D'Oro a tempo de tomar meu café tranquilo, sem botões automáticos ligados desde o início. Além disso, era costume de Hervé, o padeiro francês, me pedir para colocar MPB no CD player. Invariavelmente nossas manhãs começavam com João Gilberto. Vez por outra ele vinha me perguntar a tradução de algumas coisas enquanto eu ainda preparava a madeira para o forno da pizza. Mas como traduzir a letra de 'Doralice', por exemplo? “Olha essa embrulhada em que eu vou me meter!” Os croissants quase saindo do forno e nenhuma conclusão a respeito... João Gilberto todas as manhãs como uma oração que se rezava aos poucos...
Comecei a alimentar os cisnes com migalhas de pão.
Jack & Jeannie. Anônimos cisnes batizados por mim naquele recanto de Oregon House. Com o passar do tempo eles cruzavam o lago de uma margem à outra quando me viam apontando no alto da alameda que conduzia à saída da vinícola. Vinha em minhas roupas de cozinha, ainda com o chapéu branco a voar sobre a bicicleta, polichinelo com os bolsos cheios das migalhas que Hervé me dera justo antes de terminar minha jornada de trabalho. Às vezes sentava-me no barranco perto deles. Os cisnes, impassíveis, deixavam que as migalhas afundassem parcialmente como algas brancas que eles recolhiam depois, já cobertas pelo musgo da margem em S mergulhos de pescoços acrobatas. Meus dois príncipes! Nunca pensei que se encantariam numa história dessas, sequer narrada ainda, sem eira nem beira de estradas, Rice's Crossing Road...
A cultura do arroz crescera ali no século passado com a chegada da imigração chinesa à região de San Francisco. Há fotos belíssimas dos Sutter Buttes refletidos em largos espelhos de água ao seu redor, plantações intermináveis de arroz. Considerada a menor cadeia de montanhas do mundo, os Sutter Buttes foram objeto de culto das tribos nativo americanas Wintun e Maidu, estabelecidas nas bases de suas colinas. Fotos aéreas permitem observar sua formação umbilical num raio de 16 km, ônfalo intrigante de um possível vulcão adormecido. Centenas de séculos depois, esse fértil e febril solo vulcânico permitiu o cultivo de vinhedos nas redondezas.



Gunga vinha algumas vezes me encontrar no lago. Para ele eu tinha sempre coxas de frango assadas que sobravam da Rotisserie Chicken. Eram geralmente nosso jantar. Mas não comíamos na estrada, como dois ciganos em pic-nic. Talvez porque soubesse disso, apressando nossa refeição, ele iniciava uma ladainha de latidos para os cisnes, que se afastavam em seguida. Logo Jack & Jeannie aprenderam que não havia lugar para quadrúpedes na cena: assim que o cachorro apontava na estrada eles flutuavam negros e lindos para o outro lado. Também eu mudei minha tática: parava pouco tempo junto a eles para evitar que seus snacks afundassem de vez na água por causa da presença cada vez mais urgente e antecipada de Gunga. Se do alto da colina ele me surpreendesse alimentando os cisnes, mesmo percebendo que eu já voltava para casa, caminhando em sua direção, o danado do cachorro do mato ainda corria até o lago para dar latidos de moral em direção às aves. E claro, ele estragava tudo!
Aves para ele, só assadas! Não! Minto! Houve um frango inteiro uma vez, cozido com ervas por horas para o caldo do meu borsh e que seria descartado depois. Pelo cozimento demorado a peça tornava-se bem menor quando resfriada. Trouxe-a comigo. Eu trabalhara no turno da tarde e nestes dias Gunga costumava me esperar na escada de madeira da minha varanda.
Era noite. Ele espreguiçou um suryanamaskar antes de dar um largo bocejo de lobo mau e caminhar na minha direção abanando seu rabo e pulando enorme do lado em que eu carregava minha bolsa a tiracolo tentando adivinhar seu menu daquela noite. Cheguei à porta. Ganidos sutis de curiosidade. Abri seu presente antes de entrar. Coloquei o pequeno frango cozido diante de seu grande focinho preto. Ele me lançou um olhar tipo: “Really?”. Em duas bocadas ele encaçapou a ave e sumiu para devorá-la em 'cracks' entredentes no breu do terreiro do estacionamento. Sentei-me no escuro para ouvir seus ruídos vorazes. Uma percussão de gourmet sem precedentes. 


No inverno as noites são mais longas. Cinco horas da tarde e o sol já é posto. Trabalho no jantar e estou atrasado. Caminho rápido pela estrada e vejo a cena: Jack & Jeannie perdidos do outro lado da estrada e um impotente Carlos Labatte estacionado sobre sua bicicleta diante do perigo e me alertando para não chegar perto dos cisnes. Meu pavor de que um carro em alta velocidade vindo de Regent Way pudesse colidir com minhas aves sinalizou mais alto que qualquer sobreaviso.
Andei calmamente na direção deles. Carlos gritou: - 'Be careful, they can be wild!'
Pastoreei em português Jack & Jeannie, cortejando aqueles dois imensos balões negros com as asas de Jack roçando vez por outra minhas pernas enquanto eles caminhavam leves de volta à água.
Um atônito Carlos Labatte desaparecia veloz na paisagem escura da estrada, rindo da cena final em epitáfios: - Just here to be able to see something like that! Just heeeeere!
Os cisnes interromperam a quietude fria do lago. Deslizaram breus de água adentro. Missão cumprida!
Fiquei olhando Carlos que sumia ao longe na minha perspectiva e a imagem do aeroporto bateu forte como um selo de LSD nas minhas retinas.

Chegamos os cinco com as três horas de antecedência de praxe para voos internacionais. Feitos check-in e devidas trocas de moeda corrente, restou-nos inventar o que fazer até a hora do embarque. Carlos tivera uma visita adorável a nosso Centro e voltava agora à Califórnia passando antes por Buenos Aires, sua cidade natal, por alguns dias para rever amigos e família. Sua Ulysses Books lançara pérolas raras no mercado editorial americano. Ele viera a São Paulo com o intuito de negociar os direitos dos livros de Girard Haven com a Pensamento. Eu tinha uma editora recém aberta para publicar Rodney Collin mas estava por iniciar meu trabalho no Hospital Sírio Libanês e fazia ainda extras no Mestiço para as kratong-tongs de Dona Ina cuja fórmula de graal eu era um dos três únicos a saber até então. Nem sequer considerei falar a respeito. Sua companhia era para mim o maior deleite e interesse antes de mais nada.
Sentamo-nos nas mesas externas do Coffee Shop. Reconheci de imediato quem estava sentado à nossa frente acompanhado de seu belo berimbau junto à amurada. Um pensamento louco e quase impossível passou num zás!
Levantei-me e fui corajosamente até ele. Agachando-me, pedi-lhe delicadamente: - 'Posso ver seu berimbau?'
Tomou o instrumento em suas mãos possantes e negras e ergueu o berimbau diante de mim soltando o oco grave de uma risada sarcástica como quem fizesse uma piada em barítono perante a timidez e curiosidade de um ingênuo tenor.
- 'Que lindo!' Como se em notas de rodapé lhe dissesse com voz aveludada ao notar recauchutagens feitas a durepoxi na cabaça do seu tesouro. Toquei gentilmente o bojo remendado do instrumento como se acariciasse os seios da Vênus de Milo. Acho que ali conquistei seu coração!
- 'Você mesmo colocou isso aqui? É durepoxi, não é?'
Bingo. Naná começou a me relatar todo o histórico de seu berimbau e que ele mesmo fizera:
- 'Essa corda é de piano. Isso é durepoxi, sim. Eu que fiz esse berimbau. Está comigo há muitos anos, nunca tive nenhum outro.'
Estava diante de um troféu. Era então o mesmo berimbau que acompanhara Egberto Gismonti desde sempre e com o qual Naná começara a gravar seus próprios trabalhos solo.
- 'Puxa, esse meu amigo aqui é da Argentina! Acho que ele nunca ouviu o som de um instrumento assim! Você não pode tocar alguma coisa para ele ouvir e perceber como o som é diferente?'
Naná Vasconcelos foi até a mesa onde meus quatro amigos estavam. Segui-lhe veloz. Imediatamente ele começou a introdução de “Amazonas”, peça que abre seu primeiro disco solo de mesmo nome lançado em 1973. Sentei-me maravilhado. Não podia acreditar.
Meus amigos não o conheciam de todo. Um deles, enquanto Naná tocava, comentou à queima-roupa que ele tocava muito bem...
- 'Claro, é o melhor percussionista do mundo! Respondi num sussurro...'
Em segundos Naná terminou seu prelúdio. Tomou depois algumas garrafas sobre a mesa e deu ainda uma 'canja' soprando vozes de mil ventos de dentro delas. Esplêndido! 
Depois perguntou a Carlos Labatte de onde ele era. E ao ser informado, emendou dizendo verborrágico que já havia tocado com grandes músicos argentinos, como Gato Barbieri, por exemplo. Carlos permaneceu cético. Sorrisos amarelos. Um leve clima... Naná retirou-se.
Fui até sua mesa. Agachei-me novamente diante dele e agradeci profundamente comovido:
- 'Eu sei quem você é. A música que você tocou no berimbau é a abertura de “Amazonas”, não é? Eu tive esse trabalho em vinil há muitos anos.'
Ele surpreendeu-se: - 'Qual é sua profissão? Você é artista?'
- 'Não, Naná, sou apenas um cozinheiro.'
Ele pareceu não acreditar. Olhou-me zombeteiro como se me pegasse mentindo diante de uma lata de biscoitos:
- 'Fala a verdade pra mim... Você é artista, não é?'
- 'Não, Naná, sou cozinheiro, olhe minhas mãos queimadas e cheias de calos de tanto lidar com as facas.'
Estendi minhas mãos para ele, que olhou com a astúcia de um quiromante genial, sorrindo a seguir com a bondade da senzala estampada em seus olhos marotos:
- 'Mas você faz alguma coisa...'
- 'Faço, mas é indeterminante. Neste momento só o que conta é o quanto você me fez feliz por ouvi-lo... Obrigado, Naná...'
Estendemo-nos as mãos. Ambas calejadas. Por músicas, panelas e facas. 
Horas depois já estava diante do meu tacho de óleo fritando as kratongs no Mestiço com esse segredo oscilando em meu coração de um lado a outro, pensando em Naná Vasconcelos decolando de Guarulhos junto com seu berimbau mágico, levando estrelas e batuques aos céus e arredores do planeta Terra, um gênio como Hermeto, Elomar e Miles Davis. Claquete!













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