sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Jackson Pollock



Jackson Pollock

Nada do que você me escreveu, Chella, eu tinha realmente ciência. Seu conhecimento sobre Cinema é bárbaro. E como você mesma disse, algo que ama de paixão! Quando isso acontece, a gente é tomado por uma eloquência que de modo geral achamos que nos escapa. Falta-me mesmo é tempo para poder ver tanta coisa no monitor. Cinema é para mim uma das artes mais interessantes hoje em dia. A menos pretensiosa, ainda que haja uma indústria inevitável e mafiosa por trás dela. Leis de um planeta insólito! Tudo o mais me soa ridículo. Música moderna, artes plásticas, teatro, enfim, Chella, não acho necessário tanto up to date assim como o mundo pinta. Para mim, acho que para nós, não é?, essa preocupação em criar uma estética ultra moderna é ilusória... 
Certas coisas têm o poder de tocar a alma de forma muito especial. Rumi, Guimarães Rosa, Fernando Pessoa, Hafiz... E claro, Shakespeare, Rilke, Goethe, Blake, Whitman, Kabir, Sanai...a lista de homens santos é grande! Afortunadamente!
A Arte Moderna supra-valorizou a apologia do horror. Vejo muito mais arte num tapete caucasiano feito manualmente há duzentos anos do que em toda essa papagaiada que anda pelos museus afora. Os maiores ainda são os mesmos. Leonardo, Rembrandt, Klimt, Vlaminck, Van Gogh...
O Cinema tem um grande diferencial, ele é uma arte de entretenimento, que depende do gosto popular e não da nata de grã-pensadores que irá discernir o correto do incorreto. De uma coisa estou certo, Cinema é uma arte que toca diretamente o coração das pessoas e não o que a cabeça delas pensa ser corretamente moderno. A capacidade de transmissão pictórica que ele oferece é assombrosa. Com tudo isso a Arte Cinematográfica vem a ser um veículo  estupendo de formação de opinião. Seu poder positivo de influenciar é imenso. Acho, por exemplo, que a longa série de filmes tratando de culinária como resgate ou vínculo para maiores sentidos, desde o pioneiro "A Festa de Babbete", passando por "Como água para chocolate", Comer, Beber, Viver" e outros tão ou mais maravilhosos, contribuíram de forma decisiva para divulgar a culinária e o mundo da alta gastronomia como uma arte por excelência acessível a todos, não somente aos mais privilegiados. Mais que isso ainda, poderia afirmar que o Cinema é um fenômeno cultural de massa tão ou até mais importante que o rock'n'roll. A cultura do rock está morta. A do Cinema não. Não há um grupo determinante de rock. Só lixo! A Arte Cinematográfica continua a surpreender positivamente. Tem um poder espiritualizante. A gente precisa mesmo é de sublimação, não é mesmo, Sagrada Irmã? Se a Arte perder a conexão com o espírito, com a alma, tudo ficará calcado em construção estética, pensamento lógico. A gente está mais é atrás do pensamento psicológico, que fala ao espírito. Isso faz grande diferença.
Estou ouvindo neste momento música árabe numa rádio daqui. Adoro a música desse povo. Ela tem entranhas, vísceras, alegria e entrega.
Tenho visto alguns filmes sobre pintores que uma amiga (a Andrea) downloaded pra mim. Gostei demais de um sobre Goya. "Goya's Ghosts". Quanta dificuldade para fazer Arte na época em que ele viveu, numa Espanha caótica dominada pela Inquisição. Ainda preciso terminar de assistir um que comecei sobre Jackson Pollock, um pintor americano dos anos 40-50.
Pollock era um atormentado. Com uma alma que não cabia em si, tão grande quanto a de Van Gogh. Criou uma pintura legítima e belíssima, oriunda da sua febre instintiva e brutal. Mas caoticamente harmônico. É um dos poucos artistas contemporâneos que realmente chama minha atenção. Sua inteligente mulher, Lee Krasner (sem ela Pollock seria nada) também é muito interessante. Lembrei-me agora de Lucian Freud, outro digno de nota!
O tempo corrói coisas que entre eu e vocês jamais se enferrujou. Talvez seja uma questão de confiança, de quais níveis de vínculos de alguma forma especial e inexplicável se conectem .
Compartilhamos, eu penso, o pão e o vinho, Chella! Transubstanciação. Consubstancial! Talvez sejam os termos mais apropriados para nossa aura que esparge cheiro de laranja nos finais de tarde cujo por de sol só nos sabemos a cor. A poesia dos flamboyants incendiando as ruas e a cumplicidade do sorriso e da dor conjuntas... Entre nós, mesmo os mais queridos que já se foram, ainda estão presentes. Tão em nós estão! Mas isso não se explica, vive-se! Eucaristia pura.
A neve finalmente derreteu-se. Os cactos ainda estão bravamente firmes. Parece que nada lhes aconteceu. Algumas plantas definitivamente morreram. Seria um milagre com a forte nevasca que caiu. Havia previsões de que ela seria tão forte como a de 1917. Foi pior ainda. Pobres flores... Porém, a íris roxa está novamente a florir! Quem a viu, sucumbindo sob a crosta de gelo, não poderia supor.
Tenho muito a lhe dizer. Os Fados das Tormentas vagando ao meu redor! Os dias tomados de gente ao meu redor não têm permitido muita paz para que me sente integralmente a escrever-lhe. Escrevo mais. Todo Amor, Irmã Querida, um Feliz Novo Ano! Que nos vejamos neste 2014, é tudo que espero! Seu. No Dharma. C.


Jackson Pollock

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Ginga de preto


Ein Karem, 15.12.13

Bela íris que se foi. Olhei para ela hoje, ainda sucumbida pelo peso do gelo imparcial sobre sua vivacidade lilás arroxeada de fim. Destino de uma flor... Assim como o destino de sua grande e querida amiga que sucumbiu à quimioterapia. Acima de toda dor há um olhar dos deuses.
Três rosas amarelas sobreviveram, porém, reféns dentro de um vaso sobre minha mesa. Eu as colhera alguns dias antes. Há um botão de rosa no jardim. Criança solitária que não abriu seus olhos de pétalas para o frio ao redor. Um dia ele será príncipe num mundo em reconstrução. Não sei o que aconteceu com Frida Kahlo's Cactus Garden.
O alecrim, no entanto, resiste como toda planta de poder. É assim. Não é o primeiro jardim que desaparece perante meus olhos. Outros jardins também se foram, ser flores em outras atmosferas mais rarefeitas que esta, sujeita ainda a Oxigênio, Carbono e Hidrogênio.
Nós também iremos de tapete voador para outros jardins! Tratemos de ser agora as mais belas flores, de extrair da nossa clorofila as mais belas cores e seus possíveis matizes. Os perfumes e as essências virão confirmar o enredo.
Vi meu jardim agonizar na aridez do último verão e agora o novo inverno me apresenta um novo quadro de regeneração. Mudam os motivos mas o sentido continua latejando sua fonte de luz para sempre. Impermanência.

Marin Marais foi músico de Luís XIV. Como músico oficial da corte do Rei Sol, criou uma música muito suave de entretenimento, própria para o ambiente de Versalhes. Ele tem peças lindíssimas e foi o responsável pelo enaltecimento da viola da gamba como instrumento solo. Há um filme belíssimo com Gerard Depardieu que trata da vida de Marin Marais: "Todas as manhãs do mundo". Por trás da figura popular e bem sucedida de Marais estava o misterioso e hermético Monsieur de Sainte Colombe. Considera-se tradicionalmente que Marais tenha estudado num certo ponto de sua vida com Sainte Colombe. Marais era na verdade um grande virtuose e precisava de pouca informação para seguir em frente. Procurei como um louco as músicas de Colombe, que julgava ser uma eminência parda de Marais, mas para mim, as melodias de Marin Marais têm uma poética que supera qualquer peça barroca. Assim como Chopin, que é pura poesia, não somente música.

Quanto à falta de eletricidade, foi uma experiência magnífica! Ouvi um pouco de música, pois havia bateria no computador. Mas foi só. O meu fogão é elétrico. Não pude tomar banho, cozinhar, fazer café, chá ou comer nada quente. Mihal, nossa proprietária, chamou-nos para uma sopa de lentilhas (as rosadas, que você tanto gosta) à hora do almoço. Mas quem acabou cozinhando em sua cozinha fui eu, senhor de todos os aventais: Lentilhas, batata, cebola e alho à beça, mandingas (páprica, cominho e tomilho) e linguiça defumada, que pega muito bem com lentilhas. Foram 25 horas sem energia. Meditei várias vezes durante o dia. O texto chamado Haikai foi escrito à luz de velas durante a noite e transcrito no dia seguinte. E Kailash, cujas contrações começaram a acontecer na quarta-feira veio logo em seguida, num parto dourado! Para os dez graus dentro de casa, nada que dois cachecóis, quatro camisetas, duas blusas, três calças e um gorro de lã não resolvessem. Ah! Três meias nos pés. Detalhe: fui para cama assim, como um temulento! Mamulengo em sábado de aleluia!
Chella, Jerusalém está um caos desde a última quinta. Só em Jerusalém seis mil residências estão sem energia. A neve forte acumulou-se nas árvores que não resistiram e cederam ao peso, caindo sobre fios de alta-tensão. Não há aulas até amanhã. As escolas estão fechadas. Andar nas ruas está mais perigoso, o gelo sedimentou-se e ficou mais escorregadio. Fui ao armazém agora à tarde para comprar leite e alguns legumes para assar uma galinha mas não havia quase nada. Parecia tempo de guerra, quando as provisões somem das prateleiras. E israelense é neura com precauções. Coisa de quem deve no cartório. Pra mim está tudo bem. Faço caipirinha com água e o que sobrou do meu limão siciliano e danço samba, se precisar! Nada como ter ginga de preto!
Fique com todo meu Amor! Saudades muitas. Seu no Dharma. C.








sábado, 14 de dezembro de 2013

Haikai




13.12.13

Tênue, firme e precisa, a neve cai sobre Jerusalém há dois dias impiedosamente, assim como as mãos dos deuses.
Não há eletricidade. São 17:00 hs e estou à luz de velas. Já está escuro. As estradas para Jerusalém estão fechadas. Não há comida quente porque meu fogão é elétrico. Dentro de casa a temperatura talvez esteja a 10°. O peso do gelo derrubou um grande galho do limoeiro siciliano no jardim.
As flores estão cobertas pela neve.
A sensual e formosa íris roxa curva-se agora nas pedras do canteiro, submissa como uma odalisca escravizada pelo gelo sobre ela. Um modelo tenro de resignação. Nenhuma palavra. Nenhum gemido. Lilás transparência terrena sob um destino divino imaculado e inevitável. Vida.
Mas meu coração sutil não pode deixar de contemplar o quanto a alma branca da neve que cai,  carrega consigo o poder que sua beleza destruidora oculta como um véu para recomeços.
Nada termina. A sabedoria e a flexibilidade da Natureza trazem em seu íntimo orgânico a mesma inteligência que reconheci uma vez nas colossais montanhas de pedra em Yosemite: o quanto o Todo é impassível à nossa parcialização do tempo...
Tal é a impermanência, tal é o caráter efêmero, a pouca solidez de tudo o que é construído." Buda
                                                                                                                                    









quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Jetsun Milarepa






Ein Karem 12.12.13

 Neve sobre Jerusalém. Nove horas da manhã. Não há Ulpan hoje. Nos preveniram desde ontem que se nevasse de madrugada, não teríamos aula. Não nevou durante a noite mas quando saí, uma chuva fina vinha acompanhada de pequenos e leves flocos brancos quase imperceptíveis. Voltei para casa. Não demorou para que ela começasse a vir, desta vez sem a fina garoa. É incomum que neve nesta época do ano. A meteorologia diz que é a quarta vez que isso acontece. Que fenômeno lindo! Um silencio himalaico ao redor.
 Os flocos caem mais espessos sobre o jardim agora. Ontem iniciei um novo poema chamado Kailash. É uma montanha sagrada para várias religiões: Hinduísmo, Budismo, Jainismo e Bön, a religião nativa do Tibete antes que Padmasambhava viesse da Índia para trazer ao Tibete os ensinamentos de Buda Shakiamuni.
 O Bön é uma religião quase shamânica. Talvez esse fértil terreno tenha possibilitado que o Budismo se desenvolvesse de forma tão incomum, dinâmica, profunda e milagrosa, iniciando a partir de então uma longa tradição de notáveis e retumbantes Mestres Iogues. Os relatos sobre a vida desses veneráveis  e santos homens atinge os limites do fantástico.
 A vida de Milarepa, por exemplo, é envolta em mistério e assombros. Perdendo o pai quando ainda era um adolescente, seus tios ficaram responsáveis por manter a considerável fortuna da família. Terminaram por desterrar tudo e humilharam publicamente os irmãos e a mãe de Jetsun Milarepa quando esta reclamou a herança do marido para suprir as necessidades da casa que carecia então de apoio urgente. Viram-se praticamente na miséria.
 Indignada, só e desesperada pela injustiça do cunhado, ela pediu a Milarepa que fosse aprender magia negra para que ele se vingasse dos tios ultrajantes. Caso não obedecesse suas ordens, ela declarou que poria fim à própria vida. Por reverência, ainda que a contragosto ele cumpriu seus desejos  e partiu em busca de seu mestre.
 Quando voltou, escolado, lançou de imediato um feitiço sobre o vilarejo que foi acometido de um temporal inexplicável que destruiu casas, plantações e isso exterminou a vida de várias pessoas.
Depois, inconformado pelos resultados de sua vingança fatal, ele se arrependeu amargamente e decidiu corajosamente que deveria 'limpar' seu karma. Procurou então um Mestre Perfeito que pudesse aceitá-lo como discípulo. Viajou guiado por sua sede de remorso e mãos divinas, que sempre se estendem quando o coração agoniza na sede da verdade. 
 Encontrou Marpa Lotsawa, o Tradutor (1012-1097) já esperando por ele num lugar que era muito distante de sua aldeia natal. Iniciou junto ao Mestre uma longa e penosa série de 'trabalhos forçados' que o levaram muitas vezes à completa exaustão e desespero.
 Precursor de uma das linhagens ou 'escolas' de Budismo Tibetano, a Kagyu - sendo as outras cinco, Nyingma, Sakya, Bön e Gelugpa - Marpa é reverenciado como o transmissor máximo de Vajrayana e Guru Yoga na tradição do Budismo Tibetano. Em sua homenagem, a linhagem Kagyu é também chamada Marpa Kagyu.
 Como práticas preliminares, Marpa pediu-lhe desde o início que construísse várias edificações em sua propriedade e que, quando ficavam prontas,  a próxima ordem geralmente era de que Milarepa demolisse tudo e começasse uma nova obra, tendo esta última quase que inevitavelmente o mesmo destino da anterior. Marpa era impiedoso com seu 'pedreiro'. 
 Além disso, não o aceitava no círculo fechado de seus privilegiados discípulos. Milarepa implorava para receber os ensinamentos mas não obtinha permissão de juntar-se ao grupo de alunos; nem sequer assistir as práticas lhe era permitido. Quando tentou fazê-lo, por intermédio de Dakmema, a mulher de Marpa, que se apiedou dele, foi humilhado e colocado para fora sem reservas. Milarepa esteve perto do suicídio. Os deuses vergam mas não quebram. Desenvolveu assim, uma força de vontade e perseverança raramente encontradas num aspirante marginalizado.
 Após uma série de novas atribulações, que lhe valeram inclusive a fuga do templo de Marpa e seu inevitável retorno, Milarepa foi enfim admitido como discípulo e transformou-se ele mesmo em um grande e poderoso Mestre.
 Marpa sabia desde o início que Jetsun Milarepa viria procurá-lo. Havia sido previsto pelo Mahasidha Naropa, o Mestre Iluminado de Marpa, que um potencial discípulo viria a seu encontro e que este seria seu sucessor. Ainda assim, Marpa não exitou em nenhum momento em colocar seu brilhante aluno à prova com o intuito de eliminar suas obscurações e fazer dele não apenas um estudante mas um Mestre Incomparável, à altura de seu maravilhoso e divino potencial.
 Algumas edificações que Milarepa ergueu ainda se encontram firmes e resistentes até os dias de hoje. É possível visitá-las no lugar da antiga e ampla propriedade de Marpa em Lhodrak, região sudeste do Tibete.
 É dito que Jetsun Milarepa tinha poderes extraordinários. Ele podia transformar-se em diferentes animais e era visto com frequência voando pela vastidão dos céus gelados das montanhas.






terça-feira, 10 de dezembro de 2013

O ser físico do Sol que nos incendeia




Uma janela para o Monte Kailash



Tanta saudade de você... Ouvindo Marin Marais... Há alguns meses me doía ouvir essa música. Pensava em você, na nossa cozinha...
Até hoje quando olho minha bancada vazia que você fotografou um dia me dá um nó na boca do estômago. E não é de fome. Evito olhar para essa foto. Mas sempre esbarro nela em minhas imagens. A dor não se apaga. Ela cria cicatrizes. Tribais. Lembram tatuagens. Feitas com o fogo do coração. Combustíveis que movem a existência... Forno e fogão.

Você é minha grande saudade. A única saudade que cria um oco por dentro. Um restaurante faz a gente viver grandes verdades. Sempre lhe falei que a cozinha é uma escola esotérica. Faz todo sentido. A cozinha é um cosmos de possibilidades. Acho que trabalhar em cozinha me preparou muito para abraçar o Quarto Caminho e as idéias práticas de Gurdjieff, ele próprio um grande e exímio cozinheiro. Os cozinheiros carregam consigo o fogo do inferno e as cinzas bentas do paraíso. Eles são anjos e demônios. Você não, Tito, você é anjo o tempo todo.

Não trocaria meu destino de peão por nada nesse mundo. A cozinha me deu tudo. Inclusive você, que tenho como meu filho de sangue. Tenho quase certeza que já fui seu pai numa outra vida. Chamei muitos amigos de filho e filha. Mas um eco ressoava dentro de meu coração quando me dirigia a você assim. E só de pensar, me colocar neste sentimento, o mesmo som move-se quieto e latente como um leito de rio, calmo e firme como um Buda, um eco diferente, vindo de um ponto que não tenho claro.

Talvez seja mesmo algo que vem da eternidade, ventura que não conhece noção de tempo. Atemporal. Por isso você está comigo todos os dias, em todos os momentos. Mesmo minha casa tem um preparo sempre dirigido à sua visita com a Isa e que também é atemporal, acontece desde sempre. Ela existe agora, com todo esse Oceano geográfico envolvendo paisagens imaculadas.

O universo é um organismo vivo que não conhece cisões. É um crime contra si mesmo pensar algo contra o próximo. Todo mundo é uma coisa só. O mundo é um moinho, como dizia Cartola. Tudo o que fazemos, fazemos a favor ou contra nós mesmos. Não há despertar individual se os seres humanos estiverem cegos. Por isso o Mahayana é tão abrangente. Nada é individual. Isso é insano. Só é lamentável o quanto nos esquecemos dessas grandes e magnânimas verdades.

Conversava um dia desses a respeito da oitava do despertar. E de como muitas vezes não entendemos como pessoas saem de nossas vidas porque decidimos num certo ponto, rumos que pertenciam exclusivamente à nossa busca pessoal. Pessoas do Instituto que nunca mais vi... Amigos que não entendem porque continuo na Escola... Amigos da Escola que não entendem porque estou praticando Mahamudra...

Acima de tudo está a busca. A incansável busca da qual falei minha vida toda em tantos poemas, mesmo quando não sabia que buscava algo. Quando tinha oito ou sete anos de idade, me olhei uma vez no espelho do banheiro da minha avó Maria e  me perguntei: Quem sou eu? Tenho isso vivo dentro de mim. E por anos na minha infância carreguei um sentimento que me batia forte sobre a minha impressão de estar vivo, dentro de um corpo, como se de repente meu ser falasse mais alto que meu organismo...

Não significa que fui precoce, aliás não fui precoce em nada. Em tudo demorei para amadurecer. Mas nunca tive pressa. Meus esforços, humildes esforços, são parte da linha vertical do tempo, aquela que acontece em ascensão. Por isso não deixo essa Escola. Mesmo que o que se diga ou faça não me toque pessoalmente, não me atenda internamente, a gratidão é um elemento básico e presente na minha oitava do despertar, esse o grande tesouro da minha vida, que não é meu, assim como também a minha vida, que não me pertence de todo. Mesmo em meus oito anos longe da Escola, quando estive no Instituto Gurdjieff, Robert sempre continuou presente na minha alma.

Rodeei um mundo para te dizer que você, querido filho, mais que ninguém neste mundo, é também parte viva do meu trabalho interior. Que universo misterioso este nosso! Você vai me levar consigo ao longo de muitas vidas... O meu despertar é o seu despertar. Quanta claridade ao nosso redor! Em alguns momentos nossa realidade é muito mais eletrônica que molecular. Esse Sol, que tanto nos incendeia e que jamais será negado!
Todo Amor. Beijos na Isadora. Seu no Dharma. C.





quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Rita Lee e o Doce Proibido - Parte II


Ok. Aqui vai a segunda parte da minha saga com Rita Lee, Antonio! Cheguei a te falar do Doce de Abóbora que fazia no Ipê Amarelo, não é? Sempre foi meu doce predileto. Mas passou a ser realmente, depois que experimentei o doce maravilhoso que minha amiga Dalva Imaculada fazia e ainda faz até hoje. Com ela aprendi todos os truques: a qualidade da abóbora pela quantidade de fibras, seu tempo de apuração, nível de fogo e etc. Só para serviço de utilidade pública, gostaria de lembrá-lo, Antonio, que utilizo técnica de confecção de geleia para fazê-lo.
Para que a geleia chegue a um ponto consistente, é necessário que ela seja totalmente resfriada após algum tempo de fervura. O açúcar cristaliza-se e dá consistência ao doce. No dia seguinte termino de apurá-lo deixando ferver novamente em fogo baixíssimo desde o início do novo aquecimento. Todas as especiarias (sete ao todo) são colocadas num buquê garni para que não se percam no doce. Sempre achei desagradável encontrar cravos na hora de comê-lo, geralmente com uma boa fatia de queijo fresco, como se faz no interior de São Paulo, onde está a São Paulo de verdade, resguardada por uma identidade sertaneja mas cosmopolita.
Retiro o buquê garni no dia seguinte, já que ele dormiu toda a noite na panela larga em que o doce foi cozido para otimizar a redução dos líquidos. Todos os sabores, essências e o bouquet dos temperos foram implementados à alquimia deste pequeno tesouro. Não utilizo coco ralado. Nem todos apreciam. De dez quilos líquidos de abóbora inicial, são obtidos seis de doce devidamente apurado. É muito trabalho!
Uma obra de arte que causou furor no Ipê Amarelo nestes cinco anos. E essa era minha meta: encantar. Não fosse a mistura de vários temperos e o fogão ocupado com o tacho grande eu faria esse doce quase à hora do almoço, para causar mesmo, entende? Pelo aroma que invadiria o restaurante e daria um clima assim de... casa de avó! Mas nunca quis correr o risco de ter meu doce preferido comprometido pelo óleo dos salteados e salgados em seu interior quase sagrado. Chegava mais cedo para apurá-lo lentamente no dia seguinte, sem pedir hora extra, sem manchetes nos jornais, apenas por prazer e honestidade em servir algo não menos que excelente.
Devido ao trabalho e tempo hábil empenhados nessa bruxaria toda, não permitia que as pessoas levassem doce para viagem. Cheguei a chamar atenção de clientes que insistiam em contrariar minhas ordens. Parece tirania culinária, não é? E é isso mesmo. E o doce era feito geralmente no final do expediente, para não correr riscos de nenhum outro mix na iguaria. Eu falava com esse doce, Antonio: Isso, meu lindo, apura mesmo...
No final, dependendo da quantidade, gotas de limão cortado na hora em medidas matematicamente ponderadas. Nada em excesso, como no portal do Templo de Delfos. O limão vai dar um brilho a ele.
Tive clientes que comeram esse doce religiosamente todos os dias. Estou falando de cinco anos, Antonio! Queria tê-lo disponível para clientes que estivessem se servindo do buffet. Da mesma forma não permitia que se levasse falafel, um bolinho feito à base de grão de bico popularíssimo em todo o Oriente Médio. O meu tem dezessete ingredientes. Também esse, elogiado tanto pela comunidade judaica quanto pela árabe. Nisso fui hábil e diplomata! Pelo menos em nível de paladar chegou-se aqui a um acordo. O falafel exige um tempo de preparação muito grande também. Começa a ser feito no dia anterior, é frito de forma artesanal e numa quantidade limitada.
O mesmo com os nossos pastéis artesanais de sexta-feira, feitos pelas mãos mágicas de bronze grego do meu açougueiro Vitório Rodrigues dos Santos, um baiano de Boa Nova com a melhor mão para lidar com comida que já vi nesse mundo. Os pastéis eram disputados e ainda devem ser porque o Vito é o cara mesmo! Saudades daquele cabra! Então, devido a esses pormenores e caprichos, tanto o doce de abóbora quanto o falafel e os pastéis não eram permitidos para viagem.
Quando me ponho a fazer algo, Antonio, não estou de brincadeira. Você me conhece bem há quarenta anos. Desta forma, não só aprendi a cozinhar desde os onze anos de idade, porque éramos eu e meu pai, como também escrevo, pinto minhas aquarelas por prazer pessoal e fui professor de ballet clássico por 12 anos. Aliás, devo ao ballet minha incursão pelo mundo da cozinha. Quando ganhei uma das 20 bolsas que Márika Gidali e Décio Otero resolveram oferecer numa audição para 200 candidatos em 1981, algumas das aulas que tive de fazer para cumprir a carga horária necessária como bolsista, aconteciam durante o período vespertino. Para isso comecei a trabalhar à noite. Restaurantes sempre foram uma opção satisfatória para levar um plano desses a cabo. Deu certo. E me levou um pouco mais além, como você vê.
Nada do que fiz foi pela metade. Procuro colocar arte em tudo que faço, não sei atuar de outra forma. Trago o belo em tudo que me cerca. Na minha relação com os amigos pessoais, com os meus clientes, com os mendigos da rua, que conheço pelo nome, com os cachorros, com as flores, com os poetas que amo... Toda minha vida está rodeada de amor e beleza. Me arrependo dos erros que cometi. Mas até isso deu uma guinada na minha vida. Tive que comer o pão que o diabo amassou muitas vezes, e sabendo fazer pães muito bem, você mesmo um grande apreciador dos meus integrais. Os tombos nos fazem dar de cara com diamantes que não veríamos de outra forma como simples transeuntes.
Tá, vamos logo ao ponto. Uma bela manhã, antes de o restaurante abrir, um cliente veio falar com o Leonardinho sobre um problema que tinha. Uma cliente nossa, para quem ele trabalhava, estava triste, muito triste, na verdade, pois ela não comia o doce de abóbora de que tanto gostava havia muito tempo, já que o doce estava proibido de se levar 'para viagem'. Todos os dias ele vinha buscar comida para ela. E segundo ele, essa cliente era a Rita Lee.
Ouvi a história bastante cético a respeito. As pessoas podem tentar burlar as regras de qualquer jeito. Conheço a linguagem dos estômagos. Eles não sabem cantar belas canções. Ao contrário, roncam! Ok. Eu tinha num pequeno tupperware uma sobra de um doce que saíra excelente e poderia dispor dele. Mas como cortesia. A venda do doce para viagem estava vedada. Eu não seria cretino de quebrar minhas próprias regras. Nem pra Rita Lee, nem pro Mick Jagger que fosse! Quer um tratamento diferenciado? Contrate o cozinheiro, baby!
Veio o rapaz buscar o almoço da suposta cliente e postou-se à porta da minha cozinha como um enviado de Helena Blavatsky. Olhei descaradamente para ele e despachei: Esse doce é mesmo para a Rita Lee?
E por que eu mentiria?”
Por que não sei, cara! O fato é que as pessoas mentem. Olha, toma esse doce que está aqui e isso é uma cortesia, ok? E pergunte para sua patroa, se ela for mesmo a Rita Lee, quais eram os livros que ela costumava comprar na Livraria Horus. Daí eu vou saber se ela é a Rita Lee mesmo! 
Ele saiu. Não deu resposta. Eu fui jagunço até o último fio de navalha! Não suporto atitudes de vassalagem. Você pode ser digno limpando latrinas. E pode ser um covarde quando pensa que está trabalhando para a CIA e vende sua humanidade por nada.
O fato é que à hora do almoço, alguns rapazes vieram e jogaram sobre o balcão do caixa do restaurante a comida que o rapaz havia comprado há pouco. Com tanto mendigo sem o que comer pelas ruas! Vai procurar lógica nos estômagos contrariados, Antonio! É assim que eles roncam, latindo... E para complementar, uma voz feminina disse ao telefone numa ligação quase que à mesma hora:
-Eu quero que vocês vão todos se foder! Eu não tenho que provar nada pra ninguém!”
Talvez fosse ela mesmo! Não me importa! O final da história é que ela não teve o doce, que voltou e que eu mesmo comi, só por desaforo. Com uma tenra fatia de queijo minas...
Não ouvi mais falarem nada a respeito. Mudei o nome de uma das quiches que fazia por precaução. Não quis correr o risco de pagar royalties. Ficou sendo Bauru com Ervas Frescas e não Quiche Rita Lee, como um dia batizei essa quiche de queijo, presunto e ervas (salsa, manjericão e tomilho!). 
Meu amor pela pessoa dela, sua importância em minha juventude e em minha identidade de paulista e brasileiro, como ela, continuam a ser um marco. Nada mudaria isso. Como apagar sua doce imagem dos anos 60 cantando com os Mutantes na TV Record com um coraçãozinho pintado no rosto? O coração não esquece essas referências... A Rita pra mim está além dos seus eventuais pecados. E eu não sou um deles, com certeza! 
Se foi mesmo a Rita, Antonio, não posso afirmar. O fato não diminui em nada minha apreciação pela pessoa dela, como já lhe disse!
Meus heróis estão muito acima das cordas de uma guitarra. Talvez eu fizesse exceções para Guimarães Rosa, Rumi, Fernando Pessoa ou Hafiz. Mas os meus heróis, mesmo quando estão insatisfeitos, costumam pagar a conta e saírem para passear por toda a rua, sem xingar os cozinheiros. 


domingo, 1 de dezembro de 2013

As Flores do Ipê Amarelo



Léo Querido, escrevi para você na semana passada, mas relendo a mensagem, no meio da redação dela desisti completamente de mandá-la. Achei que depois de um intervalo, enviar uma mensagem repleta de queixas pelo momento seria algo inferior e não quis compartilhar um instante de tensão, achei que seria muito inapropriado. 
Muita da minha energia e do meu tempo para escrever tenho dispendido nos blogs. Não param de surgir coisas novas e as cartas que tenho escrito tanto para você como para Chela e Mará, as irmãs da Maga em Araraquara, têm sido um impulso para compor novos textos. Há um blog de cartas, inclusive duas endereçadas a você estão lá. Mas outros textos estão surgindo e em paralelo as poesias respondem de outra forma. Pareço entrar de repente numa sala de espelhos e adivinhar em cada canto uma revelação que esteve ali esperando por ser descoberta de alguma forma. Léo, não me lembro de nenhuma época em que escrevesse tanto minhas próprias coisas.
E as aquarelas também, que não param de me atormentar. Com elas estou sempre em falta. Às vezes surgem como relâmpagos. É só seguir o lampejo. Faróis em pleno alto-mar. Algumas serão suas. E só de escrever isso agora, minha lista de débitos com elas só faz aumentar. Além das séries de pimentas, pássaros locais e still life ainda quero trabalhar algumas paisagens. Criar é a melhor e mais fiel companhia. Não há méritos. Mas não há garantias, só esforços.
Observar como o processo de criação se dá tem sido uma surpresa. As poesias sempre aconteceram de uma forma própria, parecendo seguirem leis que não estão de todo sob meu controle ou possibilidade de visão. Os textos por seu turno, tratam muitas vezes de várias perspectivas ao mesmo tempo e ao final tudo se amarra. Novamente surge a analogia da sala de espelhos. E às vezes de uma forma completamente independente de como havia concebido o rumo da narrativa, surgem encruzilhadas onde entro confiante para depois colher o assombro na conclusão de tudo. A Mará tem mandado uns comentários estratosféricos para mim e que têm me surpreendido e encorajado ainda mais. Foco de uma visão literária afiada como a dela, onde tudo ela analisa sob um ângulo linguístico e extremamente treinado, o que concluo muitas vezes é que a coisa brota de mim totalmente isenta do meu controle ou capacidade. Vem de um além-mim. A ousadia de tratar grandes oitavas nos mostra nossa dimensão e tamanho, assim como aponta possibilidades e transcendências das quais não somos lúcidos a respeito.
Incrível que depois de passar uma vida escrevendo ainda encontre tanto material a ser compreendido. 
A energia do outono tem trazido maior introspecção. O jardim mudou por completo. Imediatamente as folhagens adquiriram mais vida  e as flores começaram a surgir. Preciso tirar logo alguns cactos da terra porque talvez eles ressintam a temperatura que diminui cada vez mais. Estou mais silencioso. Pareço viver uma nova estação também. Tomado por vocabulários e verbos. Penso em comida algumas vezes, mas nada que me tome o tempo e a inspiração. E com você o tempo todo no meu sentido como uma companhia constante e ausente. E aquilo que poderia parecer antagônico se mostra gentil como um bebê que quieto dorme.
Escrevi para a Eliana dizendo que a única coisa da qual realmente sinto falta no Brasil é do Ipê. É óbvio que não tenho claro as fronteiras entre você e o restaurante, Léo, já que para mim um prolonga a dimensão do outro. Noto também que não deixo muito que meu olhar se solte no vácuo que sua falta me traz. Há um sofrer, uma saudade que não há meio de esfriar e junto com esses sentimentos, uma certeza maior de que faz parte da nossa geografia pessoal este traçado. De que é assim que tem de ser e esse passo para você talvez seja muito mais decisivo que para mim. O mais significativo é que nada disso tem qualquer peso quanto à sinceridade do nosso afeto mútuo e sua grandeza. Ainda que distante de você, há um processo de crescimento conectado entre nossos seres. Um fermento necessário para nossos pães. Espero que tenhamos delicadeza e sabedoria o suficiente para pilotar esse forno!
E minha experiência no Ipê Amarelo, Léo, ainda estou digerindo e tenho certeza de que vai render muito pano pra manga. Com você eu vivi neste lugar um pequeno grande cosmos. Meu único lamento é não ter tido mais equilíbrio emocional e inteligência em momentos onde isso me faltou e, obrigatoriamente, o restaurante como organismo vivo que é, de uma forma ou outra refletiu essa incapacidade. Meus amigos sentem um pouco de ciúme pela dedicação que sempre tive por você. Talvez se eu estivesse no lugar deles sentiria o mesmo. E minha relação com você é algo completamente legítimo, jamais aconteceu um script parecido com este. 
O Retiro está por acontecer e nem por isso tenho me lançado a nenhuma expectativa ou imaginação a respeito dele. No meu último Follow Up estava tão à vontade com o Dan que achei uma brecha para ler "Ein Gedi", poema dedicado a ele. Ficou comovido. E o Dan em Follow Up, Léo, é igual a espada de Manjushri, cuja lâmina é dupla. Corte certeiro em qualquer redundância ou excesso. Mas seu coração de Mestre Compassivo ficou tocado. Bingo.
Bem, uma novidade é que a Andrea está pensando seriamente em vir passear aqui em Novembro. Acho que pode ser muito positivo para ela sair um pouco da rotina de vida que a cerca, principalmente a super proteção de casa que ao invés de fortalecer muitas vezes debilita. Criar... Quem sabe a fórmula? 
Vou manter a carta de lamentações aqui junto a esta. Só para deixar claro que o Cássio já se recuperou 100%. Acabei de socorrer um gato adolescente das garras negras dele agora mesmo, na ruazinha de casa. Macaco Preto! 
Preciso fazer a lição, Tito! Quero te ligar qualquer dia desses. Matar saudades da sua voz. Gostei tanto daquela foto de terno! Fiquei namorando vocês dois na tela ampliando no zoom do View. Essa marca que você tem na sua testa, quase no terceiro olho... O sino de S. João Batista bate as 18:30. Hora de bom menino fazer o dever de casa.
Fique com Todo meu Amor, Tito! Um beijo estalado no rosto da Isa! Sempre seu. No Dharma. C.