quarta-feira, 25 de maio de 2016

Uma Páscoa sem Mihal



Akko, 11 Maio 2016


Luciana Querida


Ainda não tenho energia para fazer tudo o que gostaria, mesmo as coisas mais simples como escrever ou estudar hebraico. Mas a cada dia sinto que me recupero mais, como disse a você.
Ainda que tudo pareça tão improvável, sempre é maravilhoso abrir a janela e ver esse lindo mar azul se transformando. Eu mesmo sinto que também estou num momento de transformação. E mudanças sempre são desconfortáveis, é como remar num mar sempre desconhecido, onde nada é garantido, seja tempo, vento ou tempestade.
É preciso abraçar a mudança como a um amor incondicional. Talvez seja a única fórmula para uma receita que deve ser, no mínimo, feita a olho e ao acaso. É ligar o forno e arriscar!
Tirei os ganchos. Meu cirurgião o fez. E então ele me relatou o quanto foi difícil não fazer uma incisão. O estado da vesícula era muito grave. Havia uma inflamação crônica que ele não acreditava. Ele mesmo disse esteve a ponto de fazer um corte externo, mas ainda assim tentou manter a intervenção na laparoscopia e obteve êxito.
Na primeira consulta que tive com ele não lhe pareceu que eu estivesse tão debilitado. Eu não estava tomando nenhuma medicação e não apresentei uma série de queixas que normalmente as pessoas trazem. Ele mesmo chegou a me questionar se eu achava que deveria me operar. Ontem ele relembrou essa dúvida com espanto.
Mas eu sinto que muitas coisas estão mudando no meu corpo, Lu. Mesmo um adormecimento que eu tinha no quadríceps da perna direita está desaparecendo. Outro sintoma favorável (e muito favorável por sinal!) é o alívio que sinto na região lombar da coluna. Nos últimos dias, minhas caminhadas eram sofridas. Sentia as pernas travadas.
Ontem fez apenas uma semana que voltei para casa. Já parece há tanto tempo...
Fui até Ein Karem para pegar minha correspondência. Desci até o jardim da antiga casa. Estava carregado de rosas. Ao jardim, à parte sua beleza irreproduzível, faltava a alegria que permeava nossa vida ali. Senti que para ele talvez nossa perda fosse mais irreparável que qualquer outra coisa. Os três anos que moramos nessa casa foram um ponto alto naquele espaço.
Mas para Mihal o choque de ver-se ali sozinha sem nossa companhia deve ter sido também algo doloroso. Ela decidiu tomar as rédeas da locação e não parece nem um pouco preocupada em acelerar esse processo. Isso sempre foi feito pelo filho dela. Sempre diz que será muito difícil encontrar inquilinos como nós. Por Mihal eu realmente sinto. É uma mulher muito interessante e sempre troquei muita coisa com ela. Falávamos de tudo! Arqueologia, música clássica, poesia, livros, gramática semítica... Um mundo inteiro!
Pra você ter ideia, alguns dias antes de nos mudarmos ela me deu esse bibelô do 'pequeno chinês leitor'. Um gesto simples. Mas quanto me tocou! Ela tinha uma caixa de pratos e outras coisas que gostaria de nos dar mas esse pequeno objeto ela deixou de fora. Já tenho tanta louça!
E foi a única coisa que eu realmente quis! Pela grandeza do gesto e por ter realmente gostado demais dele! E não é que Mihal seja uma pessoa afetuosamente calorosa. Nada disso! Ela é bem germânica! Mas há um lado dela que é amabilíssimo! E a forma que ela tem de contar uma história, o 'timing' de comédia nato que ela possui para tornar o simples algo extremamente engraçado sempre arrancou gargalhadas homéricas de mim!
Quis te contar tudo isso, relatar essa pequena cruz de momento para ter alguma páscoa de ressurreição que seja possível! Afinal, a gente tem que obrigatoriamente passar pela Sexta-feira da Paixão se quiser comer chocolates no domingo, não é mesmo? Que o Logos nos traga sempre a compreensão resignada desse jejum cristão que a prevenção do instinto inventou em dietas caras movidas a bacalhau da Noruega! A gente inventa luxos até mesmo na abstinência!
Fique com todo meu Amor, filha! Muitas saudades e pensamentos sempre repletos de Amor por você! No Darma. C.





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