Akko,
11 Maio 2016
Luciana
Querida
Ainda
não tenho energia para fazer tudo o que gostaria, mesmo as coisas
mais simples como escrever ou estudar hebraico. Mas a cada dia sinto
que me recupero mais,
como disse a você.
Ainda
que tudo pareça tão improvável, sempre é maravilhoso abrir a
janela e ver esse lindo mar azul se transformando. Eu mesmo sinto que
também estou num momento de transformação. E mudanças sempre são
desconfortáveis, é como remar num mar sempre desconhecido, onde
nada é garantido, seja tempo, vento ou tempestade.
É
preciso abraçar a mudança como a um amor incondicional. Talvez seja
a única fórmula para uma receita que deve ser, no mínimo, feita a
olho e ao acaso. É ligar o forno e arriscar!
Tirei
os ganchos. Meu cirurgião o fez. E então ele me relatou o quanto
foi difícil não fazer uma incisão. O estado da vesícula era muito
grave. Havia uma inflamação crônica que ele não acreditava. Ele
mesmo disse esteve a ponto de fazer um corte externo, mas ainda assim
tentou manter a intervenção na laparoscopia e obteve êxito.
Na
primeira consulta que tive com ele não lhe pareceu que eu estivesse
tão debilitado. Eu não estava tomando nenhuma medicação e não
apresentei uma série de queixas que normalmente as pessoas trazem.
Ele mesmo chegou a me questionar se eu achava que deveria me operar.
Ontem ele relembrou essa dúvida com espanto.
Mas
eu sinto que muitas coisas estão mudando no meu corpo, Lu. Mesmo um
adormecimento que eu tinha no quadríceps da perna direita está
desaparecendo. Outro sintoma favorável (e muito favorável por
sinal!) é o alívio que sinto na região lombar da coluna. Nos
últimos dias, minhas caminhadas eram sofridas. Sentia as pernas
travadas.
Ontem
fez apenas uma semana que voltei para casa. Já parece há tanto
tempo...
Fui
até Ein Karem para pegar minha correspondência. Desci até o jardim
da antiga casa. Estava carregado de rosas. Ao jardim, à parte sua
beleza irreproduzível, faltava a alegria que permeava nossa vida
ali. Senti que para ele talvez nossa perda fosse mais irreparável
que qualquer outra coisa. Os três anos que moramos nessa casa foram
um ponto alto naquele espaço.
Mas
para Mihal o choque de ver-se ali sozinha sem nossa companhia deve
ter sido também algo doloroso. Ela decidiu tomar as rédeas da
locação e não parece nem um pouco preocupada em acelerar esse
processo. Isso sempre foi feito pelo filho dela. Sempre diz que será
muito difícil encontrar inquilinos como nós. Por Mihal eu realmente
sinto. É uma mulher muito interessante e sempre troquei muita coisa
com ela. Falávamos de tudo! Arqueologia, música clássica, poesia,
livros, gramática semítica... Um mundo inteiro!
Pra
você ter ideia, alguns dias antes de nos mudarmos ela me deu esse
bibelô do 'pequeno chinês leitor'. Um gesto simples. Mas quanto me
tocou! Ela tinha uma caixa de pratos e outras coisas que gostaria de
nos dar mas esse pequeno objeto ela deixou de fora. Já tenho tanta
louça!
E
foi a única coisa que eu realmente quis! Pela grandeza do gesto e
por ter realmente gostado demais dele! E não é que Mihal seja uma
pessoa afetuosamente calorosa. Nada disso! Ela é bem germânica! Mas
há um lado dela que é amabilíssimo! E a forma que ela tem de
contar uma história, o 'timing' de comédia
nato que ela possui para tornar o simples algo extremamente engraçado
sempre arrancou gargalhadas homéricas de mim!
Quis
te contar tudo isso, relatar essa pequena cruz de momento para ter
alguma páscoa de ressurreição que seja possível! Afinal, a gente
tem que obrigatoriamente passar pela Sexta-feira da Paixão se quiser
comer chocolates no domingo, não é mesmo? Que o Logos nos traga
sempre a compreensão resignada desse jejum cristão que a prevenção
do instinto inventou em dietas caras movidas a bacalhau da Noruega! A
gente inventa luxos até mesmo na abstinência!
Fique
com todo meu Amor, filha! Muitas saudades e pensamentos sempre
repletos de Amor por você! No Darma. C.
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