O Purim é uma comemoração que adquiriu ao longo do tempo um caráter tipicamente pueril. É uma festa de alegria e não um feriado religioso, embora celebre uma das muitas libertações do povo judeu de algum de seus muitos jugos, desta vez na Pérsia e tendo como figura principal a rainha Ester, a mesma que dá nome a um dos livros do Antigo Testamento. Soube há muito tempo que o Livro de Ester é o único na Bíblia em que a palavra Deus nunca é mencionada.
A Torá, quando lida nas sinagogas não permite que se pronuncie o nome de Deus (Iavé), e que surge, é óbvio, em muitas passagens de todos os seus livros. Nem mesmo é polido ou respeitável que se diga o nome em situações coloquiais. Pois então, nas leituras religiosas, quando se chega a esse nome impronunciável os rabinos dizem “O Nome”: Ashem. E todos sabem a quem estamos nos referindo. O segundo mandamento, não esqueçamos, pede que não se tome seu santo nome em vão. Ok!
Outras maneiras de se referir a ele é dizer Eloheinu (nosso deus) ou Elohim, ou ainda Adonai (O Senhor). Interessante observar que para os árabes, o nome de Deus (Alá) é o carro-chefe de praticamente tudo o que fazem, um portal por onde tudo começa: “Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso”. Todos os suras do Alcorão começam com essa epígrafe. Proferir o nome de Deus, ao contrário da proibição e reverência sombria dos seus irmãos semitas, para os árabes funciona como um abrir as portas do Paraíso na Terra.
'Fato é que esse ingrediente de alegria é algo bastante raro de se encontrar gratuitamente nessa etnia, estigmatizada no século passado pelas memórias do holocausto e todas aquelas feridas jamais cicatrizadas, o que tornou a cultura judaica algo mais calcado ainda num sentimento premente de injustiça pelo papel que lhes coube de vítimas do planeta, sem dúvida alguma uma das passagens mais sombrias que a história da nossa agonizante civilização pôde presenciar no Kali Yuga.
É costume que no Purim as crianças se vistam com fantasias e os adultos terminaram por adotar de tabela certos trajes ou indumentárias bizarros, o que, a meu ver, funciona também como um respiro de positividade dentro de todo o clima de tensão que tem um país em estado de dominação contínua, onde tudo pode acontecer e a suspeita sobre quem está a seu lado pode fazer com que seu sentido de alerta apite na hora mais errada.
Fui ao Hadassa fazer uma ultrassonografia em pleno Purim. Vi os balconistas dos Cafés que lá existem (é uma verdadeira cidade!) vestidos de uma forma diferente, fantasiados ou maquiados de maneira engraçada... Purim!
E na recepção da sessão de ultrassonografia não era muito diferente. Me chamou a atenção uma mulher loira com um batom carregado, muito maior que sua boca e que surgiu de uma das salas onde antes se ouvia um estalar quase estridente de várias gargalhadas. As pessoas na sala de espera se entreolhavam e conferiam as horas...
Ela parecia alguém muito leve, uma mecha azul num dos lados dos cabelos combinando com um belo par de olhos no mesmo tom. Mas os olhos eram capítulo à parte. Eu diria que só a Tia Anastácia na sua provável miopia poderia desenhar cílios daquele tamanho. E haja Emília que piscasse aquilo tudo!
Entreguei minhas guias de requisição e meu cartão da assistência médica. Trouxera um livro comigo para eventuais salas de espera mas decidi que o melhor mesmo era sonhar com o cinammon roll quentinho e meu capuccino que o 'Aroma' faz tão bem e que eu estava pronto para degustar em minha abstinência de leite das últimas semanas, só pra expurgar minhas saudades!
Opa! Chega minha vez! Claro que meu nome é pronunciado da forma mais mequetrefe e variável possível mas eu tenho tempo de me recuperar do susto e entender o número da sala. Caminho até lá.
Surpreeeesa! Adivinhe quem está me esperando? Ela mesma. Seu nome é Sílvia e ela é argentina. Em Israel desde 82. É então que olho para ela, já deitado e com a camisa levantada, e vejo o imenso chapéu de chef que ela ostenta sobre os cílios!
Simpática, a danada! Ela me aplica uma pomada tão gelada quanto o clima de hospital que me ojeriza. Mas com ela tudo é quase à milanesa! E trago o pouco espanhol que adquiri nas leituras ocasionais porque o inglês dela é de doer! Mas nos entendemos bem e tagarelamos à beça, bons oriundos do terceiro mundo que somos e parte feliz da seleta minoria que representamos nesse sagrado Estado de Israel! Deus me defenda, pronunciando ou não seu santo nome em vãos, pelas paredes que sempre têm ouvidos. Mas ainda assim ela me diz em carochinhas quando perguntol: 'Estoy mui mal?'
- 'Não, tudo está bem mas sua vesícula está engruvinhada de tantas pedras. Tem que fazer cirurgia!'
Ela ri muito da coincidência por eu ser chef e ela estar no “comando da cozinha” nesse dia. E ela maneja meu corpo sobre o divã como se eu fosse o mais suculento dos bifes! Carne brasileira!
Tudo termina e ela sai para imprimir meu exame enquanto enxugo o creme que ela me passara no abdômen.
Voltei para casa depois do 'Aroma'. Meu Purim dos textos do Navarro foi a arrematação final para as duas pinturas de Masaccio que terminei para o blog 'Arte: Significados e Símbolos'. Fiz um almoço interessante, couscous marroquino de legumes e uma sopa vegetariana que levava depois de batida: ervilhas frescas, missô, alho moído, cebola e salsa. Mais Victor Navarro durante a tarde.
Assisti uma das reuniões inspiradoras de Dan no web e fui tarde para a cama. Ajeitei minha almofada no chão e pus o xale grosso de yaqui nas pernas para a última sessão do dia. Ainda é frio à noite.
Um sentimento leve da mão divina sobre minha cabeça, sempre a contar piadas quando o destino é sísifo, percorre como um novo ingrediente todo o final da meditação. Eu termino a sessão: Corpo, fala e mente.
E no travesseiro, a imagem de Sílvia com seu chapéu de chef flutuando branco na serenidade azul de seus olhos, faz do meu momento um tempero em brisas mais que suficiente para uma boa noite de sono. Em borrados batons, Emília sorri seus armarinhos...
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