terça-feira, 24 de maio de 2016

O barquinho e os enigmas que a gente vive



Akko, entre 9 e 15 de Abril 2016

Chella Querida

Tantas coisas acontecendo nestes dias e sua cirurgia por acontecer tão em breve! É sem dúvida um momento de transição para nós todos! Tenho colhido as impressões emocionais dessa nossa trajetória e tudo me parece às vezes surgido de um sonho. Quanta bagagem, quantos atropelos e quantas esperanças fomos construindo ao longo de todos esses anos! E nesses últimos três, tantas outras provações e alegrias presenciamos! Nosso encontro telegráfico em 2015 selou uma nota alta em nossa tão rara e especial amizade. E finalmente vim para Akko!
Sinto tudo isso como o emergir de uma forma de limbo que o destino traçou e validou apenas por certo período de tempo, involuntário e necessário para novos passos que só seriam possíveis depois, em outras coreografias ainda por serem inventadas, sob novas luzes destiladas a sal, sol e à maresia do Mediterrâneo. Quando se atravessa assim o umbral de um mapa onde se viveu certa fase, mirar adiante é um modo de entender o percurso trilhado anteriormente, porém desta vez visto do alto, como num plano único de voo, onde rotas se desenham por meio de radares virtuais que de modo algum riscam o azul imaculado do céu onde se paira, muito além dos ruídos das turbinas dos aeroportos. Você sabe como ninguém do que falo...
Escrever daqui é uma experiência nova, da mesma forma que a comida que preparo e que não adquiriu ainda o ritmo da casa. Tudo sabe a novidade. As palavras também não reverberam pelas paredes que estão nuas, não ecoam verdades garantidas pelos cantos da casa; há um sabor legítimo demais que será degustado apenas com o passar ilusório dos dias, que por sua vez se transformarão em semanas, meses e anos.
Só então muito depois, a toalha xadrez posta sobre a mesa para o jantar me remeterá ao começo disso tudo, fará soar um sol sobre o pedaço de mar que vejo da sala e me trará de volta à ingenuidade deste próprio momento, quando a única realidade era essa brisa fria que me chega agora em sopranos, vinda da praia tão perto e que não sabe me contar ainda estória alguma sobre este lugar tão inédito.
O corpo está cansado, os músculos ressentem o exercício de dias e dias encaixotando os livros e a vida. Colocar tudo no lugar novamente e estabelecer um vínculo emocional com o novo espaço é enriquecido pelo fato de pensar que estou agora em minha própria casa, a cinco minutos da praia e muito perto da Cidade Velha de Akko, com suas velhas e carcomidas muralhas à beira mar e uma infinidade de ruas estreitas que apelam para um perder-se entre os diversos aromas dos narguilés, o cheiro acre dos peixes frescos no mercado árabe e as especiarias infinitas ardendo nos olhos da paisagem enquanto mordem pequenos segredos na garganta.
Aqui tudo é muito simples, com muitos pássaros ao redor sempre cantando e uma brisa muito fresca vinda da direção do mar e que entra pela casa aos redemoinhos trazendo um gosto de mergulho às narinas. À noite deixo uma fresta de janela por fechar para que o vento uive suas correntezas no escuro, narrando tudo aquilo que não pôde dizer às ondas antes que se quebrassem nos corais.
Hoje caminhei na orla da praia pela manhã. É tão agradável andar uma longa extensão sem ter que escalar ladeiras e morros e chegar nos lugares com o coração quase saindo pela boca e a sensação de que a aventura do passeio transformou-se numa mera frustração acusando a senilidade premente pela completa falta de ar resultante!
Moro num lugar onde há muitos árabes, isso também por conta da proximidade com a Cidade Velha, um território quase que exclusivamente deles. São muito diferentes aqui e não possuem o peso e gravidade que se vê neles em Jerusalém, onde são marginalizados e malvistos. Sinto que estão mais em essência, menos na defensiva e que se impõem mais livremente.
Ainda não coloquei as máscaras tibetanas, os garudas ou as pinturas nas paredes. Preciso de algumas coisas antes, como guarda roupas e estantes para os livros e dispor o espaço físico primeiro para ocupar as paredes com a certeza de que nada ficará estranho ou poluído visualmente. Entra muita luz no apartamento, essencial para pintar aquarelas. Também não coloquei os tapetes no chão. Mas o lugar já está incrivelmente aconchegante.
De uma certa forma é importante estar de volta à cidade. Sinto que a experiência de Ein Karem foi como um retiro prolongado, um lugar de introspecção e recolhimento importante para aquele momento. Ali eu pude iniciar uma série de atividades, pude estudar muito e para mim ficará sempre marcado o fato que foi de lá que estabelecemos nossa comunicação novamente. 
O mais notável é que de tantas coisas maravilhosas acontecidas naquele lugar, nada é sentido como nostalgia, tudo seguiu uma sequência harmônica e clara, sem cisões. O momento final foi obviamente uma transição difícil, a viagem ao Brasil mexeu muito comigo internamente e o arrastar-se dos últimos meses, com o imperativo do inverno a toda prova tornou tudo ainda mais dolorido. Mas a gente sobrevive bravamente!
Mas não esperava que Akko fosse ser uma experiência tão positiva, tão energética e revigorante. Não contava, marinheiro de primeira viagem que sou, que o mar pudesse abraçar tanto espaço que ficou por ser preenchido e que eu próprio não me dei conta. Para mim ficava sempre a interrogação do que eu faria sem ter um lugar como o antigo jardim. Mas a janela do quarto responde essa e todas as questões. E propõe ainda outras, completamente impensadas.
Virar essa página significou o encerrar-se de um certo momento que vivi quase que de tabela, livre de qualquer tática que pudesse objetivamente me direcionar para a trave de algum gol. Havia apenas um gosto desse jogo, uma tourada contra um destino totalmente emoldurado em neblinas que eu sabia serem inegavelmente minhas.
Não sei bem por que quis tanto escrever para você contando tudo isso. Escrevi aos poucos, contando algumas coisas que achei relevantes e que observei em silêncio. O fato é que tudo o que experimentei nessas últimas semanas, de uma maneira ou de outra trouxe invariavelmente a lembrança de sua alegre pessoa, sempre tão calorosa e feliz! Tive você nos pensamentos como uma companhia constante. Vi o e-mail que você mandou hoje apenas um minuto depois que você enviou. Incrível a sintonia de almas! 
É uma realidade incontestável que terminamos por ser forte referência um para o outro nesse momento de nossas vidas. Toda essa jornada tão difícil que você teve de trilhar nos últimos meses, de certa maneira foi minha também; a meu modo eu estive presente e fiz parte consistente dela, mesmo em silêncio. E tenho plena certeza de que essa fase teve suas sementes que um dia germinarão maravilhas. Nossa amizade, por exemplo, conquistou esse tempo e cresceu vertiginosamente sem que planejássemos nada. 
Talvez trouxemos tudo isso de outras vidas, algo que a gente nunca considera apropriadamente porque simplesmente não é prático. E depois, para quê o faríamos? Certos eventos não podem ser mesmo explicados ou racionalizados. Eles são a expressão do mais elevado e impronunciável enigma. E enigmas a gente vive.
Todo meu Amor. No Darma. C.

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