terça-feira, 24 de maio de 2016

Trens e trilhas



Akko, 27 Abril 2016

Chella Querida

Você saindo do seu confinamento e eu prestes a entrar no meu. Finalmente marcaram a cirurgia para o próximo domingo, dia primeiro de Maio. Conte como está indo sua recuperação. Já dá pra pegar um cinema? Maravilhoso que ainda na fase do confinamento você tenha se sentido bem, sem arritmia! Isso me deixa muito feliz, Chella!
Esqueço sempre de dizer duas coisas: um dos chaveiros que você me deu está desde o início da mudança nas chaves do novo apartamento. Nem sei se foi intencional de sua parte mas não poderia haver presente maior. O que tem aquele pequeno tamborzinho estava usando em Ein Karem mas ele quebrou. Mesmo assim guardei o tamborzinho e trago sempre comigo dentro da bolsa. Para dar sorte e me lembrar sempre de despertar!
Já há dias não ouço, mas a segunda surpresa é que posso escutar o trem que passa em Akko tarde da noite, quando há mais silêncio. A estação não fica muito longe daqui. Há um trem que vai até Tel-Aviv. Morro de vontade de viajar nele um dia! As ferrovias percorrem lugares ocultos, esquadrinham matas e outros segredos que apenas trilhos e céus conhecem. No Egito fiz uma viagem inesquecível de Aswan até Luxor. Três horas passando por plantações e lugares onde só se pode alcançar com o olhar num único relance. Vacas, camponeses solitários, casas com janelas minúsculas para aplacar o calor escaldante da África... Grudado na janela feito uma lagartixa! Era de primeira classe (de quinta categoria!) e camundongos minúsculos vez por outra cruzavam assustados o corredor do vagão! Pequenos vultos pretos que um inglês risonho  a certa hora decifrou por trás de seus óculos, sorrindo afirmativamente através das palavras: 'Mices!!!'
Assim como você, tenho uma ligação emocional com trens. Eles sempre estiveram presentes em momentos muito especiais. Eu fazia muitas viagens com meu pai para irmos a Santo André nos finais de semana, onde ele tinha um casal de amigos de quem gostava muito, José e Virgínia. Era o único lugar em que via meu pai sentar-se à mesa para comer como se estivesse em casa, tão acanhado que ele era! Eles possuíam uma vila de casas que alugavam e para minha felicidade eu tinha sete meninas com quem costumava brincar de tudo que mais gostava: cabana de ciganos durante o dia e show musical à noite, nas escadas largas da loja de geladeiras que eram então nosso teatro de arena. Era um lugar muito especial a casa deles. Uma horta imensa com um pé de limão-cravo que comíamos furtivamente com o sal roubado de uma das mães e um galinheiro imenso, cercado a sete chaves onde todas as galinhas botavam ovos de ouro! Estive em outubro passado na casa de duas irmãs que eram minhas princesas favoritas, Silvana e Sandra. Foi uma das poucas visitas que fiz. Sandra é minha amiga no facebook. Incrível como nossa infância dourada é uma referência forte para ambos.
Dona Virgínia era uma fada. Os almoços deliciosos eram feitos numa mesa imensa e os gatos sempre ficavam embaixo da minha cadeira para garantirem os melhores petiscos. Os olhos ferozes de meu pai contabilizavam o desperdício do frango que eu deixava de propósito nos ossos que distribuía para os bichanos com a destreza de um mágico. Mesmo assim, eu sempre merecia o pudim de leite condensado que ela cortava generosamente para mim no final das refeições. Quando nós voltávamos, e talvez para consolar a tristeza das minhas artes obrigatoriamente interrompidas, ela me estendia um saquinho de papel com alguns waffers dentro e me dizia entre um piscar de olhos e um sorriso: 'Toma, isso é pra você comer no trem.' Logo depois, já acomodado na janela e adivinhando a paisagem da noite escura ao longo dos trilhos rumo a Sampa, eu saboreava o amor em forma de biscoitos que a ternura dela tivera o cuidado de rechear.
Em 96 fui visitá-la pela última vez. Ela já estava bem doente por causa da leucemia que logo iria levá-la. Mas ela já não cozinhava a essa altura. Comprara uma feijoada numa rotisserie para nosso almoço. No entanto, em certo momento me disse que fosse à padaria comprar uma coca-cola para nós. Ao chegar, ela me pediu que colocasse o refrigerante na geladeira. Quando abri o refrigerador não pude acreditar: Chella, ela tinha feito o pudim! Boquiaberto e emocionado pelo gesto, olhei para ela e perguntei: 'A senhora fez...' Ela sorriu e franziu o nariz como era de seu costume quando queria nos agradar... Coisas que valem uma vida!!!
Para o seminário também íamos de trem. A estação ferroviária de Araraquara foi o primeiro lugar da Morada do Sol em que pisei. Da escola da Maga, tão próxima, era possível escutá-los. Tão poético tudo aquilo... Quando soube que seu pai trabalhou ali, alemguma coisa sorriu dentro de mim. O embalo dos trilhos conduzindo mil contas  nossos rosários...
É lindo quando as lembranças que trazemos nos dão coragem e inspiração para olhar adiante. E a companhia da poesia sublima tudo, torna tudo o que parece fugaz, eterno e significativo.
Caminhei agora há pouco pelo calçadão. O mar parecia bravo, com ondas altas e brancas quebrando contra os recifes. Penso sempre em você quando caminho por lá. Eu consigo imaginar você aqui conosco. E mesmo sendo um lugar muito simples, tenho certeza que você vai adorar Akko! Algumas coisas ficarão marcadas para você. A qualidade de certos alimentos aqui é muito melhor que em Jerusalém. Ainda não coloquei os tapetes no chão e faltam ainda algumas coisas nas paredes. Quando tudo ficar pronto tiro algumas fotos para mandar a você.
Fique com todos os Anjos. Todo meu Amor no seu Coração. No Darma. C.

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