terça-feira, 24 de maio de 2016

Pedras Rolantes



Akko, 3 Maio 2016

Queridas Filhas e Irmãs

O hospital foi uma experiência mística, um rito de passagem. Foi uma cirurgia difícil! Segundo Dr. Amog, o cirurgião mais linha dura que já vi, até a raiz da alma, foi muito difícil. Normalmente é um procedimento que toma uma hora e um quarto no máximo. Fiquei duas horas na mesa. Não precisei receber nenhuma incisão, ficou tudo mesmo na laparoscopia. Três furos do lado direito mais um dreno extra porque o fígado foi um pouco ferido no decorrer dos esforços e eu precisei andar dois dias com aquele apêndice estranho. Por isso não me liberaram ontem, como estava previsto. 
Minha vesícula estava congestionada de pedras. Rolaram todas morro abaixo!!! Estou com os beiços um pouco machucados por conta da entubação que eles fazem para estufar a vítima e poderem trabalhar com as câmeras e os aparelhos sem qualquer outro atropelo que não seja a própria!
Fiquei num quarto sozinho e tinha uma vista linda das colinas de Ein Karem para olhar da minha cama de convalescente feliz! Comprei um livro de contos de Anton Tchekov para me ajudar a passar o tempo. Depois me lembrei que Tchekov também fora médico, assim como meu amado Guimarães Rosa.
Hadassa é um hospital muito antigo, um conjunto enorme de edifícios que consegue ser ainda maior que o Hospital Sírio-Libanês em São Paulo. Parece uma cidade! Tem de tudo lá dentro. Hotel, shopping com várias lojas e praças de alimentação e padarias que fazem pães e croissants deliciosos cujo aroma inunda completamente os corredores da entrada principal. Há uma sinagoga também com vitrais lindos de Marc Chagall. Um dos pátios internos está sempre chapiscado de andorinhas em voos rasantes.
Quando estava indo para a sala do pré-operatório, já na cadeira de rodas e com aquelas saias ridículas que eles te colocam pra você não ter que fugir de bunda de fora o primeiro pensamento que me veio foi a Maga me dizendo: 'Meu bem, não tem medo não que daqui pra frente eu vou estar o tempo todo com você!'
Logo depois da operação me aplicaram uma injeção de morfina para aliviar a dor. Não sei se foi por causa disso mas a partir dali experimentei tanta coisa... Parecia uma gira! Sentia pessoas sentadas perto da minha cama o tempo todo, contando coisas engraçadas, histórias que na hora eu ouvi interessado mas das quais não me recordo de modo algum. Nesta última noite ouvi orações acima da minha cabeça mas eu não conseguia entender o idioma. Mas eram bem umas vinte pessoas rezando, uma reza demais de afiada. Quem estava no coro sabia muito bem o que estava fazendo! A princípio eu não entendi o que era aquilo. Acordei com aquele vozerio todo acima da minha cabeça... Mas perceber que eram apenas pessoas rezando me fez adormecer de novo. 
Quando acordei, estava apoiado no meu lado esquerdo, coisa que até então não fizera e não sentia nenhuma dor. O tempo todo foi assim! Impossível que aquela morfina de domingo tenha feito toda essa esbórnia e tido um efeito tão prolongado! Havia coisas que eu queria anotar para poder lembrar depois mas o momento era tão inédito que deixei passar a sede do registro para viver cada segundo como a peça sugeria e beber do próprio instante sem qualquer sofreguidão, só com a mais pura entrega!
Hospitais são lugares de sofrimento verdadeiro. Energias sutis se mesclam com percepções instintivas acuadas. Sou muito cético a respeito dessas coisas mas a verdade é que vejo vultos em todos os hospitais. Já no Sírio-Libanês acontecia isso. Mas essa falação toda... essas pessoas sentadas ao meu lado... não consigo explicar! Esta noite acordei querendo estar na minha cama, com o barulho do mar contando coisas... Estendi minha mão para fora do leito e um calor morno e conhecido pousou nela como um pássaro dançante que me fez dormir de novo...
Estou me sentindo bem! O dreno estava atrapalhando um pouco. Tiraram nesta manhã. Credo! Me senti uma ostra sendo debulhada nas entranhas! E sem direito a pérola alguma pra levar de vantagem! Tenho sensibilidade nas perfurações mas nenhuma dor acentuada demais. Desculpem por não ter dado notícias antes, cheguei em casa há poucas horas. 
Beijos Mil! Fiquem com todo meu Amor. Algumas fotos do apartamento e do mar inenarrável. No Darma. C.


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