quarta-feira, 25 de maio de 2016

Mediterrâneos...


Akko, 13 Abril 2016

Rico Querido, que surpresa linda receber sua mensagem! Correu tudo bem em nossa mudança, mesmo sendo feita em plena lua nova. Já compramos guarda-roupas, cortinas, estantes para os livros, um sofá gostoso e mais algumas prateleiras para a pequena despensa onde ficarão nossas malas, caixas e coisas que não utilizamos no dia a dia com muita frequência.
Hoje foi o primeiro dia em que parei realmente e pude descansar um pouco. Não tinha parado ainda. No final do dia eu tinha o corpo moído mas um trilili de missão cumprida! Igual aula de ballet! Vou amanhã ao hospital para a consulta com o anestesista. Acredito que nessa entrevista a cirurgia já será marcada. Tomara!
Ri, gosto demais daqui. A cada dia me encanto mais! A cidade tem alguns recantos que me lembram demais outros lugares! Não estou muito distante da Cidade Velha de Akko, um lugar especial onde a muralha fica à beira-mar. Há muitos árabes e aqui eles são muito diferentes. A convivência é pacífica e em nada lembra o sentimento opressivo que se vê neles em Jerusalém. Parecem mais em essência.
O Mediterrâneo se transforma no decorrer do dia mudando de cor a todo instante. Há muito vento no apartamento pela proximidade da praia. Do meu quarto dá para ouvir o barulho das ondas quando o mar está muito revolto. Tenho caminhado no calçadão quase todos os dias. Isso tem sido muito legal.
Querido Amigo, claro que senti que você não estava muito à vontade em nossa última conversa. Mas ainda assim pude compreender tudo que você me disse, mesmo aquilo que talvez tenha ficado por ser dito. Rico, o mais importante de tudo é essa liberdade que flui entre nós de forma tão natural. Isso é algo que tenho valorizado mais e mais no decorrer da vida.
Para mim também é claro que construímos uma estrutura que vem de uma outra dimensão de tempo. Assim como você, sou bastante reticente quando se trata de afirmar coisas que não tenho como provar, mas essa é uma das mais raras e adoráveis exceções.
Fiquei muitíssimo feliz pela Tita pensar seriamente em lecionar. Ela tem um potencial enorme como ser humano, o que fará toda diferença quando ela começar a verificar realmente o leque de possibilidades que se abrirá no futuro. Eu acredito demais nela! E a Roberta é alguém que, assim como você, me inspirou sempre um clima de total liberdade. A relação com vocês é algo de uma qualidade única em minha vida. A distância entre nós será sempre um pagamento de aceitação que não pode ser efetuado senão às prestações. Assim foi escrito, assim será vivido!




Uma Páscoa sem Mihal



Akko, 11 Maio 2016


Luciana Querida


Ainda não tenho energia para fazer tudo o que gostaria, mesmo as coisas mais simples como escrever ou estudar hebraico. Mas a cada dia sinto que me recupero mais, como disse a você.
Ainda que tudo pareça tão improvável, sempre é maravilhoso abrir a janela e ver esse lindo mar azul se transformando. Eu mesmo sinto que também estou num momento de transformação. E mudanças sempre são desconfortáveis, é como remar num mar sempre desconhecido, onde nada é garantido, seja tempo, vento ou tempestade.
É preciso abraçar a mudança como a um amor incondicional. Talvez seja a única fórmula para uma receita que deve ser, no mínimo, feita a olho e ao acaso. É ligar o forno e arriscar!
Tirei os ganchos. Meu cirurgião o fez. E então ele me relatou o quanto foi difícil não fazer uma incisão. O estado da vesícula era muito grave. Havia uma inflamação crônica que ele não acreditava. Ele mesmo disse esteve a ponto de fazer um corte externo, mas ainda assim tentou manter a intervenção na laparoscopia e obteve êxito.
Na primeira consulta que tive com ele não lhe pareceu que eu estivesse tão debilitado. Eu não estava tomando nenhuma medicação e não apresentei uma série de queixas que normalmente as pessoas trazem. Ele mesmo chegou a me questionar se eu achava que deveria me operar. Ontem ele relembrou essa dúvida com espanto.
Mas eu sinto que muitas coisas estão mudando no meu corpo, Lu. Mesmo um adormecimento que eu tinha no quadríceps da perna direita está desaparecendo. Outro sintoma favorável (e muito favorável por sinal!) é o alívio que sinto na região lombar da coluna. Nos últimos dias, minhas caminhadas eram sofridas. Sentia as pernas travadas.
Ontem fez apenas uma semana que voltei para casa. Já parece há tanto tempo...
Fui até Ein Karem para pegar minha correspondência. Desci até o jardim da antiga casa. Estava carregado de rosas. Ao jardim, à parte sua beleza irreproduzível, faltava a alegria que permeava nossa vida ali. Senti que para ele talvez nossa perda fosse mais irreparável que qualquer outra coisa. Os três anos que moramos nessa casa foram um ponto alto naquele espaço.
Mas para Mihal o choque de ver-se ali sozinha sem nossa companhia deve ter sido também algo doloroso. Ela decidiu tomar as rédeas da locação e não parece nem um pouco preocupada em acelerar esse processo. Isso sempre foi feito pelo filho dela. Sempre diz que será muito difícil encontrar inquilinos como nós. Por Mihal eu realmente sinto. É uma mulher muito interessante e sempre troquei muita coisa com ela. Falávamos de tudo! Arqueologia, música clássica, poesia, livros, gramática semítica... Um mundo inteiro!
Pra você ter ideia, alguns dias antes de nos mudarmos ela me deu esse bibelô do 'pequeno chinês leitor'. Um gesto simples. Mas quanto me tocou! Ela tinha uma caixa de pratos e outras coisas que gostaria de nos dar mas esse pequeno objeto ela deixou de fora. Já tenho tanta louça!
E foi a única coisa que eu realmente quis! Pela grandeza do gesto e por ter realmente gostado demais dele! E não é que Mihal seja uma pessoa afetuosamente calorosa. Nada disso! Ela é bem germânica! Mas há um lado dela que é amabilíssimo! E a forma que ela tem de contar uma história, o 'timing' de comédia nato que ela possui para tornar o simples algo extremamente engraçado sempre arrancou gargalhadas homéricas de mim!
Quis te contar tudo isso, relatar essa pequena cruz de momento para ter alguma páscoa de ressurreição que seja possível! Afinal, a gente tem que obrigatoriamente passar pela Sexta-feira da Paixão se quiser comer chocolates no domingo, não é mesmo? Que o Logos nos traga sempre a compreensão resignada desse jejum cristão que a prevenção do instinto inventou em dietas caras movidas a bacalhau da Noruega! A gente inventa luxos até mesmo na abstinência!
Fique com todo meu Amor, filha! Muitas saudades e pensamentos sempre repletos de Amor por você! No Darma. C.





terça-feira, 24 de maio de 2016

Purim

Ein Karem, 25 Março 2016

O Purim é uma comemoração que adquiriu ao longo do tempo um caráter tipicamente pueril. É uma festa de alegria e não um feriado religioso, embora celebre uma das muitas libertações do povo judeu de algum de seus muitos jugos, desta vez na Pérsia e tendo como figura principal a rainha Ester, a mesma que dá nome a um dos livros do Antigo Testamento. Soube há muito tempo que o Livro de Ester é o único na Bíblia em que a palavra Deus nunca é mencionada.
A Torá, quando lida nas sinagogas não permite que se pronuncie o nome de Deus (Iavé), e que surge, é óbvio, em muitas passagens de todos os seus livros. Nem mesmo é polido ou respeitável que se diga o nome em situações coloquiais. Pois então, nas leituras religiosas, quando se chega a esse nome impronunciável os rabinos dizem “O Nome”: Ashem. E todos sabem a quem estamos nos referindo. O segundo mandamento, não esqueçamos, pede que não se tome seu santo nome em vão. Ok!
Outras maneiras de se referir a ele é dizer Eloheinu (nosso deus) ou Elohim, ou ainda Adonai (O Senhor). Interessante observar que para os árabes, o nome de Deus (Alá) é o carro-chefe de praticamente tudo o que fazem, um portal por onde tudo começa: “Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso”. Todos os suras do Alcorão começam com essa epígrafe. Proferir o nome de Deus, ao contrário da proibição e reverência sombria dos seus irmãos semitas, para os árabes funciona como um abrir as portas do Paraíso na Terra.
'Fato é que esse ingrediente de alegria é algo bastante raro de se encontrar gratuitamente nessa etnia, estigmatizada no século passado pelas memórias do holocausto e todas aquelas feridas jamais cicatrizadas, o que tornou a cultura judaica algo mais calcado ainda num sentimento premente de injustiça pelo papel que lhes coube de vítimas do planeta, sem dúvida alguma uma das passagens mais sombrias que a história da nossa agonizante civilização pôde presenciar no Kali Yuga.
É costume que no Purim as crianças se vistam com fantasias e os adultos terminaram por adotar de tabela certos trajes ou indumentárias bizarros, o que, a meu ver, funciona também como um respiro de positividade dentro de todo o clima de tensão que tem um país em estado de dominação contínua, onde tudo pode acontecer e a suspeita sobre quem está a seu lado pode fazer com que seu sentido de alerta apite na hora mais errada.
Fui ao Hadassa fazer uma ultrassonografia em pleno Purim. Vi os balconistas dos Cafés que lá existem (é uma verdadeira cidade!) vestidos de uma forma diferente, fantasiados ou maquiados de maneira engraçada... Purim!
E na recepção da sessão de ultrassonografia não era muito diferente. Me chamou a atenção uma mulher loira com um batom carregado, muito maior que sua boca e que surgiu de uma das salas onde antes se ouvia um estalar quase estridente de várias gargalhadas. As pessoas na sala de espera se entreolhavam e conferiam as horas...
Ela parecia alguém muito leve, uma mecha azul num dos lados dos cabelos combinando com um belo par de olhos no mesmo tom. Mas os olhos eram capítulo à parte. Eu diria que só a Tia Anastácia na sua provável miopia poderia desenhar cílios daquele tamanho. E haja Emília que piscasse aquilo tudo!
Entreguei minhas guias de requisição e meu cartão da assistência médica. Trouxera um livro comigo para eventuais salas de espera mas decidi que o melhor mesmo era sonhar com o cinammon roll quentinho e meu capuccino que o 'Aroma' faz tão bem e que eu estava pronto para degustar em minha abstinência de leite das últimas semanas, só pra expurgar minhas saudades!
Opa! Chega minha vez! Claro que meu nome é pronunciado da forma mais mequetrefe e variável possível mas eu tenho tempo de me recuperar do susto e entender o número da sala. Caminho até lá.
Surpreeeesa! Adivinhe quem está me esperando? Ela mesma. Seu nome é Sílvia e ela é argentina. Em Israel desde 82. É então que olho para ela, já deitado e com a camisa levantada, e vejo o imenso chapéu de chef que ela ostenta sobre os cílios!
Simpática, a danada! Ela me aplica uma pomada tão gelada quanto o clima de hospital que me ojeriza. Mas com ela tudo é quase à milanesa! E trago o pouco espanhol que adquiri nas leituras ocasionais porque o inglês dela é de doer! Mas nos entendemos bem e tagarelamos à beça, bons oriundos do terceiro mundo que somos e parte feliz da seleta minoria que representamos nesse sagrado Estado de Israel! Deus me defenda, pronunciando ou não seu santo nome em vãos, pelas paredes que sempre têm ouvidos. Mas ainda assim ela me diz em carochinhas quando perguntol: 'Estoy mui mal?'
- 'Não, tudo está bem mas sua vesícula está engruvinhada de tantas pedras. Tem que fazer cirurgia!'
Ela ri muito da coincidência por eu ser chef e ela estar no “comando da cozinha” nesse dia. E ela maneja meu corpo sobre o divã como se eu fosse o mais suculento dos bifes! Carne brasileira!
Tudo termina e ela sai para imprimir meu exame enquanto enxugo o creme que ela me passara no abdômen.
Voltei para casa depois do 'Aroma'. Meu Purim dos textos do Navarro foi a arrematação final para as duas pinturas de Masaccio que terminei para o blog 'Arte: Significados e Símbolos'. Fiz um almoço interessante, couscous marroquino de legumes e uma sopa vegetariana que levava depois de batida: ervilhas frescas, missô, alho moído, cebola e salsa. Mais Victor Navarro durante a tarde.
Assisti uma das reuniões inspiradoras de Dan no web e fui tarde para a cama. Ajeitei minha almofada no chão e pus o xale grosso de yaqui nas pernas para a última sessão do dia. Ainda é frio à noite.
Um sentimento leve da mão divina sobre minha cabeça, sempre a contar piadas quando o destino é sísifo, percorre como um novo ingrediente todo o final da meditação. Eu termino a sessão: Corpo, fala e mente.
E no travesseiro, a imagem de Sílvia com seu chapéu de chef flutuando branco na serenidade azul de seus olhos, faz do meu momento um tempero em brisas mais que suficiente para uma boa noite de sono. Em borrados batons, Emília sorri seus armarinhos...
Todo Amor. No Dharma. C.




Pedras Rolantes



Akko, 3 Maio 2016

Queridas Filhas e Irmãs

O hospital foi uma experiência mística, um rito de passagem. Foi uma cirurgia difícil! Segundo Dr. Amog, o cirurgião mais linha dura que já vi, até a raiz da alma, foi muito difícil. Normalmente é um procedimento que toma uma hora e um quarto no máximo. Fiquei duas horas na mesa. Não precisei receber nenhuma incisão, ficou tudo mesmo na laparoscopia. Três furos do lado direito mais um dreno extra porque o fígado foi um pouco ferido no decorrer dos esforços e eu precisei andar dois dias com aquele apêndice estranho. Por isso não me liberaram ontem, como estava previsto. 
Minha vesícula estava congestionada de pedras. Rolaram todas morro abaixo!!! Estou com os beiços um pouco machucados por conta da entubação que eles fazem para estufar a vítima e poderem trabalhar com as câmeras e os aparelhos sem qualquer outro atropelo que não seja a própria!
Fiquei num quarto sozinho e tinha uma vista linda das colinas de Ein Karem para olhar da minha cama de convalescente feliz! Comprei um livro de contos de Anton Tchekov para me ajudar a passar o tempo. Depois me lembrei que Tchekov também fora médico, assim como meu amado Guimarães Rosa.
Hadassa é um hospital muito antigo, um conjunto enorme de edifícios que consegue ser ainda maior que o Hospital Sírio-Libanês em São Paulo. Parece uma cidade! Tem de tudo lá dentro. Hotel, shopping com várias lojas e praças de alimentação e padarias que fazem pães e croissants deliciosos cujo aroma inunda completamente os corredores da entrada principal. Há uma sinagoga também com vitrais lindos de Marc Chagall. Um dos pátios internos está sempre chapiscado de andorinhas em voos rasantes.
Quando estava indo para a sala do pré-operatório, já na cadeira de rodas e com aquelas saias ridículas que eles te colocam pra você não ter que fugir de bunda de fora o primeiro pensamento que me veio foi a Maga me dizendo: 'Meu bem, não tem medo não que daqui pra frente eu vou estar o tempo todo com você!'
Logo depois da operação me aplicaram uma injeção de morfina para aliviar a dor. Não sei se foi por causa disso mas a partir dali experimentei tanta coisa... Parecia uma gira! Sentia pessoas sentadas perto da minha cama o tempo todo, contando coisas engraçadas, histórias que na hora eu ouvi interessado mas das quais não me recordo de modo algum. Nesta última noite ouvi orações acima da minha cabeça mas eu não conseguia entender o idioma. Mas eram bem umas vinte pessoas rezando, uma reza demais de afiada. Quem estava no coro sabia muito bem o que estava fazendo! A princípio eu não entendi o que era aquilo. Acordei com aquele vozerio todo acima da minha cabeça... Mas perceber que eram apenas pessoas rezando me fez adormecer de novo. 
Quando acordei, estava apoiado no meu lado esquerdo, coisa que até então não fizera e não sentia nenhuma dor. O tempo todo foi assim! Impossível que aquela morfina de domingo tenha feito toda essa esbórnia e tido um efeito tão prolongado! Havia coisas que eu queria anotar para poder lembrar depois mas o momento era tão inédito que deixei passar a sede do registro para viver cada segundo como a peça sugeria e beber do próprio instante sem qualquer sofreguidão, só com a mais pura entrega!
Hospitais são lugares de sofrimento verdadeiro. Energias sutis se mesclam com percepções instintivas acuadas. Sou muito cético a respeito dessas coisas mas a verdade é que vejo vultos em todos os hospitais. Já no Sírio-Libanês acontecia isso. Mas essa falação toda... essas pessoas sentadas ao meu lado... não consigo explicar! Esta noite acordei querendo estar na minha cama, com o barulho do mar contando coisas... Estendi minha mão para fora do leito e um calor morno e conhecido pousou nela como um pássaro dançante que me fez dormir de novo...
Estou me sentindo bem! O dreno estava atrapalhando um pouco. Tiraram nesta manhã. Credo! Me senti uma ostra sendo debulhada nas entranhas! E sem direito a pérola alguma pra levar de vantagem! Tenho sensibilidade nas perfurações mas nenhuma dor acentuada demais. Desculpem por não ter dado notícias antes, cheguei em casa há poucas horas. 
Beijos Mil! Fiquem com todo meu Amor. Algumas fotos do apartamento e do mar inenarrável. No Darma. C.


Trens e trilhas



Akko, 27 Abril 2016

Chella Querida

Você saindo do seu confinamento e eu prestes a entrar no meu. Finalmente marcaram a cirurgia para o próximo domingo, dia primeiro de Maio. Conte como está indo sua recuperação. Já dá pra pegar um cinema? Maravilhoso que ainda na fase do confinamento você tenha se sentido bem, sem arritmia! Isso me deixa muito feliz, Chella!
Esqueço sempre de dizer duas coisas: um dos chaveiros que você me deu está desde o início da mudança nas chaves do novo apartamento. Nem sei se foi intencional de sua parte mas não poderia haver presente maior. O que tem aquele pequeno tamborzinho estava usando em Ein Karem mas ele quebrou. Mesmo assim guardei o tamborzinho e trago sempre comigo dentro da bolsa. Para dar sorte e me lembrar sempre de despertar!
Já há dias não ouço, mas a segunda surpresa é que posso escutar o trem que passa em Akko tarde da noite, quando há mais silêncio. A estação não fica muito longe daqui. Há um trem que vai até Tel-Aviv. Morro de vontade de viajar nele um dia! As ferrovias percorrem lugares ocultos, esquadrinham matas e outros segredos que apenas trilhos e céus conhecem. No Egito fiz uma viagem inesquecível de Aswan até Luxor. Três horas passando por plantações e lugares onde só se pode alcançar com o olhar num único relance. Vacas, camponeses solitários, casas com janelas minúsculas para aplacar o calor escaldante da África... Grudado na janela feito uma lagartixa! Era de primeira classe (de quinta categoria!) e camundongos minúsculos vez por outra cruzavam assustados o corredor do vagão! Pequenos vultos pretos que um inglês risonho  a certa hora decifrou por trás de seus óculos, sorrindo afirmativamente através das palavras: 'Mices!!!'
Assim como você, tenho uma ligação emocional com trens. Eles sempre estiveram presentes em momentos muito especiais. Eu fazia muitas viagens com meu pai para irmos a Santo André nos finais de semana, onde ele tinha um casal de amigos de quem gostava muito, José e Virgínia. Era o único lugar em que via meu pai sentar-se à mesa para comer como se estivesse em casa, tão acanhado que ele era! Eles possuíam uma vila de casas que alugavam e para minha felicidade eu tinha sete meninas com quem costumava brincar de tudo que mais gostava: cabana de ciganos durante o dia e show musical à noite, nas escadas largas da loja de geladeiras que eram então nosso teatro de arena. Era um lugar muito especial a casa deles. Uma horta imensa com um pé de limão-cravo que comíamos furtivamente com o sal roubado de uma das mães e um galinheiro imenso, cercado a sete chaves onde todas as galinhas botavam ovos de ouro! Estive em outubro passado na casa de duas irmãs que eram minhas princesas favoritas, Silvana e Sandra. Foi uma das poucas visitas que fiz. Sandra é minha amiga no facebook. Incrível como nossa infância dourada é uma referência forte para ambos.
Dona Virgínia era uma fada. Os almoços deliciosos eram feitos numa mesa imensa e os gatos sempre ficavam embaixo da minha cadeira para garantirem os melhores petiscos. Os olhos ferozes de meu pai contabilizavam o desperdício do frango que eu deixava de propósito nos ossos que distribuía para os bichanos com a destreza de um mágico. Mesmo assim, eu sempre merecia o pudim de leite condensado que ela cortava generosamente para mim no final das refeições. Quando nós voltávamos, e talvez para consolar a tristeza das minhas artes obrigatoriamente interrompidas, ela me estendia um saquinho de papel com alguns waffers dentro e me dizia entre um piscar de olhos e um sorriso: 'Toma, isso é pra você comer no trem.' Logo depois, já acomodado na janela e adivinhando a paisagem da noite escura ao longo dos trilhos rumo a Sampa, eu saboreava o amor em forma de biscoitos que a ternura dela tivera o cuidado de rechear.
Em 96 fui visitá-la pela última vez. Ela já estava bem doente por causa da leucemia que logo iria levá-la. Mas ela já não cozinhava a essa altura. Comprara uma feijoada numa rotisserie para nosso almoço. No entanto, em certo momento me disse que fosse à padaria comprar uma coca-cola para nós. Ao chegar, ela me pediu que colocasse o refrigerante na geladeira. Quando abri o refrigerador não pude acreditar: Chella, ela tinha feito o pudim! Boquiaberto e emocionado pelo gesto, olhei para ela e perguntei: 'A senhora fez...' Ela sorriu e franziu o nariz como era de seu costume quando queria nos agradar... Coisas que valem uma vida!!!
Para o seminário também íamos de trem. A estação ferroviária de Araraquara foi o primeiro lugar da Morada do Sol em que pisei. Da escola da Maga, tão próxima, era possível escutá-los. Tão poético tudo aquilo... Quando soube que seu pai trabalhou ali, alemguma coisa sorriu dentro de mim. O embalo dos trilhos conduzindo mil contas  nossos rosários...
É lindo quando as lembranças que trazemos nos dão coragem e inspiração para olhar adiante. E a companhia da poesia sublima tudo, torna tudo o que parece fugaz, eterno e significativo.
Caminhei agora há pouco pelo calçadão. O mar parecia bravo, com ondas altas e brancas quebrando contra os recifes. Penso sempre em você quando caminho por lá. Eu consigo imaginar você aqui conosco. E mesmo sendo um lugar muito simples, tenho certeza que você vai adorar Akko! Algumas coisas ficarão marcadas para você. A qualidade de certos alimentos aqui é muito melhor que em Jerusalém. Ainda não coloquei os tapetes no chão e faltam ainda algumas coisas nas paredes. Quando tudo ficar pronto tiro algumas fotos para mandar a você.
Fique com todos os Anjos. Todo meu Amor no seu Coração. No Darma. C.

O barquinho e os enigmas que a gente vive



Akko, entre 9 e 15 de Abril 2016

Chella Querida

Tantas coisas acontecendo nestes dias e sua cirurgia por acontecer tão em breve! É sem dúvida um momento de transição para nós todos! Tenho colhido as impressões emocionais dessa nossa trajetória e tudo me parece às vezes surgido de um sonho. Quanta bagagem, quantos atropelos e quantas esperanças fomos construindo ao longo de todos esses anos! E nesses últimos três, tantas outras provações e alegrias presenciamos! Nosso encontro telegráfico em 2015 selou uma nota alta em nossa tão rara e especial amizade. E finalmente vim para Akko!
Sinto tudo isso como o emergir de uma forma de limbo que o destino traçou e validou apenas por certo período de tempo, involuntário e necessário para novos passos que só seriam possíveis depois, em outras coreografias ainda por serem inventadas, sob novas luzes destiladas a sal, sol e à maresia do Mediterrâneo. Quando se atravessa assim o umbral de um mapa onde se viveu certa fase, mirar adiante é um modo de entender o percurso trilhado anteriormente, porém desta vez visto do alto, como num plano único de voo, onde rotas se desenham por meio de radares virtuais que de modo algum riscam o azul imaculado do céu onde se paira, muito além dos ruídos das turbinas dos aeroportos. Você sabe como ninguém do que falo...
Escrever daqui é uma experiência nova, da mesma forma que a comida que preparo e que não adquiriu ainda o ritmo da casa. Tudo sabe a novidade. As palavras também não reverberam pelas paredes que estão nuas, não ecoam verdades garantidas pelos cantos da casa; há um sabor legítimo demais que será degustado apenas com o passar ilusório dos dias, que por sua vez se transformarão em semanas, meses e anos.
Só então muito depois, a toalha xadrez posta sobre a mesa para o jantar me remeterá ao começo disso tudo, fará soar um sol sobre o pedaço de mar que vejo da sala e me trará de volta à ingenuidade deste próprio momento, quando a única realidade era essa brisa fria que me chega agora em sopranos, vinda da praia tão perto e que não sabe me contar ainda estória alguma sobre este lugar tão inédito.
O corpo está cansado, os músculos ressentem o exercício de dias e dias encaixotando os livros e a vida. Colocar tudo no lugar novamente e estabelecer um vínculo emocional com o novo espaço é enriquecido pelo fato de pensar que estou agora em minha própria casa, a cinco minutos da praia e muito perto da Cidade Velha de Akko, com suas velhas e carcomidas muralhas à beira mar e uma infinidade de ruas estreitas que apelam para um perder-se entre os diversos aromas dos narguilés, o cheiro acre dos peixes frescos no mercado árabe e as especiarias infinitas ardendo nos olhos da paisagem enquanto mordem pequenos segredos na garganta.
Aqui tudo é muito simples, com muitos pássaros ao redor sempre cantando e uma brisa muito fresca vinda da direção do mar e que entra pela casa aos redemoinhos trazendo um gosto de mergulho às narinas. À noite deixo uma fresta de janela por fechar para que o vento uive suas correntezas no escuro, narrando tudo aquilo que não pôde dizer às ondas antes que se quebrassem nos corais.
Hoje caminhei na orla da praia pela manhã. É tão agradável andar uma longa extensão sem ter que escalar ladeiras e morros e chegar nos lugares com o coração quase saindo pela boca e a sensação de que a aventura do passeio transformou-se numa mera frustração acusando a senilidade premente pela completa falta de ar resultante!
Moro num lugar onde há muitos árabes, isso também por conta da proximidade com a Cidade Velha, um território quase que exclusivamente deles. São muito diferentes aqui e não possuem o peso e gravidade que se vê neles em Jerusalém, onde são marginalizados e malvistos. Sinto que estão mais em essência, menos na defensiva e que se impõem mais livremente.
Ainda não coloquei as máscaras tibetanas, os garudas ou as pinturas nas paredes. Preciso de algumas coisas antes, como guarda roupas e estantes para os livros e dispor o espaço físico primeiro para ocupar as paredes com a certeza de que nada ficará estranho ou poluído visualmente. Entra muita luz no apartamento, essencial para pintar aquarelas. Também não coloquei os tapetes no chão. Mas o lugar já está incrivelmente aconchegante.
De uma certa forma é importante estar de volta à cidade. Sinto que a experiência de Ein Karem foi como um retiro prolongado, um lugar de introspecção e recolhimento importante para aquele momento. Ali eu pude iniciar uma série de atividades, pude estudar muito e para mim ficará sempre marcado o fato que foi de lá que estabelecemos nossa comunicação novamente. 
O mais notável é que de tantas coisas maravilhosas acontecidas naquele lugar, nada é sentido como nostalgia, tudo seguiu uma sequência harmônica e clara, sem cisões. O momento final foi obviamente uma transição difícil, a viagem ao Brasil mexeu muito comigo internamente e o arrastar-se dos últimos meses, com o imperativo do inverno a toda prova tornou tudo ainda mais dolorido. Mas a gente sobrevive bravamente!
Mas não esperava que Akko fosse ser uma experiência tão positiva, tão energética e revigorante. Não contava, marinheiro de primeira viagem que sou, que o mar pudesse abraçar tanto espaço que ficou por ser preenchido e que eu próprio não me dei conta. Para mim ficava sempre a interrogação do que eu faria sem ter um lugar como o antigo jardim. Mas a janela do quarto responde essa e todas as questões. E propõe ainda outras, completamente impensadas.
Virar essa página significou o encerrar-se de um certo momento que vivi quase que de tabela, livre de qualquer tática que pudesse objetivamente me direcionar para a trave de algum gol. Havia apenas um gosto desse jogo, uma tourada contra um destino totalmente emoldurado em neblinas que eu sabia serem inegavelmente minhas.
Não sei bem por que quis tanto escrever para você contando tudo isso. Escrevi aos poucos, contando algumas coisas que achei relevantes e que observei em silêncio. O fato é que tudo o que experimentei nessas últimas semanas, de uma maneira ou de outra trouxe invariavelmente a lembrança de sua alegre pessoa, sempre tão calorosa e feliz! Tive você nos pensamentos como uma companhia constante. Vi o e-mail que você mandou hoje apenas um minuto depois que você enviou. Incrível a sintonia de almas! 
É uma realidade incontestável que terminamos por ser forte referência um para o outro nesse momento de nossas vidas. Toda essa jornada tão difícil que você teve de trilhar nos últimos meses, de certa maneira foi minha também; a meu modo eu estive presente e fiz parte consistente dela, mesmo em silêncio. E tenho plena certeza de que essa fase teve suas sementes que um dia germinarão maravilhas. Nossa amizade, por exemplo, conquistou esse tempo e cresceu vertiginosamente sem que planejássemos nada. 
Talvez trouxemos tudo isso de outras vidas, algo que a gente nunca considera apropriadamente porque simplesmente não é prático. E depois, para quê o faríamos? Certos eventos não podem ser mesmo explicados ou racionalizados. Eles são a expressão do mais elevado e impronunciável enigma. E enigmas a gente vive.
Todo meu Amor. No Darma. C.