sábado, 27 de setembro de 2014

Rua dos Timoneiros




Sonhos de Criança...


Eu devia ter por volta de quatro anos. Lembro-me pela casa onde morava, na Rua dos Timoneiros e que deixei para outros oceanos antes dos cinco. 
Tive um sonho, um dos primeiros de que me lembro. Chegava a casa sozinho e o bicho-papão estava sentado na soleira da porta.

Como entrar?
Mas percebia, por venturas de Cinderela além-borralho, 
que aquele bicho-papão era feito de capa de chuva, aquelas marrons de antigamente, lembra? 
Mesmo sua cabeça era feita desse material, cônica e cortada na ponta. 

E o bicho-papão não tinha face. Era um cone liso e oco por dentro, sem consistência alguma, nem mesmo para se sustentar em tramas de medo e exercer sua mal fadada profissão de assalta-crianças! 

Dei o primeiro passo solerte em direção à porta. 
Ele derreteu e eu acordei assustado 
pelo amassar impermeável do susto em evasão.


Levei anos para entender a clareza desse enigma. Por muito tempo ele só ilustrou a imagem impressa que eu tinha daquilo que diziam ser o tal do bicho-papão, o qual, da minha verdade, nunca papou foi nada! Eu tive a sorte de ver que o sol brilhava atrás das nuvens e que aquilo era uma farsa.

Muito do que hoje para na soleira de minha porta, ainda que com o mais perfeito make-up, boca pintada do mais 'rouge' batom, 
não passa ton sur ton 
de oca fantasia construída 
para limitar a alegria da luz em seu estado branco, 
sem matizes.






sábado, 9 de agosto de 2014

Do Amor que move o Sol e outras Estrelas...


05.07.14

Querida J.

Reservei o sábado para colocar minha correspondência em dia e sua carta é minha prioridade. Quis muito ter enviado uma cópia da mensagem que redigi ao I.B. mas soaria muito impessoal e estamos tratando aqui de compartilhar individualmente nossas experiências.
Pensei estes dias em como abordar tudo quanto gostaria de dividir com você deste material que tenho trazido na alma tatuado a ferro e fogo.
Antes de mais nada quero protestar contra a profunda saudade de você. Não há como deixar à parte o grande detalhe. É notável como sem ruídos, séria e sutilmente, estabelecemos este vínculo de amizade que atravessou fronteiras de tempo e espaço. E como tratamos de ser intencionais em muitos momentos difíceis e aparentemente intransponíveis. Mas nós o fizemos, J.! Com nosso mais alto senso de amor e cultivo à nossa tão nova amizade e ao mesmo tempo tão remota. Enigmas que vivemos sem explicação. Tal é a febre de alma.
Mesmo a distância tem feito crescer em mim sentimentos que amadurecem silenciosos nesta árvore de vida que somos. Gostaria antes de mais nada, de agradecer toda a ternura e amor incondicionais que tem transmitido nestes poucos anos de convivência visível. Só o Logos sabe de onde trouxemos todo esse material!
Muitas vezes, ver a mãe que você é tem jogado focos de luz sobre minhas próprias experiências com a peça que me deram. Há amigos que para nós são eternos refletores neste palco de vida. A confiança emocional que deposito em você não tem precedentes. E emoldurando tudo isto, ainda há o fato sempre dourado de você ser a esposa de um grande amigo e mãe de duas crianças que esperei anos a fio para ver virem à luz. Mas de uma forma tão legítima que não passa exclusivamente por este filtro divino, abrange ainda outros maiores e ainda desconhecidos significados, o que torna nossa amizade ainda mais inédita e endeusada.
Por isto sempre compartilho a mágica presente ao meu redor. É lei para meus olhos. A luz não teria sentido se fosse vivida apenas pelo sol. E luz é o que todos somos! As nuvens que o dia a dia oferece obscurecem vez ou outra a afirmação mas a feliz companhia dos deuses termina por varrer de todo qualquer resquício de breu quando nosso coração cria condições propícias e abre campo para nosso propósito embaixo deste mesmo sol.
Desde que encontrei nossa escola, a existência passou a ter um significado maior e sublime. Todas as respostas cegas que encontrara anteriormente através da Arte, para mim sempre a maior referência e o que justificava minha vida, tomaram um vulto secundário perante a compreensão que o Trabalho trouxe. O próprio significado da Arte adquiriu um nível objetivo e superior. Passei a compreender coisas que para mim antes eram enigmas, como muitas passagens do Evangelho e mistérios que estancavam no patamar do dogma, como a relação entre pessoas, que sempre suspeitei seguirem uma regra nas entrelinhas e que a Teoria dos Tipos tão bem elucida, assim como outros conhecimentos paralelos como a Astrologia.
É a experiência pessoal que está sendo relatada aqui, já que meu centro magnético foi formado por Arte, Religião, Astrologia e drogas. Mas nunca tive claro que buscava algo, ainda que minhas poesias tivessem falado de busca o tempo todo. A alma lateja seus desejos íntimos sem que nos apercebamos de sua voz em muitas expressões de nossa vida...
O trabalho que o Quarto Caminho sinaliza é uma educação divina sobre as funções e que nossa escola catalisou de uma forma muito especial, como talvez nenhum outro grupo conectado a estas ideias tenha conseguido realizar. Mas aqui também há um limite para outros níveis elevados de consciência que a escola não tem definitivamente como fornecer as ferramentas ou mesmo as saídas. A forma como alguns estudantes cristalizam com a melhor das intenções mostra isto.
Quando encontrei esta Meditação reconheci na expressão dela neste momento da história da nossa civilização uma manifestação clara de Influência C. Uma nova roupagem, numa diferente tradição, mas num sentido de urgência como talvez aqueles que tiveram contato com Gurdjieff devem ter sentido naquele momento em que o Quarto Caminho veio à tona no ocidente mais uma vez.
Eu não costumo me fascinar com mestres ou gurus, J., você sabe bem disso! Estar numa máquina instintiva e lunar é carregar um ceticismo sempre de plantão.
Mas vejo em D. B. não um simples professor e sim, um Mestre. O que tenho vivido praticando esses ensinamentos ter permeado minha vida de um sentido que julgava não ressoar mais, desde o momento mágico em que encontrei a escola há vinte e seis anos.
algo aqui, J., é tudo que posso afirmar sem nuvem alguma de dúvida. E novamente, compartilhar esta luz encontrada com você é para mim algo precioso. A chance de poder checar meu 'tratar' com alguém que é um veículo deste ensinamento como D. B. é imperdível.
Devido ao seu trabalho de tradução de textos até agora desconhecidos no ocidente e mesmo dentro de algumas linhagens budistas, D. está pouco a pouco dando mais prioridade a este outro papel que lhe foi oferecido. É muito claro seu senso de prioridade, além de grande exemplo a ser seguido em qualquer nível de ação como seu estudante.
Eu gostaria muito que você pensasse na possibilidade de fazer este Retiro em algum país que não fosse o Brasil. E que você o fizesse com o próprio D.
Ele ainda ministra o Nível 1 em alguns lugares da sua agenda mas é algo que segundo ele não estará mais ao alcance num futuro muito próximo.
Vejo que este trem pras estrelas começa a acelerar seu ritmo e ficaria muito triste se você e I.B. perdessem a oportunidade que ainda está ao alcance.
Ligo para você nesta semana para conversarmos a respeito. A correspondência ainda é limitada para poder expressar o coração latejante.
Perdão se tenho sido insistente ao ponto da inconveniência, mas o que me move aqui é meu amor por você e por ele. E logicamente não posso ignorar seu livre arbítrio.
E eu sei da sua sede em tornar-se um ser humano melhor, J.! Este é o nosso ponto de encontro, estou certo, aquele que tem contado desde sempre, talvez na bagagem de outras tantas vidas que já compartilhamos como amigos. Por favor, considere com carinho tudo o que lhe digo, minha doce e querida amiga. Aqui está minha alma aberta oferecida a você neste ponto de nossa existência diante da eternidade. Não há silêncio, tudo vibra. Que dobrem os sinos do despertar! E que eles cantem a favor de nossas almas!
Todo meu Amor. Sempre. No Dharma. C.



sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Ladakh, Dharamsala & Puna...



Ein Karem, 08 Agosto 2014

Pensei muito em você quando estive na Índia. É lógico e mais que esperado que ainda esteja totalmente tomado pelas impressões dessa terra sagrada, a Índia que sempre amei mais que qualquer lugar neste mundo, desde a minha adolescência e que foi o único país que realmente quis conhecer nesta vida. Meher Baba reforçou toda minha paixão por ela e para mim era indissociável pensar que estava pisando em Sua terra natal. Índia cheia de deuses, pessoas, miséria e magia, tudo ao mesmo tempo! O caos de Deus!
Saímos de Israel em pleno estado de guerra, com mísseis sendo atacados pelos quipat barzel, inclusive sobre as imediações de Jerusalém, alarmes tocando terror e todo o clima de desespero, identificação e medo que toma as pessoas, como você mesmo já presenciou quando esteve aqui. Alguns voos começaram a ser cancelados naqueles dias e 'deixei' que as coisas tomassem o rumo que deveriam tomar. Só acreditei mesmo que tinha cumprido meu feito quando aterrizamos em Mumbai, Maharashtra.
Horas de espera até a conexão para Delhi e de lá mais um voo num aviãozinho pequeno e barulhento para Ladakh. Já estava tomando remédios por conta de me preparar para a altitude. É sugerido que se faça esse destino pouco a pouco, para dar tempo ao corpo acostumar-se com o ar rarefeito. Quase vinte e quatro horas na estrada e minha coluna arrebentada numa daquelas crises que surgem quando não faço as torções. Pegar as malas das esteiras nos aeroportos era um massacre. Mas eu encarei como um pagamento. Os deuses não me deixariam ir para o Oriente assim, de mãos abanando. Deus esteja!
Havia o final do Kalachakra em Ladakh com o Dalai Lama, logo no primeiro dia. Mas foi impossível. A sensação é muito estranha. Uma dor de cabeça parecida com enxaqueca, um mal estar inexplicável, cracas de sangue no nariz por causa do ar seco e da poeira e o nocaute final do cansaço de tantas horas entre aviões e aeroportos. Passei dois dias estatelado na cama. Vértebras que não estalavam de jeito algum e a obrigação de tomar água (quatro litros por dia, no mínimo!) para repor a falta de oxigênio no organismo. Logo eu que não tomo água de jeito algum.
Mas depois disso foi o Éden em forma de Paraíso. Vários inumeráveis mosteiros, uma paisagem diferente entre deserto e verde pelas estradas, uma amplitude de lugares abertos e um sol incandescente nos miolos. Os meninos que trabalhavam na pousada onde ficamos em Saboo Village, afastada de Leh, o centro comercial de Ladakh, eram um show de bondade e simpatia. Uma comida excelente, preparada por três cozinheiros nepalis que me levavam ao delírio.
É notável que Rodrigo tenha nascido quando eu estava em Ladakh. Sonhei duas vezes que você tinha ido até lá para me dar a notícia mas errei nas datas.
Em nosso roteiro, duas longas viagens de seis horas de ida de carro, por duas das estradas mais elevadas do planeta, a Khardungla Road, esta a mais alta, para ir até Nubra Valley e outra, a Changla Pass, para dormir num acampamento junto ao Pangong Lake, perto da fronteira da China e do Tibete. Na volta do Pangong Lake eu quis visitar um mosteiro conectado com Padmasambhava, o Takh-Takh. Construído sobre uma caverna onde ele passou três anos em meditação, foi o único lugar onde não havia um único turista. Deleite. A caverna, normalmente fechada ao público, foi aberta gentilmente por um monge carrancudo depois que apanhei suas sandálias do chão e coloquei perto de seus pés para que as calçasse.
Quando fomos ao Nubra Valley dormimos num camping e dali não gostei nem um pouco. Mas na volta passamos pelo Mosteiro Deskit, construído no século XIV. Uma grande stupa próxima com uma estátua do Buddha Maytreia maravilhosa olha toda a imensidão do vale. Paisagem de perder o fôlego. Na volta de Pangong uma marmota na estrada veio comer biscoito na minha mão. Era a contraparte da viagem a Nubra, onde tirei um desses animais da estrada que acabara de ser atropelado e morto por uma van desatenta! Eu não vi quando aconteceu. Mindjur, nosso companheiro de estrada e motorista foi quem me alertou. Chorei muito, tomando seu corpo gorducho ainda quente nas minhas mãos. Acariciei suas orelhinhas e as axilas gastas pelos anos de coça-coça. A Deus dada... Pedi tantas desculpas por aquela vida. Custei a me recuperar. Foi um baque.
Depois de dez dias em Kashmir fomos para Dharamsala. Com dor no coração por deixar Tikam, Dolma, Khapur, Piroo, Beemraj e Rigzim. Escrevi dois poemas na estrada. Estão no blog. Levitação total!
Dharamsala foi o oposto disto tudo. Neblina, chuva, ruas estreitas apinhadas de gente, buzinas o tempo todo do lado de fora e logo no primeiro dia um carro prensou meu calcanhar esquerdo enquanto eu fotografava um boi negro na rua e aquilo pareceu vindo de um sonho estranho. Minha reação foi zen, Ri! Olhei o motorista e dei dois toques no capô do automóvel com os punhos fechados, olhando para seus olhos. Puxei meu pé que milagrosamente saiu sem esforço do beliscão que havia tomado e, pasme, nenhuma marca ou dor resultantes. Eu estava de botas, talvez tenha ajudado e muito! O boi veio depois mugindo atrás de mim pela rua. Foi tão telegráfico que a Lily nem percebeu o que realmente tinha acontecido. Levei dois dias para poder contar a ela. Mas não tive dor sequer!
Entrei numa loja chiquérrima neste dia para ver umas estátuas douradas de Padmasambhava e quando fui pagar percebi que minha bolsa tinha merda de vaca nos bolsos. Não cheirava mal. Valia tudo! Não limpei até o dia seguinte. Dizem que dá sorte! A minha estava dada.
Li muito em Dharamsala. Uma biografia toda de Gampopa na varanda do meu quarto na Guest House. Uma família tibetana. Duas deusas chefiavam o negócio como quatro homens fortes, Passam e Sonam. E um cãozinho branco lindo que fez amizade logo de cara, Simtrul! Ele tinha o mesmo caráter do Yuki. Ficava embaixo de nossa mesa em todos os cafés da manhã.
Comprei livros essenciais sobre Mahamudra em algumas livrarias. Estou bebendo de todos! Um por um, parcimoniosamente. No momento uma joia preciosa escrita por Gampopa: “The Jewel Ornament of Liberation”. Imprescindível!
Os voos para Delhi estavam atrasando todos os dias e decidimos não correr o risco de perder nossa conexão para Puna e encontrar nosso guia Baba Lover, Prakash, para nos levar a Meherazad dia 03.
Para isso alugamos um carro. Um motorista atento como um tigre e levíssimo, Subbás. Dez horas na estrada. Cruzamos três estados em plena madrugada: Himachal Pradesh, Punjab e Haryana.
Às duas da manhã Subbás parou num 'restaurante' de estrada para mijar. Que lugar, Ri! Punjab. Um galpão imenso de teto alto e coberto por telhas de amianto num chão de terra batida que um velho de turbante encardido varria imaculadamente o tempo todo. Várias panelas negras de barro alinhadas sobre um fogão na beirada do barracão. Na parte de fora, num enorme quintal aberto, o proprietário e um menino, seu ajudante, faziam uma refeição numa mesa quadrada e baixa. Ele sentado numa cadeira e o menino, sobre a mesa. Esse moleque era um neguinho cozido, Ri, com os cabelos arrepiados e secos de poeira, um bicho do mato que mal me olhou quando me sentei perto de Subbás para tomar um chá. Ele ficou lá, de costas para nós beliscando dos pratos como um paxá.
Um estilo selvagem. O som alto que vinha das caixas reforçava sua performance no meio da noite! Figura! Uma música louca, como todo o som do Punjab, que é adorado na Índia toda. Uma música eletrizante, cheia de percussão e êxtase que te conduz por caminhos que você jamais ousou pensar poderiam existir... Delírio a ser trilhado! Olhei Subbás e o proprietário, depois de mirar o velho de turbante em sua sina no terreiro batido... Eles também olharam para ele e balançaram a cabeça para mim naquele gesto tão típico dos indianos. Olhos nos olhos. Indescritível. Foi um dos momentos em que mais pensei em você. Só você pra ser meu cúmplice e sentir tudo o que eu sentia! Parecia que eu estava numa viagem de LSD, tamanha era a doideira e o clima naquele lugar. Uma náusea a espreita nas vísceras como se movida por mãos de anfetamina! Uma chama acesa no pé de uma grande árvore... Shiva... Comentei com Subbás sobre a música. Novo chacoalhar de cabeça e um sorriso de aprovação com o brilho radiante de seus olhos negros: “Punjabi music!”

Assim chegamos a Delhi as 8:00 horas da manhã do último sábado. Tomamos o voo para Puna às 15:00 hs. Estendi minhas blusas e meu xale de yaki nas cadeiras e dormi profunda e desavergonhadamente no saguão do aeroporto. Sonhos coloridos o tempo todo. Garudas, incensos inebriantes, nuvens e thangkas fantásticos povoavam meus sentidos... Acordei de pau duro e feliz da vida, como se tivesse feito amor a manhã toda!
Chovia em Puna quando chegamos no começo da noite. Uma imagem de Sai Baba fumava tranquilamente na recepção do hotel. Ligamos para Prakash para confirmar nossa ida a Meherazad. Nada. Minutos depois ele retorna a ligação. Nos encontraremos domingo às 8:00 da manhã.

Quando acordo, olho o céu cor de chumbo com nuvens pesadas sob Puna que também despertava sonolenta e úmida. A partir daí e até tomar o voo para Israel, Prakash estará conosco. É um Baba Lover que me trará de volta ao aeroporto de Delhi na segunda-feira, sob uma chuva torrencial de bênçãos.  




quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Prakash Ghorpade




Prakash Ghorpade

Prakash Ghorpade nasceu em Satara em 1956, mesmo ano em que Meher Baba sofreu um grave acidente automobilístico na estrada em direção a essa cidade.
Filho de camponeses, vindo de uma família de sete irmãos, caminhava seis quilômetros todos os dias para ir à escola. Ganhou sua vida como entregador de leite em Puna pela manhã e dirigindo depois um riquixá pelas ruas tortuosas e tumultuadas da cidade até tarde da noite.
Casou-se aos trinta anos com uma jovem e linda mulher de Ahmednagar e foi morar neste vilarejo porque a vida nesta região era mais confortável e próxima à sua essência de homem do campo.
Por conhecer bem Puna e Mumbai, Prakash logo começou a trabalhar como motorista para o Pilgrim Retreat buscando Baba Lovers no aeroporto e conduzindo-os aos lugares conectados com o advento de Meher Baba. Foi assim que Prakash aprimorou seu inglês e começou a se interessar pelo motivo que trazia pessoas de lugares tão distantes àquele lugar pouco comum para turismo.
Certa vez Prakash resolveu seguir as pessoas que trouxera ao Samadhi de Meher Baba. Por que não? Entrou respeitosamente na cripta coberta de lindos afrescos e circundada de um silêncio comovente por aqueles que a visitavam. Curvou-se perante o túmulo do Avatar, como todos faziam... Recebeu seu darshan.
Dias depois ele sonhou com Meher Baba. E foi então tomado de amor pelo Deus-Homem. A partir daí, segundo ele mesmo disse, sua existência mudou completamente.
Ele passou a ver toda sua vida conectada de alguma forma com as pistas e encruzilhadas que traçaram sua vida até Ahmednagar para o oceano do abraço de Baba.
Numa das muitas viagens a trabalho até Meherazad ele teve a chance de ser o motorista de Bal Natu. Elogiado pela forma atenta e zelosa como dirigia, Bal disse-lhe que seu ofício era uma forma de trabalho para Meher Baba e que assim ele deveria exercer sua atividade profissional. Sua esposa tornou-se uma devota, assim como seu filho de 22 anos.

Foi este homem delicado e bondoso que foi me buscar numa manhã cinzenta e chuvosa num hotel em Puna, em Bund Garden Road, a duas quadras de Guruprasad, local do último Darshan Público do Avatar Meher Baba. Este foi o primeiro choque para aquele domingo que abriria um sol de sorrisos em minha vida, deixando cair levemente apenas uma fina garoa a cada novo lugar que acabasse de visitar, como se fosse um afago num bicho de estimação, uma lembrança viva vinda diretamente do céu, tão azul agora como o deus Krishna.

Assim, senti-me na companhia de um mandali e procurava ver nos seus traços morenos de caboclo alguma semelhança entre as várias fotos dos discípulos que conhecia tão bem no meu coração ao longo de todos estes anos de espera...
Uma noite, ainda em Dharamsala, fomos, eu e Lily a um restaurante tibetano muito bom, dirigido a mãos de ferro por uma mulher que mais lembrava um ícone: Diki. Um lugar pequeno, com apenas seis mesas e uma comida excelente. Uma família de cinco pessoas sentara-se numa mesa diagonalmente oposta à nossa.
Para minha surpresa, a jovem senhora mãe dos três filhos educados e belos tinha o mesmo rosto de Mehera, excluindo-se o fato de seu estrabismo evidente mas que ricamente lhe proporcionava ao semblante uma expressão de humildade que me comovia de uma forma inexplicável e quieta. Olhar para ela era como ter Mehera diante de mim. O mesmo corte de cabelo, a mesma forma de rosto e a suavidade comovente das mulheres indianas...

Nosso primeiro destino foi Meherazad. Última residência física de Baba, a propriedade mantém a aura de sua presença vibrando pela casa em cada canto. Junto conosco, poucos visitantes estavam ali. Tinha minha câmera no bolso das calças mas proferir um flash dentro daquela casa seria um ultraje para meus próprios e íntimos sentimentos.
O quarto espartano de Baba, pintado de rosa e exalando uma atmosfera de amor como nunca antes vira diante de mim... A cozinha onde Baba fazia suas refeições, com Mehera à sua direita e Mani à esquerda, numa disposição semelhante aos túmulos que lhes reservou a vontade do Avatar junto ao seu Samadhi. O quarto que foi de Mani e Mehera, sua cama que me pediram não tocasse para manter a tradição de mantê-la imaculada de mãos masculinas e de cuja janela se via a árvore de Umar, onde milagrosamente o rosto de Baba surgiu meses depois de ele ter abandonado o corpo. O piso tem uma das lajotas próxima da janela gasta pelo tempo que Mehera permaneceu ali olhando seu Amado. O poder do Amor...
Muito tempo antes de partir, Baba, conversando com alguém junto a esta árvore, comentou que gostava muito dela. Mehera surpreendeu-se e perguntou-lhe o por quê. Para ela aquela árvore não era especialmente bonita, pelo contrário, até meio rudimentar e cheia de calosidades que lhe davam uma estranha forma encarquilhada. Baba respondeu apenas que um dia ela iria saber...
Depois de tanto tempo a forma de seu rosto desapareceu. Mas olhar esta velha árvore de Umar da janela do quarto que foi de Mehera era como estar em casa, a verdadeira casa para a qual sempre queremos voltar um dia.
Haveria a projeção de um filme no Mandali Hall, “You Alone Exist”. O irmão de Eruch estava presente. Uma delícia. Ver as imagens de Meher Baba em plena Meherazad! Só Deus mesmo pra ter tanta misericórdia...
Dia 3 de Agosto era aniversário de Dr. Goher, uma das quatro mulheres mandalis que seguiram Baba na New Life. E ela foi sua médica particular até o final, mesmo não querendo, tentando convencer Baba o tempo todo de que ele deveria procurar um especialista mais experiente. Ele não moveu uma palha a respeito.
Quando já estávamos partindo, uma surpresa digna de um banquete. Uma das adoráveis mulheres responsáveis por manter Meherazad veio em nossa direção com uma bacia cheia de mangas maduras. Ofereceu uma manga para cada um. Adivinhei antes que ela me contasse a história que já sabia em meu coração de Baba Lover:
Baba sempre foi muito atencioso e rigoroso com qualquer presente que um mast lhe oferecesse. Poderia ser uma pedra, um papel, o que fosse. Baba trataria do presente como de um tesouro. Um mast deu-lhe uma manga certa vez. Baba comeu, como sempre o fazia. O caroço foi plantado por uma das mandalis e transformou-se numa linda árvore! Que darshan! Comi minha manga com casca e tudo quando cheguei ao hotel. Doce, macia, carnuda... Guardei o caroço dela que hoje está no pequeno altar que tenho em casa com uma estátua linda de Padmasambhava que trouxe de Dharamsala.
Em nenhum momento é pedido que se pague por nada. Se alguém quiser oferecer alguma contribuição deve fazê-lo diretamente à Avatar Meher Baba Perpetual Public Charitable Trust, uma fundação criada pelo próprio Baba em 1959 para atender as várias necessidades dos peregrinos que viessem no futuro e criar meios de oferecer serviço em diferentes maneiras para a população, seja por hospitais, escolas, clínicas veterinárias etc. Mani Irani administrou esta organização por vinte anos, sendo substituída depois por Bhau Khalchuri.
Baba não quer de forma alguma que dinheiro seja feito em seu nome. É o Trust Office que mantém Meherazad, Meherabad e o Samadhi, assim como todos os outros lugares que estão relacionados à passagem do Avatar pela Terra.

Meherabad mantém-se impecável. No topo de sua colina foi construído o Meher Pilgrim Retreat, um lugar agradável e aconchegante que abriga os peregrinos que querem estar mais perto destes lugares sagrados. Tudo organizado. Um sistema de ônibus pertencentes à Trust faz visitas frequentes aos outros locais para quem estiver hospedado ali. Em tudo há ordem. Como sempre, homens de um lado e mulheres do outro. Os mandalis estão enterrados no cemitério em Meherabad. As mulheres, junto ao Samadhi. É possível ir na caminhada do Pilgrim Retreat até lá. Um simpático caminho foi construído. Ele não deixou nada por ser feito. Só cabe a nós continuar a amá-Lo.
Todo Amor. No Dharma. C.





segunda-feira, 16 de junho de 2014

O Quintal


O Quintal

a Luiza Lopes

Era um grande quintal onde sonhei alguns anos na companhia de um limoeiro no qual fiz um balanço com uma corrente velha que encontrei no fundo de um baú no barracão de minha avó. Era na verdade uma avó emprestada, casada aos quatorze anos com um primo de minha mãe.
Quando meus pais vieram da Ilha da Madeira, fugindo de seu amor proibido após casarem-se escondido, encontraram abrigo de luas-de-mel junto a esse casal, Maria e António. Nessa época, final dos anos 30, eles tinham uma pequena fazenda e criavam vacas cujos nomes lindos me esqueci completamente. Meu pai trabalhou com eles nesse período. Era ele quem ordenhava os animais para que meu avô António saísse bem cedo, na São Paulo fria daquele tempo, para entregar o leite fresco.
Minha avó tricotara um cachecol grande que ele enrolava no pescoço para se aquecer quando saía em sua carroça, puxada por uma junta de burros teimosos. Anos depois, ganhei dela essa peça de vestuário. Precisou diminuir o tamanho e como não entendia muito de costura, acochambrou à sua maneira o comprimento, improvisando algumas dobras que formaram quelóides intransponíveis e que tornaram o cachecol uma imensa jiboia enrolada em meu pescoço de criança.
Eles se mudaram para aquela casa quando já não havia mais vacas. Tinham agora um pequeno armazém mas o hábito de criarem animais fez com que mantivessem sempre alguns porcos e muitas galinhas. Plantavam verduras e vegetais no quintal. Ele tinha uma utilidade bem prática, algumas dessas verduras eram vendidas no armazém.
Aposentaram-se por conta própria, depois de muitos anos de lida. Foram viver num bairro próximo, numa vila de casas que possuíam. Foi quando comecei a viver com eles.
Mas conheci meu quintal apenas quando Vó Maria tornou-se viúva e voltou a viver na velha casa. Lá ela começou uma nova etapa de sua vida portuguesa.
Outras crianças costumavam brincar no quintal antes de mim. Elas deixaram nos baús do velho barracão, junto ao grande bosque do quintal, brinquedos de uma preciosidade sem fim. Curioso, admirava-os escondido de todos, tentando adivinhar seus segredos que o tempo mofara num passado não muito remoto. Velhos brinquedos abandonados com tantas histórias por contar enferrujando destino afora. Cordas que faltavam em tantos violõezinhos, carrinhos completamente sem rodas, botões que não funcionavam mais em tanta vida de clausura e ainda assim, quebrados, desbotados e completamente destruídos, a impiedade do tempo só os tornava mais dignos. Eles mantinham a ternura de uma época que não conheci. Mesmo arruinados em suas funções, ainda eram puros brinquedos, única coisa que tão nobremente sabiam ser...
O quintal em si era muito grande, com árvores de tangerina, uma pequena amoreira, abacateiros, parreiras de uvas, um limoeiro e um jardim de onde minha avó costumava colher flores para levar ao túmulo de seu amado António. Nos primeiros anos de sua viuvez, tingiu todas as suas roupas de preto. Eu adivinhava as estampas que conhecera antes e que agora começavam a surgir em seus vestidos e aventais já desbotados, revelando então uma alegria feminina e jovial que ela velara em brumas negras...
Meu balanço no velho limoeiro era uma desculpa para ter o que fazer lá. Os espinhos do tronco muitas vezes arranhavam minhas pernas amargamente. Ofendido pela falta de gentileza eu o abandonava ferido e numa espécie de vingança cítrica, talvez envenenado pela perseverança feroz dos limões, ficava imaginando quem plantara todas as outras árvores, dando-lhes novos nomes carinhosos para os quais elas não prestavam a mínima atenção. Árvores não gostam de elogios azedos...
Depois disso, só como uma montanha de florestas, brincava de índio sem tribo, nome ou fantasia. Que mais faria numa selva daquelas?
Quando o tempo passava, arrastado pelas horas que ignorava, poucas coisas restavam para fazer ali. Então, súbito, olhava para o fundo do quintal e era movido por um medo infundado. Corria então como um louco para a sensatez da velha casa sem mesmo olhar para trás. Nesse dia não voltava mais lá.
Anos depois, o destino quis que fosse viver numa rua paralela. Um diferente enredo para uma mesma arena. Tempos difíceis. Talvez, sem a certeza que me davam minhas poesias e pinturas, tudo seria escuro como as roupas tingidas de minha avó. Ela partira há muitos anos, levando consigo as cores que restaram de seu luto desbotado e que a nostalgia de brinquedos me fazia voltar para ver em tardes sombrias.
Sentado sob o abacateiro, via-me face a face com um passado que terminara. O limoeiro morrera. Jazia quebrado no lugar que sempre fora seu. Num de seus galhos percebi com um misto de sorriso e pena as marcas da corrente cravada em seu tronco que tantas vezes carregara o meu corpo alegre...
O limoeiro não era mais o rei do meu quintal... Chorei meu passado de limão-bravo amargamente... Depois, fui calando aos poucos minhas perdas... Levantei a cabeça pouco a pouco e comecei a vislumbrar uma revelação.
Junto ao muro, bela e carregada de frutos, percebi que a amoreira brilhava fundos de um palco, abandonando coxias paralelas. Nobre, inspiradora, rainha desde sempre de um mundo que ainda poderia ser meu a partir daquele momento.
Assim, nem tudo estava perdido! A vida suplantara em visões mágicas a acidez do limoeiro, dando agora sua coroa de louros à doçura e maternidade da amoreira que me apontava outra vez o sorriso feminino das árvores como um princípio.
Sim, eu seria feliz outra vez e não precisaria mais ruminar o passado para estabelecer minha nova gênese.
Decidi que plantaria novas árvores dentro de mim. E faria a colheita dos meus próprios frutos, sem me importar com sua doçura ou acidez. Seria responsável por minha colheita e meu vinho, meu fado & meu fruto.
Aprenderia silenciosamente a partir dali, a lição dos grandes poetas: transformar-se a cada dia numa árvore maior e mais bela. Todos os poetas, no fundo, parecem árvores que perseveram tempo em forma de sabedoria.




sexta-feira, 14 de março de 2014

Guimarães Rosa



Miguilim

Por conta de tudo isto e por invocação de Rosa na minha gira, me avistei de novo com o eterno Miguilim. Tanto insisti com a Merav para que publicasse essa estória por sua editora, a Asia...
Vim em 2010 a Israel para extirpar duas hérnias por laparoscopia no Hospital Hambam de Haifa, com um cirurgião árabe, Dr. Bechara: laser perfeito.
Trouxe meu Grande Sertão comigo. A esmo. Acabei lendo um livro super light na minha recuperação: The Mystics of Islam, de Reynold A. Nicholson. Ele foi o primeiro tradutor de Rumi em língua inglesa. Sua obra máxima, talvez, o 'Masnavi' de Rumi em oito volumes, foi traduzido de 1925 a 1940. Uma fábula! Mas ele tem outros dois grandes livros influentes: The Literary History of the Arabs e este que li, The Mystics...
Livro levíssimo, com 160 pgs e capítulos estrondosos assim: “O Caminho, Iluminação e Êxtase, Gnosis, Amor Divino, Santos e Milagres, O Estado de Unidade”. Tudo sutil. E citando o tempo todo místicos como Dhu 'l-Nun, Bayazid, Rabia e acima de tudo, Jalaluddin Rumi, o Maulana.
Cura total.

Ao final de tudo, num jantar de despedida, fiz Moussaka com pudim de leite condensado de sobremesa. E conversando com Merav depois, ela me toca no nome de Guimarães Rosa. Tentara negociar os direitos de Grande Sertão com o advogado dos herdeiros, um libanês, segundo ela. Quiseram uma fortuna. Sem condições. E tradutor? Quem pode com aquilo?
Ainda assim, dei-lhe meu exemplar de GS: e falei longamente de Campo Geral, onde Miguilim surge. E da importância que esse conto tem na literatura de Rosa; ele próprio tendo um grande apreço por esse personagem. Seria um pioneirismo fenomenal publicar Rosa em hebraico em primeira mão, fato de que, estou seguro, ela realmente não se deu conta da grandeza.

Miguilim é a alma de todos nós. Por isso a história tem esse apelo. E a forma como GR alinhava a narrativa, colorindo com o maravilhoso mundo das crianças o antagonismo patológico da tentativa de interação que acontece paralela no mundo dos adultos! A condução do texto tem essa característica míope, de focar a prioridade desfocando o secundário, assim como o contrário disso também. Há uma agonia presente, entre as paixões, os papéis e a moral. Tudo parece desfocado.
Um pai que é uma trava, filtro de véus para a relação aberta de amor entre Miguilim e a mãe, surgindo mais como uma imagem de poder castrativa. Miguilim é inclusive karamazov total em sua raiva do pai, demo que dentre outras, deu a cachorra Pingo de Ouro, para sempre a Cuca das esperanças de Miguilim em ter de volta seu bichinho de estimação.
O deleite de Campo Geral continua com a descrição dos animais, os nomes dos cachorros, as brincadeiras e... a morte do Dito, sofrimento real para Miguilim e todos nós!
E mais ainda Tio Terêz, Vó Izidra e o vodu de tirna de Mãitina, único adulto imaculado se acabando em cachaça nas cinzas de uma cafua.
Depois, tudo chega a um final que seria o mais aguardado de todos, às almas de todos nós. E junto temos o diagnóstico da miopia de Miguilim, que pode ver então um mundo microscópico antes de montar definitivamente seu cavalo e ir-se embora de vez, sem saber 'o que era alegria e tristeza'.
Acho que a força da obra de Guimarães Rosa abriu-se para mim sem precedentes depois que li Campo Geral. Miguilim é uma história que trata de iluminação, como tudo em Guimarães Rosa.

Rosa disse a Benedito Nunes (A Rosa o que é de Rosa) quando encontraram-se no Rio, que o Burrinho Pedrês era ninguém menos que Krishna. O próprio, aquele cowboy azulado. 


terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Robson Rosa - A Tarde de um Fauno


22.01.14
Olhei aquarelas não terminadas... Pássaros esperando cores, flores esperando a textura de madeira e o azul do vaso, romãs aguardando um prato... estudos de bouganvilles esperando um parto, redemoinho de água e folhas esperando retoques finais a pincel molhado, desertos vermelhos aguardando areias... pimentas esboçadas ainda no Brasil que ardem geografias em minhas saudades... 
Li o texto de R. Musil na Ilustríssima de 12 de Janeiro. Obrigado pela indicação. Guimarães Rosa sempre uma antena além do tempo! Nunca li qualquer menção de Rosa a respeito desse autor. Mas Rosa sabia tudo. Um baque. Quando salvei o texto deletei a figura da mosca. São clientes indesejáveis quando cozinho. Tenho contas abertas com elas. Quando vim a ter ao final do texto, arrependi-me de ter banido o pobre inseto. Uma agonia de Treblinka no mata-borrão. Vida escoando feito areia sem previsão de pérola alguma. A miséria da humanidade ou sua luxúria compartilham a mesma fome vazia e insustentável. Faces do mundo indigestas feito cicuta que tomamos sem mastigar...

23.01.14
Meu gato Ipê Amarelo andou doente também. Sem comer por cinco dias. Apático, encorujado em sua caixa como um bicho-preguiça, tão diferente do gato enérgico e cheio de vida que normalmente é. Mas recuperou-se ontem, como parte de um pacote que incluía férias no Paraíso das Delícias e que uma gripe financiou como ticket.
Tudo em paralelo prosseguiu. Os Fados que vieram à baila dançar mais uma canção comigo, eu já partner quase desacreditado esperando a última valsa... sentado numa cadeira sem fim, disposto a adentrar o salão vazio com sua orquestra à míngua.
Sim, deu-me o gosto. E parti finalmente para sua redenção. Talvez algum intervalo que ultrapassei sem me dar conta. Tsunami que de tabela levou-me além dum Bojador que não sentira em ondas.
A alegria grata dos seus versos de menina ecoando sede verde em meus ouvidos de piscina. Em quatro anos de Seminário não perdi um dia sequer de piscina. Contra o sol, meus cabelos tinham em suas partes mais claras, tons esverdeados do cloro a todo custo. Nadei depois à procura de outros mares.

24.01.14
Estou escrevendo aos soluços. Um tanto a cada dia. Filho que se cria aos poucos. Nos vales de Ein Karem as amendoeiras começam a florescer. Em uma semana estarão completamente brancas. Olhei a amplitude do Vale Iemenita hoje e adivinhei as cores que virão em neve pelas encostas. Lembrei de Van Gogh e seus campos iluminados. E de Carlos Drummond de Andrade e seu inesquecível 'Fala, Amendoeira'.
Um pequeno recanto chamou minha atenção. Uma construção árabe circundada por tamareiras centenárias. Ando encantado com os olhos clínicos que veem em termos de proporções, linhas e cores. Desta feita meu olhar anda perdido entre árvores e colinas, rebanhos de cabras perto e ao longe. Berregos e balidos. Em contrapartida, os "Rückert-Lieders" de Mahler parafraseando a cabralhada aos sopranos. Amo os Lieders de Mahler. E seus Adágios são desde sempre o infinito traduzido numa única pétala. A calhar, coloquei agora o Terceiro e Quarto Movimentos de sua Segunda Sinfonia, Ressurreição. Mahler que transporta. Portas abertas, ainda que para um amanhecer cinzento. Mesmo o haver noite justifica a realidade crua e suave do que é ser dia.
25.01.14
Comentei com você sobre um livro que estou lendo: The Six Perfections. Uma leitura atenta, calma, como o degustar lento de um vinho que não embriaga, antes, elucida. 
Uma grata surpresa foi receber por estes dias o convite de Victor Navarro para ser seu amigo no Facebook. Esse foi um presente de Olimpos. Ainda que tivesse visitado sua página várias vezes, jamais me atreveria a ousar fazer parte de seu círculo de amigos virtuais.
O fato é que se retroceder no tempo, vejo naturalmente que Victor Navarro sedimentou em mim tudo o que vim a fazer e como construí minha vida e meu compromisso e envolvimento com a arte. Ele é um fator decisivo para minha luta de homem e anjo.


Vi pela primeira vez um de seus ballets em 1976, quando uma amiga de um Curso Pré-Vestibular me convidou para ir ao Teatro Municipal de São Paulo, que eu ainda não conhecia. Um programa eclético, que estudantes recém-saídos do Colégio Equipe adoravam experimentar. Dentre as peças apresentadas, havia 'Lieders' de Mahler, 'Cenas de Família', de Oscar Araiz e que Victor dançava no papel de pai e finalmente, a grande estrela da temporada, 'Apocalipse', com música de John McLaughin e sua Mahavishnu Orchestra.
Esse ballet atraía um público jovem inédito nem sempre acostumado a espetáculos de Dança. O apelo da música e o choque de ver uma companhia de bailarinos maravilhosos dançando ao som de guitarras elétricas com uma forte levada de jazz-rock - MacLaughin tocara com Miles Davis em memoráveis trabalhos do início dos anos 70 - fazia daquela obra uma visão comunitária de encorajamento e esperança para aquele momento.
Era o período da ditadura militar e a arte brasileira funcionava como grande válvula de escape e formadora de opinião pública, algo que os militares nunca souberam como manipular, levando sim, estes, vários dribles de estrelas como Chico Buarque, Milton Nascimento e Elis Regina, que continuaram colocando a boca no trombone, para agonia e surdez dos mais desavisados: quem tivesse ouvidos para ouvir, que ouvisse!
A impressão que se tinha ao deixar o teatro é de que algo precioso acabara de acontecer e por alguma dádiva divina aliada à sorte você tivera a honra de presenciá-lo. A coreografia tratava de um tema universal onde se podia ler nela tanto a Torá quanto a Teoria da Caverna de Platão. Apocalipse fazia sentido em qualquer lugar do planeta, poderia ser apresentado tanto num grande teatro da Europa quanto numa esquina obscura de Calcutá: sua mensagem era um código cifrado numa comunhão eucarística de seres humanos em busca de luz!
Voltei sozinho ao teatro mais duas vezes para ver de novo aquele ballet que decididamente movimentara algo dentro de mim. Jovem de 18 anos, metido num blue jeans e movido a rock'n'roll, Apocalipse soara para mim como uma trombeta sinalizando a futura queda do Muro de Berlim, pelo menos de alguns tijolos do meu próprio muro. E desde então o nome Victor Navarro ficou marcado em meu coração como uma tatuagem impressa a ferro e fogo.

Fui para Petrópolis em 1986 estudar com Victor, movido por minha paixão pelos seus ballets. Estabelecido naquela cidade e financiado pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro com uma troupe de dezenove bailarinos, Victor era um anjo de luz entre demônios dançantes. Dentre eles, alguns grandes e queridos amigos: Robson Rosa, Claudio Bernardo e Chica Timbó. Uma alcateia dionisíaca de feras. Claudio Bernardo e Robson Rosa foram os bailarinos brasileiros que mais me impressionaram em cena. Dois deuses. Faces antagônicas de uma mesma moeda cearense. Robson era filho de pais muito pobres. Sua mãe era faxineira. Quase sem formação escolar nenhuma, Robson viu a chance de fazer algo de sua vida ainda adolescente, quando a Prefeitura de Fortaleza inaugurou na cidade nos anos 70 uma unidade do SESI e contratou professores do sul do país para lecionarem por lá. Jane Bauth e Dennis Gray estavam entre os docentes. Ele começou praticando saltos ornamentais, tornando-se destacado na modalidade e ganhando várias competições desde o início. Mas logo deu-se conta que a Dança poderia dar-lhe mais destaque. Fez bem. Robson era um animal no palco, talhado para a Dança. Sem ter um rosto belo, sua presença poderosa em cena transformava-se num duelo de beleza e epifania. Era mágico. Dançando, ele se transformaria no que quisesse. Um titã.
Vindo para o sul ainda jovem, Robson não tardou a fazer parte do Corpo de Baile dos Teatros Municipais do Rio de Janeiro e São Paulo. De lá ele partiu para a Bélgica, ingressando na célebre Mudra, escola de Maurice Béjart em Bruxelas e apêndice do Teatro Royal de la Monnaie, onde Béjart manteve por décadas seu avant-garde Ballet do Século XX em atividade explosiva constante.
Sem muitas expectativas de conseguir um lugar na Companhia, formada por bailarinos virtuoses belíssimos de diversas nacionalidades Robson voltou para o Brasil com uma bagagem profissional excelente e falando francês. Ingressou de imediato no Ballet Stagium mas seu comportamento irrascível tornou curta sua carreira na Companhia de Márika Gidali e Décio Otero. Foi neste momento que ele retomou contato com Victor Navarro que estava formando uma companhia de dança com apenas seis bailarinos e montando uma obra prima chamada "Paixão". Logo, Chica Timbó, amiga pessoal e conterrânea de Robson, deixaria também o Stagium para consternação e histeria de seus diretores, integrando com grandeza a pequena Companhia de Victor. 
Quando Navarro foi ao seu apartamento convidá-la formalmente para integrar seu grupo, levou para ela uma rosa cor-de-rosa. Eu vi essa rosa sem fim, Chica a manteve intacta por dias junto à sua cabeceira de prima ballerina assoluta! Dia após dia a rosa parecia desabrochar para uma nova vida. Magias de Victor Navarro!

Em Petrópolis, lia minhas poesias para Robson e ele dançava para mim no grande quintal da casa onde morávamos. Robson tinha um temperamento difícil, podia ser inesperado! O que mais me inspirava nele era sua fibra, sua coragem e determinação. Robson era um bailarino puramente instintivo, sem grandes enciclopédias em seu background, com uma musicalidade natural e solar e quando ele subia num palco, não se olhava para mais ninguém. Entre nós sempre rolou uma amizade terna e compreensiva. Eu o admirava abertamente, o que era sem dúvida, meu cartão de visita dourado para seu coração de artista indomável.
Só vi Robson dirigir-se com reverência a uma única pessoa nesta vida: Victor Navarro. E levando um pito por conta das roupas malucas e descaradamente sado-masoquistas com que ele se armara para um dos ensaios. Victor não queria que usássemos muita roupa. Mesmo nas aulas a maioria dos meninos usava apenas suporte e as meninas, um leotard cor da pele. Nem bolsas na lateral da sala ele gostava de ver: "Eu só quero ver os corpos", dizia, sentado em seu banco de madeira com a placidez de um mestre zen. Olhos de um azul mais que profundo vasculhando céus ao seu redor... Tudo à sua volta eram nuvens...
Robson estava então de volta a Petrópolis, depois de uma mal sucedida temporada na Companhia de Victor onde ele andara aprontando das suas. Demitido, voltou para o Ceará e notícias mentirosas começaram a circular nos meios de Dança em São Paulo. Diziam absurdos. Nunca perdi a esperança de revê-lo. Robson ficou alguns meses por lá, em seu exílio de criança mal dormida, gerando sonhos que não dormem.
Foi nesse meio tempo que Victor ampliou sua Companhia adicionando treze bailarinos e remontando seu repertório completo. Uma gama de ballets inspiradíssimos que iam de suas coreografias para o Ballet da Cidade de São Paulo, Ballet do Teatro Castro Alves de Salvador e Cisne Negro Companhia de Dança, uma das raras companhias particulares ainda em atividade na capital paulista.


Victor chegou a São Paulo vindo de Petrópolis no final de 85 com sua troupe de 19 bailarinos que pareciam emergir de um filme de Luchino Visconti para uma apresentação de dois dias no Teatro Sérgio Cardoso. Guardei por anos as entradas para os dois dias em minha carteira e elas afinal se desmantelaram em pedaços o ano passado. Queimei os restos de papel porque não tive coragem de jogá-los. Estrelas de fogo... Um assombro! O evento chamou-se “Era uma vez...” Um abalo sísmico transformado em contos de fadas. Finalmente eu via “Paixão” outra vez!
Robson fora substituído. Em seu lugar, Claudio Bernardo assumia o papel de deus Dionísio. Não havia cisão, tudo era um prolongamento de mapas estelares, rumos que seres humanos não traçam, a arte congrega involuntariamente seus próprios telescópios. Nós somos convidados a olhar com olhos puros de criança, mais nada... Não possuímos padrão para tais lentes!
Nunca imaginei que alguém neste mundo pudesse dançar aquele ballet que não fosse Robson. Mas Claudio se encaixava como uma luva nele. Perfeito. O outro lado da moeda cunhada a ouro e prata. Magias de meninos semi-deuses. Condão navarro de coreógrafo mais que divino!
Belíssimo em cena, Claudio era um deus descido do Olimpo. Os traços latinos de Claudio Bernardo ressaltavam sua sensualidade de príncipe mais que visceral. Chorei de emoção o espetáculo inteiro! Bebi Paixão com a mesma sede insaciável de sempre. Eternamente embriagado de sua beleza entorpecente. Que loucura!
Claudio havia deixado no seu posto de estagiário no Ballet Stagium, papéis menores e medíocres que lhe reservaram enquanto esteve por lá. Décio e Márika foram dois cegos, literalmente, não sabendo como aplicar em seus trabalhos os talentos magistrais e brilhantes de Robson Rosa e Claudio Bernardo. Mas esse era um condão reservado a outro Mago!
Claudio tem hoje uma Companhia de Dança contemporânea na Bélgica e desenvolve uma carreira internacional equilibrada e de muita qualidade, fruto de uma formação esmerada e sensível. Vindo de uma família calorosa, sempre teve dela o apoio e encorajamento para seu talento excepcional. E sempre soube como fazer uso inteligente de suas vantagens como artista e de sua musicalidade estupenda!
Robson partiu deste mundo em 89. Talvez tivesse decidido virar constelação definitivamente. Dois destinos, duas estrelas que passaram brilhando pelas mãos abençoadas do grande artista que é Victor Navarro. 
Minha página no Facebook está aberta ao público. Há algumas postagens sobre a recente remontagem de Apocalipse para o Ballet da Cidade de São Paulo, que convidou Victor para revivê-la. Postei fotos de alguns de seus ballets, principalmente "Paixão", seu trabalho mais 'rock', com música de Brian Eno e David Byrne. Não havia quem não quisesse dançá-la! Um delírio! Foi Paixão que me levou até Petrópolis. Uma dureza! Mal tínhamos dinheiro para comer. Num dia de vacas magras, todas já rumo ao destino do brejo, Robson roubou tomates e bananas de uma quitanda e fez uma salada maravilhosa que comemos feito uma iguaria. São pequenos pecados que Deus abençoa quando a gente é anjo perdido!
No meu último dia em Petrópolis, a Companhia havia descido para o Rio para uma apresentação no Teatro Villa-Lobos. Robson ficou comigo até a hora de eu ir tomar meu ônibus para Sampa. Naquela tarde ele me disse que a única coisa que ele tinha era seu corpo. Que não sabia escrever ou pintar como eu. Olhei para seu rosto triste, sorrindo dentes perfeitos como um colar de pérolas... Sempre havia um sorriso em seu rosto de menino! Sentado no chão, com as pernas estendidas, as pontas dos dedos de seus pés, quando esticados, tocavam o solo feito um compasso amolado para a vida! A vida afiada que Robson soube manejar com a destreza de um esgrimista. Então ele me disse que algum dia ainda seria uma escultura. Eu lhe disse que ele já era, uma escultura mais que viva.
Jamais o vi queixar-se de seu destino, de sua luta, de seus papéis queridos perdidos para outro bailarino tão talentoso quanto ele. A vida era um assunto urgente, sem tempo para que olhasse para trás.
Nunca quis saber como sua história terminou. Sempre penso nele. Gostaria que sua alma encontrasse a paz que ele tanto buscou na Dança. Vem à minha lembrança o escorpião (seu signo) que tinha tatuado em seu lóbulo direito com um brilhante preso à sua garra dianteira. Era assim que o via, arisco e indefeso, ainda que mostrasse o oposto disso muitas vezes. Sua passagem meteórica por este planeta deixou marcas profundas no coração dos que o conheceram, visões de apocalipses naqueles que viram suas performances reluzentes. Sempre tive dele o carinho e a cumplicidade de um igual. Comigo ele compartilhou incondicionalmente seu brilho impagável de estrela em altos abismos.
Todo Meu Amor. No Dharma. C.

  


domingo, 12 de janeiro de 2014

Dragões, flores e incensos



Ein Karem, 14.01.14


Suas cartas são como incensos, alento que permeia todo espaço interno. Ainda não me senti devidamente íntegro para responder intencionalmente suas cartas. De qualquer forma me sinto em dívida quando abro o e-mail pela manhã enquanto a água esquenta para o café e encontro uma mensagem sua. Abre minha semana com chave dourada! Fico na precisão de responder, como quem tivesse um bolo assando. 

Os verbos... Hoje tivemos a última das bynianim. Pual. Tenho mais um mês e meio de aulas. Então esse módulo termina. A próxima etapa só tem aulas noturnas. São três dias na semana. Vamos ver o que se dá. Quero fazer. Sem dúvida! Mas tenho que tratar de sedimentar todas essas formas verbais na minha mente. O método é preciso. Ele se cristaliza. 
Há um projeto de ir a um museu de Adoniran Barbosa em pleno kibutz israelense, numa região desértica, em Neguev. Quero ver se vou nesse lugar no próximo Sábado ou o mais rápido que puder.
Um dia, estava dentro de um ônibus e vi Adoniram Barbosa na esquina da São João com a Ipiranga. 1975. Alguns anos antes de Caetano compor "Sampa" e imortalizar de vez a esquina. Era Adoniran, sem dúvida alguma. Seu chapeuzinho marca-registrada e o rosto grave-sereno. 
A publicação da minha aquarela deu-se pelo fato de que ela foi selecionada pela revista da escola Gurdjieff da qual faço parte há tantos anos. Agradeço de coração seu enaltecimento mas não sou artista internacional não, Chella Querida... Sou, antes de mais nada, um artista interno. Nunca me sinto bem dentro das calças dizendo que sou artista. Mas o fato é que nunca consegui viver sem criar. Não por decisão voluntária. É prestação de serviço divino. Sei apenas que comigo isso se dá dessa forma. Ser anônimo, quase disfarçado, completamente retirado daquilo que poderia se chamar 'meio literário'. Mesmo a poesia que escrevo não tem valor algum para o que está em voga. Eu seria considerado um alienígena arcaico tentando a santidade. Minha poesia trata das coisas do espírito. Para mim é só o que conta. Criei uma arte para poucos. Quando olho meu percurso, vejo que certamente não é algo acidental. Há algo ali. Mas viver o momento é a melhor aventura. A porta mais possível. Quero apenas cumprir minha missão. A Arte tem seus propósitos. Ela é uma entidade viva dentro de mim. Não tenho dúvidas quanto a isso. Sei bem o quanto ela dialoga comigo e lateja viva no meu sangue de jagunço. É ela que mantém meu coração batendo seu ritmo de cristal. Paralelo a isso há a busca espiritual, a qual também nunca busquei deliberadamente. Nunca tive poder de decisão sobre nada disso. A gente não escolhe nada. Somos escolhidos. Mas tem que ficar piano piano. Toda a graça só me sinaliza mais humildade. Lidar com essas grandes forças me coloca no devido lugar. Também é grande saber ser pequeno. Vivo universos nas minhas moléculas. Mas é uma oração em silêncio. Ela cabe na palma da sua mão. E pode abraçar um céu inteiro.
A grandeza desse nosso momento aqui, por exemplo... Quer coisa mais divina que isso? Não é exatamente o mesmo que ouvir Marin Marais? Ou estar diante de uma tela de Van Gogh? Ou entrar pela primeira vez em Santa Sofia, em Sultanahmet? A grandeza é a mesma. As impressões podem ser mais retumbantes. Mas a alma que está ali tem a mesma quietude ampliada em 360 graus. Uma aura que vira pelo avesso. O contrário dessa coisa chamada 'self', que de você mesmo não tem é nada, só carimbos pálidos que a nossa programação tenta perpetuar a duras penas. Para dar em nada. 
Só o que resta é a grandeza do espírito. Essa não conhece tempo nem espaço. Vida ou morte. A linguagem da eternidade é irreproduzível. Por isso os livros sagrados são cantados. 
Minhas cartas a vocês têm o dom de se transformarem em poesia. Nunca sei ao certo o que vai sair quando me sento a escrever. Mas o meu sentir é sempre o mesmo. A marca de vocês dentro do meu ser é feita a fogo. Chia e fumega vapores como as ventas dos animais em dias frios de inverno. Não poderia decifrar, ainda que no espaço de muitas vidas, tanto mistério e tanta benevolência dos deuses. Procurei uma família toda minha infância e errei a porta indefinidamente. Vocês são minha referência mais evidente. É inegável. Mas tão indecifrável quanto um claro enigma. Para esses mistérios, todos os dicionários são obtusos. E eu, aedo iletrado que só sabe cantar. Mais nada. Mas o gosto nas minhas mandíbulas é de epopeias. E meu fio da meada, são contos de fadas em faróis. Que os deuses nos mantenham neste mesmo porto. Grandes navios virão, assim como pequenos pescadores. Tratar de ser luz é o único parâmetro. Todo o restante são trevas exteriores, onde há choro e ranger de dentes. E ali também a luz há de chegar!
Todo meu amor. Seu no Dharma. C.