segunda-feira, 16 de junho de 2014

O Quintal


O Quintal

a Luiza Lopes

Era um grande quintal onde sonhei alguns anos na companhia de um limoeiro no qual fiz um balanço com uma corrente velha que encontrei no fundo de um baú no barracão de minha avó. Era na verdade uma avó emprestada, casada aos quatorze anos com um primo de minha mãe.
Quando meus pais vieram da Ilha da Madeira, fugindo de seu amor proibido após casarem-se escondido, encontraram abrigo de luas-de-mel junto a esse casal, Maria e António. Nessa época, final dos anos 30, eles tinham uma pequena fazenda e criavam vacas cujos nomes lindos me esqueci completamente. Meu pai trabalhou com eles nesse período. Era ele quem ordenhava os animais para que meu avô António saísse bem cedo, na São Paulo fria daquele tempo, para entregar o leite fresco.
Minha avó tricotara um cachecol grande que ele enrolava no pescoço para se aquecer quando saía em sua carroça, puxada por uma junta de burros teimosos. Anos depois, ganhei dela essa peça de vestuário. Precisou diminuir o tamanho e como não entendia muito de costura, acochambrou à sua maneira o comprimento, improvisando algumas dobras que formaram quelóides intransponíveis e que tornaram o cachecol uma imensa jiboia enrolada em meu pescoço de criança.
Eles se mudaram para aquela casa quando já não havia mais vacas. Tinham agora um pequeno armazém mas o hábito de criarem animais fez com que mantivessem sempre alguns porcos e muitas galinhas. Plantavam verduras e vegetais no quintal. Ele tinha uma utilidade bem prática, algumas dessas verduras eram vendidas no armazém.
Aposentaram-se por conta própria, depois de muitos anos de lida. Foram viver num bairro próximo, numa vila de casas que possuíam. Foi quando comecei a viver com eles.
Mas conheci meu quintal apenas quando Vó Maria tornou-se viúva e voltou a viver na velha casa. Lá ela começou uma nova etapa de sua vida portuguesa.
Outras crianças costumavam brincar no quintal antes de mim. Elas deixaram nos baús do velho barracão, junto ao grande bosque do quintal, brinquedos de uma preciosidade sem fim. Curioso, admirava-os escondido de todos, tentando adivinhar seus segredos que o tempo mofara num passado não muito remoto. Velhos brinquedos abandonados com tantas histórias por contar enferrujando destino afora. Cordas que faltavam em tantos violõezinhos, carrinhos completamente sem rodas, botões que não funcionavam mais em tanta vida de clausura e ainda assim, quebrados, desbotados e completamente destruídos, a impiedade do tempo só os tornava mais dignos. Eles mantinham a ternura de uma época que não conheci. Mesmo arruinados em suas funções, ainda eram puros brinquedos, única coisa que tão nobremente sabiam ser...
O quintal em si era muito grande, com árvores de tangerina, uma pequena amoreira, abacateiros, parreiras de uvas, um limoeiro e um jardim de onde minha avó costumava colher flores para levar ao túmulo de seu amado António. Nos primeiros anos de sua viuvez, tingiu todas as suas roupas de preto. Eu adivinhava as estampas que conhecera antes e que agora começavam a surgir em seus vestidos e aventais já desbotados, revelando então uma alegria feminina e jovial que ela velara em brumas negras...
Meu balanço no velho limoeiro era uma desculpa para ter o que fazer lá. Os espinhos do tronco muitas vezes arranhavam minhas pernas amargamente. Ofendido pela falta de gentileza eu o abandonava ferido e numa espécie de vingança cítrica, talvez envenenado pela perseverança feroz dos limões, ficava imaginando quem plantara todas as outras árvores, dando-lhes novos nomes carinhosos para os quais elas não prestavam a mínima atenção. Árvores não gostam de elogios azedos...
Depois disso, só como uma montanha de florestas, brincava de índio sem tribo, nome ou fantasia. Que mais faria numa selva daquelas?
Quando o tempo passava, arrastado pelas horas que ignorava, poucas coisas restavam para fazer ali. Então, súbito, olhava para o fundo do quintal e era movido por um medo infundado. Corria então como um louco para a sensatez da velha casa sem mesmo olhar para trás. Nesse dia não voltava mais lá.
Anos depois, o destino quis que fosse viver numa rua paralela. Um diferente enredo para uma mesma arena. Tempos difíceis. Talvez, sem a certeza que me davam minhas poesias e pinturas, tudo seria escuro como as roupas tingidas de minha avó. Ela partira há muitos anos, levando consigo as cores que restaram de seu luto desbotado e que a nostalgia de brinquedos me fazia voltar para ver em tardes sombrias.
Sentado sob o abacateiro, via-me face a face com um passado que terminara. O limoeiro morrera. Jazia quebrado no lugar que sempre fora seu. Num de seus galhos percebi com um misto de sorriso e pena as marcas da corrente cravada em seu tronco que tantas vezes carregara o meu corpo alegre...
O limoeiro não era mais o rei do meu quintal... Chorei meu passado de limão-bravo amargamente... Depois, fui calando aos poucos minhas perdas... Levantei a cabeça pouco a pouco e comecei a vislumbrar uma revelação.
Junto ao muro, bela e carregada de frutos, percebi que a amoreira brilhava fundos de um palco, abandonando coxias paralelas. Nobre, inspiradora, rainha desde sempre de um mundo que ainda poderia ser meu a partir daquele momento.
Assim, nem tudo estava perdido! A vida suplantara em visões mágicas a acidez do limoeiro, dando agora sua coroa de louros à doçura e maternidade da amoreira que me apontava outra vez o sorriso feminino das árvores como um princípio.
Sim, eu seria feliz outra vez e não precisaria mais ruminar o passado para estabelecer minha nova gênese.
Decidi que plantaria novas árvores dentro de mim. E faria a colheita dos meus próprios frutos, sem me importar com sua doçura ou acidez. Seria responsável por minha colheita e meu vinho, meu fado & meu fruto.
Aprenderia silenciosamente a partir dali, a lição dos grandes poetas: transformar-se a cada dia numa árvore maior e mais bela. Todos os poetas, no fundo, parecem árvores que perseveram tempo em forma de sabedoria.




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