quinta-feira, 2 de junho de 2016

Os lábios incandescentes de Lady Day


Akko, 02 Junho 2016

Ri Querido

Fui para a Ulpan hoje pensando no seu e-mail que li logo de manhã. E tudo o que penso sobre Billie Holiday ao longo desses anos se fortalece e solidifica. Na verdade, sou um típico exemplo de alguém fascinado e cristalizado pelas interpretações magistrais dela. Até hoje, depois de ler praticamente tudo o que me caiu nas mãos sobre ela, ainda fico embasbacado com a obra que construiu em apenas vinte e seis anos de carreira artística. E tudo isso embalado por uma vida tumultuadíssima, cheia de tragédias interiores e desencantos que poucos suportariam de pé. Ela foi até onde deu! Depois, simplesmente evaporou!
A diferença é que Billie, além de ser uma pilantra de marca maior, era mais um músico que simplesmente uma crooner de jazz. E ela era antes de mais nada uma negra atrevida, vivendo numa América besta, preconceituosa e quadrada e peitando lindamente os melhores músicos de jazz da época com aquilo que ela mesma chamava de 'a minha merda de voz'. Mas que voz! Meu pai sacramentado! Um timbre metálico inigualável que ela explorava até as últimas consequências para que pudesse soar como um trompete e que você uma vez tão acertadamente qualificou como surrealista. Nunca pude encontrar um adjetivo mais adequado e exato para o mistério que sua voz sempre exerceu sobre mim.
É preciso entender Billie também como mais um dos caras da orquestra. Ela não fazia de jeito algum aquele modelão de chegar depois de todo mundo e tomar seu lugar de estrela junto ao microfone. Nada disso! À parte mijar de pé, acho mesmo que ela fazia de tudo junto com eles! E era como um músico entre os músicos que ela era reconhecida. É evidente o clima de adoração que eles lhe devotavam. E vamos lembrar aqui sua beleza estonteante que seduziu quem quis e mais lhe interessou, de Orson Welles a Tallulah Bankheads! Sem contar que Billie passou meia Holywood na cara! Danada comeu meio mundo!
E era além do mais dona de um senso de humor sarcástico e uma grande criadora de piadas! Imitava quem lhe incomodava, punha apelidos, dizia palavrões como qualquer um deles e era capaz de tomar boas miligramas de heroína como ninguém jamais ousaria. Anita O'Day contou que uma vez se drogou junto com Billie e ficou assustada com a forma como ela preparou seu baque. Talvez não houvesse colher disponível e Anita diz que Billie diluiu a heroína numa lata de sardinhas vazia.
Mas no palco, divina como ninguém e dona de uma elegância fora do comum para uma mulher negra em sua época, era imbatível e distante como uma deusa de ouro e ébano. A audiência se calava completamente quando ela punha som naqueles seus lábios indecentes e que evocavam, no mínimo, um fantástico blow-job de perder o fôlego! Tamanho era o poder que exercia sobre a plateia. Jamais encontrei alusões ao esse fato, mas para mim, tudo o que pôde cantar, seja em gravações ou ao vivo, ela o fez preferencialmente chapada. Se você for maluco o suficiente você percebe isso. E esse é um dos fatores essenciais dessa magia que pega todo mundo.
Ray Ellis, o maestro que ela fez questão que a acompanhasse em 'Lady in Satin', afirma que Billie jamais apareceu em nenhum dos ensaios que ele marcava. Nem adiantava combinar! E quando vinha gravar, ela se trancava no banheiro por um tempo muito grande antes de entrar no estúdio. Em muitas fotos dessas sessões nós a vemos com uma xícara de café nas mãos e que Ray veio a perceber muito depois ser seu conteúdo puro gin, um gosto que talvez ela tenha herdado de Bessie Smith, um de seus ídolos confessos. Ainda assim, as gravações de 'Lady in Satin' são o melhor néctar que ela poderia destilar àquela altura de sua vida. Foi ela mesma quem fez questão de gravar esse disco com uma orquestra. E foi bastante criticada por isso, quase ninguém achava que aquilo daria certo. Era o disco favorito de Lady Day...
Mas Lady Day tinha um ingrediente raro, virtude a que Victor Navarro costuma chamar 'sentido musical'. E já há alguns anos, se nós olharmos atentamente, a música que Billie Holiday vinha fazendo ultrapassara em anos-luz a forma ortodoxa de se fazer e se cantar jazz. Ainda que seu repertório fosse essencialmente jazzístico, o tratamento que ela vinha impondo a esses standarts era algo totalmente inusitado, de uma tessitura e caráter tão legítimos e originais quanto a luz do sol.
O fato é que nos deixou um legado fora do comum, exemplo digno e radiante de um período de ouro da cena musical de seu tempo. Era um momento em que as gravadoras ainda não dispunham do monopólio e das direções que hoje obrigam o artista a conduzir seu trabalho numa determinada direção. Eram os músicos que decidiam o que gravariam. Ninguém poderia sugerir nada para aqueles caras! Isso hoje em dia é raro.
Poucos artistas têm domínio completo sobre o que fazem. Maria Bethânia brigou a vida toda por isso e mudou inúmeras vezes de gravadora por seu irascível poder de decisão. Marisa Monte é outra, diva total que foge determinantemente a essa regra. Por coincidência, ambas são fãs incondicionais de Lady. Marisa cantava Speak Low desde seu primeiro show, o mesmo com que estourou no meio musical do Brasil sem ter sequer um único disco gravado. Mas MM é uma exceção a tudo que já surgiu em MPB desde que o samba é samba.
Viver num país que não é o seu muitas vezes tira seu chão. Por tudo que está envolvido. Principalmente para alguém como eu que tenho uma relação íntima e sexual com meu idioma. Eu procuro sedução o tempo todo quando escrevo. Se meu texto não me comover, se não provocar calor em minhas entranhas, nada feito! De um tempo para cá reduzi o tamanho dos meus parágrafos e percebi que isso soa também como um ritmo de penetração, destila melhor seu prazer aos poucos.
Mas falando como um estrangeiro, como espécime raro das minorias num país ocupado, a referência musical que tenho – tanto do Brasil como de toda a minha bagagem e da qual Billie é sem dúvida alguma um dos carros chefes – é um dos meus maiores suportes, é o que me sustenta muitas vezes e me faz olhar as pessoas de frente como iguais, sem qualquer vantagem delas sobre mim. Nada mal para um lugar onde até mulheres são soldados!!
Hoje, em plena aula de hebraico, tive o insight de que a música é uma forma muito particular de experimentar a Verdade. E é essa veracidade que corre pelas veias em silêncio e que ecoa loucamente por todas as esquinas e sete mares. Do Mediterrâneo ao mar da Bahia. O tabuleiro tem nada mais que um só e mesmo tempero. E traz indubitavelmente, de bonus track, uma camélia presa nos cabelos!

PS.: Gosto demais dessa foto, não só pela forma quase ultrajante como ela caminha e está vestida (repare na flor do vestido!) como também pela expressão de assombro da figura que está ao fundo e que parece alguém surgido diretamente do futuro, um contemporâneo nosso e que não se parece nem um pouco com alguém de sessenta anos atrás.


Eu conhecia um take ou dois dessa gravação que a página de Billie no facebook liberou num certo momento a respeito da guitarrista Mary Osborne (é esse o nome?).  Não vira até agora na íntegra, acho que disponibilizaram recentemente. Os créditos dão a gravação como Julho de 58, um ano antes de Billie se encantar de uma vez por todas, ela, que foi nada mais que puro condão! Billie Holiday é um arquétipo do jazz. Transubstanciação única do gênero. Ela catalizou sem mesmo saber (será?) tudo o que a cultura do jazz representava então e viria depois a representar no futuro. Lady Day será ouvida enquanto o planeta existir, e mesmo depois dele! Ela opera na linha vertical do tempo. Embora insistisse em manter uma vida visível de traços humanos e falhos, ela não era uma pessoa. Era Jazz. E sua Agulha jamais abandonará o vinil da História que gira no Universo Transcendental da Grande Música!

https://www.youtube.com/watch?v=odgHMvESF-U

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