sábado, 19 de setembro de 2020

Sobre Dervixes e Brastemps

 


A Arqueologia dos Santos


Os dervixes circulavam na evolução de seus movimentos e das saias rodopiantes de seus longos vestidos um leve aroma desconhecido e sutil de amaciante de roupas chegava até mim. Quando paravam, harmonicamente sincopados, podia-se até ouvir a goma dos tecidos frigindo suavemente, como se por alguma pérgula suspensa no tempo, flores espiassem a vida ao redor. Pensei nas mãos femininas invisíveis que zelavam por todo esse espetáculo sem qualquer crédito nele.

Era num espaço desativado daquela antiga estação de trens que aquele grupo se apresentava algumas noites da semana, um saguão de arquitetura otomana emoldurado por belos vitrais que fora uma vez a grande sala de espera do luxuoso Orient Expressque saía da Gare de l’Est em Paris com destino final em Sirkeci Train Station, no coração de Constantinopla.

Mantive os olhos fixos no centro do tablado intencionalmente. Queria divisar o conjunto como um todo. Lera em algum lugar que a cerimônia dos dervixes imitava o circuito dos planetas ao redor do sol mas não pude interpretar nenhuma revelação no que vi. O momento era simplesmente um céu a ser brilhado, independente da hierarquia que a compreensão alcançasse ou que outras percepções pudessem decifrar. Assim, transportado pela música imaculada da pequena orquestra, permaneci durante toda a apresentação.

Os supostos dervixes chegaram numa espécie de intervalo, depois de os músicos executarem algumas peças de seu sóbrio repertório para uma plateia composta por algumas poucas dezenas de pessoas. Artistas excelentes, tocavam com maestria e propriedade e neles transparecia esculpida uma aura de santidade, fosse através de traços marcantes e olhares profundos ou das barbas longas e completamente brancas que emolduravam as faces de alguns deles, parecendo todos cinzelados da mesma pedra.

Ao contrário dos velhos músicos, os dervixes pareciam forjados às pressas na primeira bigorna disponível. Todos jovens, em roupas comuns e mochilas às costas, adentraram a sala desativada da estação no entreato, passando apressados e ruidosos por trás da fileira de cadeiras onde eu estava e sumiram num corredor que conduzia a um suposto vestiário.

Novamente os músicos se posicionaram em seus lugares quando súbito, ouviu-se o barulho de alguma coisa que caíra inesperadamente no cômodo adjunto, onde os dervixes se paramentavam.

A música começou. Um a um os jovens entraram para o início da apresentação mas ainda visivelmente transtornados pelo incidente ocorrido ainda há pouco. A custo alguns deles continham o riso.

Isso também desviou minha atenção a princípio mas foi determinante na resolução de não me distrair olhando para nenhum deles em particular tentando detectar quando eventualmente entrariam no estado que todos imaginamos que os dervixes acessem num determinado ponto da cerimônia. E foi produtivo no sentido de trazer a vaga noção – muito vaga, eu diria – do que poderia ser o verdadeiro ritual de uma confraria.

Voltei para o hotel em silêncio, andando pelas ruas de Sultanahmet naquele novembro frio e chuvoso, admirando a força excêntrica das construções alinhadas em pergaminhos de formas misteriosas, onde cada pilastra parecia guardar segredos calados ali para sempre. Impossível não associar essa atmosfera com a memória de Gurdjieff, que pensou seriamente em estabelecer ali o seu ‘Instituto para o Desenvolvimento Harmonioso do Homem’, o quartel-general que futuramente serviria de base para o trabalho com seus estudantes.

Em 1908 Piotr Ouspensky viu os dervixes pela primeira vez em sua visita a Constantinopla numa legítima tekke, espécie de centro ou escola onde eles se reuniam para suas cerimônias. E doze anos depois, em 1920, voltou já acompanhado de Gurdjieff, a quem conhecera em Moscou pouco antes da Revolução Russa e de cujo círculo interno de estudantes começara a fazer parte desde então.

Mas ainda que reconhecesse as mesmas qualidades excepcionais na seriedade do trabalho ainda preservado naquela tekke, percebeu também que a cidade perdera em essência muito de seus atrativos originais e na verdade profundas mudanças começariam a acontecer a partir de então.

O genocídio armênio ocorrido entre 1915 e 1923 no final do decrépito Império Otomano, era um dos sinais visíveis dessa grande descendente que se pretendia uma grande reforma étnica e cultural.

De minha parte, não alimentara nenhuma expectativa quanto à legitimidade de qualquer performance que eventualmente viesse a assistir, já que o sufismo está proibido na Turquia há muito tempo, o que torna praticamente nula a possibilidade de que a tradição dos dervixes tenha permanecido imaculada diante de tantas restrições e perseguição desde o governo de Mustafá Kemal Atatürk, primeiro líder da nova República da Turquia que assumiu sua presidência em 1923, comandando ferrenhamente toda a modernização e ocidentalização do país até sua morte em 1938.

Em 1925 os dervixes foram definitivamente proibidos de realizarem apresentações públicas e por decreto governamental tiveram todas as suas tekkes fechadas. A Ordem Mehlev permaneceu enquanto instituição e sua sede em Konia, terra natal de seu fundador Maulana Rumi, foi transformada em museu.

O processo de modernização da Turquia retirou de sua cultura toda a influência que pudesse estar vinculada às antigas tradições religiosas e interferiu dentre outras coisas, até mesmo na indumentária das pessoas. A abolição do alfabeto árabe em 1928, substituído pela adoção de caracteres latinos na escrita turca, também provocou profundo ressentimento na comunidade islâmica mais ortodoxa, que já perdera vertiginosamente seu forte poder de influência teocrática no código de leis da nação.

Ainda assim, passado tanto tempo, as ofertas de apresentações de inúmeros grupos que se auto consideram autênticos Mehlev, espalham-se em cada esquina de Sultanahmet.

A Verdade não se dilui. Mas o tempo inventa variantes daquilo que num certo momento foi um trabalho vivo, mesmo que em sua expressão externa. É o efeito e o modus operandi comum na história das civilizações. O que resta é uma pálida miragem que não pode refletir o sentido real de um advento que serviu um propósito muito distante da lei das aparências e dos dogmas. O surgimento das grandes religiões comprova isso. Não é possível recriar as mágicas presenças de personagens notáveis como Jesus, Maomé, Abraão ou Moisés. As proporções tectônicas que se abalam quando eles surgem e empreendem seu trabalho de ação, movendo céus e montanhas, se arrefecem irreparavelmente a partir do que é feito logo depois de milagrosamente cumpridos seus papéis históricos ou espirituais.

Nós... herdamos os estigmas, o que não exclui as inúmeras possibilidades de uma potencial ressurreição sempre ao alcance.


E talvez pela vida exclusiva do próprio texto e de suas leis misteriosas, muito da pesquisa ao escrevê-lo também revelou ariadnes em seus labirintos.

Assim, vim a descobrir que em Akko existiu uma confraria de dervixes da Ordem Shadili, estabelecida pelo tunisiano Sheikh Ali Nur al-Din em 1862.

Ele teve um sonho com Abraão ou com o profeta Jonas, os relatos variam, quando fazia sua peregrinação a Meca em 1850, para que viesse a Akko e fundasse aqui uma tariqa.

O lugar, não muito distante daqui, está preservado, teve reformas relativamente recentes e é possível visitá-lo. Não sei da atividade atual da confraria. Na guerra de 1948 seu centro foi transferido para Beirute e posteriormente para Aman. O lugar é considerado sagrado pelos sufis não apenas pelo que abrigou durante certo período de sua história mas também pelo fato de manter em seu solo os túmulos do Sheikh Ali Nur, de seu filho e de seu neto, sendo que as cinzas deste último foram trazidas de Aman em 1981 pelo Sheykh Ahmad al-Yashruti, bisneto do Sheikh Ali Nur e com o consentimento do estado de Israel.

E procurando a localização da tariqa no google map, me deparo com a sinalização de um túmulo sagrado (um maqam), este à beira-mar e muito próximo de minha casa, lugar que sempre me intrigou pela falta de informação disponível, fosse por uma placa ou lápide.

E aqui a história retrocede ainda mais no tempo. Considera-se que ali estejam os restos mortais do Sheikh Izz ad-Din, morto talvez durante o grande Cerco a Akko na Terceira Cruzada, em 1191.

Não há qualquer outra menção histórica a ele disponível. Mesmo o título de ‘Sheikh’ consta apenas nos mapas dos registros do Mandato Britânico na Palestina, diferente do Mandato Francês que cita apenas o nome Izz ad-Din sem qualquer outro título ou crédito. Teria sido um santo? Um guerreiro? O enigma permanece, ainda que a água do tempo dilua tudo desde a primeira lavagem.

A santificação e a luta, no entanto, prevalecem na continuidade dessa guerra inevitável de nervos. O ouro de nossa batalha é conquistado dia a dia e não há espólios. Os anjos guerreiros também não compartilharam suas armas. Muitas vezes sequer deram-se a conhecer. O anonimato foi sua vitória silenciosa.











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