O Quintal
a Luiza Lopes
Era
um grande quintal onde sonhei alguns anos na companhia de um limoeiro
no qual fiz um balanço com uma corrente velha que encontrei no fundo
de um baú no barracão de minha avó. Era na verdade uma avó
emprestada, casada aos quatorze anos com um primo de minha mãe.
Quando
meus pais vieram da Ilha da Madeira, fugindo de seu amor proibido
após casarem-se escondido, encontraram
abrigo de luas-de-mel junto
a esse casal, Maria e António.
Nessa época,
final dos anos 30, eles tinham uma pequena fazenda e criavam vacas
cujos nomes
lindos me esqueci completamente. Meu pai trabalhou com eles nesse
período. Era ele quem ordenhava os animais
para que meu avô António
saísse bem cedo, na São Paulo fria daquele tempo, para entregar o
leite fresco.
Minha
avó tricotara um cachecol grande que ele enrolava no pescoço para
se aquecer quando
saía em sua carroça, puxada por uma junta de burros teimosos.
Anos depois, ganhei dela essa peça de vestuário. Precisou
diminuir o tamanho e
como não entendia muito de costura,
acochambrou à sua maneira o comprimento,
improvisando algumas dobras que formaram quelóides intransponíveis
e que tornaram o
cachecol uma imensa jiboia
enrolada em meu pescoço
de criança.
Eles
se mudaram para aquela casa quando já não havia mais vacas. Tinham
agora um pequeno armazém mas o hábito de criarem animais fez com
que mantivessem sempre alguns porcos e muitas galinhas. Plantavam
verduras e vegetais no quintal. Ele tinha uma utilidade bem prática,
algumas dessas verduras eram vendidas no armazém.
Aposentaram-se
por conta própria, depois de muitos anos de lida. Foram viver num
bairro próximo, numa vila de casas que possuíam. Foi quando comecei
a viver com eles.
Mas
conheci meu quintal apenas quando Vó Maria tornou-se viúva e voltou
a viver na velha casa. Lá ela começou uma nova etapa de sua vida
portuguesa.
Outras
crianças costumavam brincar no quintal antes de mim. Elas deixaram
nos baús do velho barracão, junto ao grande bosque do quintal,
brinquedos de uma preciosidade sem fim. Curioso, admirava-os
escondido de todos, tentando adivinhar seus segredos que o tempo
mofara num passado não muito remoto. Velhos brinquedos abandonados
com tantas histórias por contar enferrujando destino afora. Cordas
que faltavam em tantos violõezinhos, carrinhos completamente sem
rodas, botões que não funcionavam mais em tanta vida de clausura e
ainda assim, quebrados, desbotados e completamente destruídos, a
impiedade do tempo só os tornava mais dignos. Eles mantinham a
ternura de uma época que não conheci. Mesmo arruinados em suas
funções, ainda eram puros brinquedos, única coisa que tão
nobremente sabiam ser...
O
quintal em si era muito grande, com árvores de tangerina, uma pequena amoreira,
abacateiros, parreiras de uvas, um limoeiro e um jardim de onde
minha avó costumava colher flores para levar ao túmulo de seu amado
António. Nos primeiros anos de sua viuvez, tingiu todas as suas
roupas de preto. Eu adivinhava as estampas que conhecera antes e que
agora começavam a surgir em seus vestidos e aventais já desbotados,
revelando então uma alegria feminina e jovial que ela velara em
brumas negras...
Meu
balanço no velho limoeiro era uma desculpa para ter o que fazer lá.
Os espinhos do tronco muitas vezes arranhavam minhas pernas
amargamente. Ofendido pela falta de gentileza eu o abandonava ferido
e numa espécie de vingança cítrica, talvez envenenado pela
perseverança feroz dos limões, ficava imaginando quem plantara
todas as outras árvores, dando-lhes novos nomes carinhosos para os
quais elas não prestavam a mínima atenção. Árvores não gostam
de elogios azedos...
Depois
disso, só como uma montanha de florestas, brincava de índio sem
tribo, nome ou fantasia. Que mais faria numa selva daquelas?
Quando
o tempo passava, arrastado pelas horas que ignorava, poucas coisas
restavam para fazer ali. Então, súbito, olhava para o fundo do
quintal e era movido por um medo infundado. Corria então como um
louco para a sensatez da velha casa sem mesmo olhar para trás. Nesse
dia não voltava mais lá.
Anos
depois, o destino quis que fosse viver numa rua paralela. Um
diferente enredo para uma mesma arena. Tempos difíceis. Talvez, sem
a certeza que me davam minhas poesias e pinturas, tudo seria escuro
como as roupas tingidas de minha avó. Ela partira há muitos anos,
levando consigo as cores que restaram de seu luto desbotado e que a
nostalgia de brinquedos me fazia voltar para ver em tardes sombrias.
Sentado
sob o abacateiro, via-me face a face com um passado que terminara. O
limoeiro morrera. Jazia quebrado no lugar que sempre fora seu. Num de
seus galhos percebi com um misto de sorriso e pena as marcas da
corrente cravada em seu tronco que tantas vezes carregara o meu corpo
alegre...
O
limoeiro não era mais o rei do meu quintal... Chorei meu passado de
limão-bravo amargamente... Depois, fui calando aos poucos minhas
perdas... Levantei a cabeça pouco a pouco e comecei a vislumbrar uma
revelação.
Junto
ao muro, bela e carregada de frutos, percebi que a amoreira brilhava
fundos de um palco, abandonando coxias paralelas. Nobre, inspiradora,
rainha desde sempre de um mundo que ainda poderia ser meu a partir
daquele momento.
Assim,
nem tudo estava perdido! A vida suplantara em visões mágicas a
acidez do limoeiro, dando agora sua coroa de louros à doçura e
maternidade da amoreira que me apontava outra vez o sorriso feminino
das árvores como um princípio.
Sim,
eu seria feliz outra vez e não precisaria mais ruminar o passado
para estabelecer minha nova gênese.
Decidi
que plantaria novas árvores dentro de mim. E faria a colheita dos
meus próprios frutos, sem me importar com sua doçura ou acidez.
Seria responsável por minha colheita e meu vinho, meu fado &
meu fruto.
Aprenderia
silenciosamente a partir dali, a lição dos grandes poetas:
transformar-se a cada dia numa árvore maior e mais bela. Todos os
poetas, no fundo, parecem árvores que perseveram tempo em forma de
sabedoria.