terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Robson Rosa - A Tarde de um Fauno


22.01.14
Olhei aquarelas não terminadas... Pássaros esperando cores, flores esperando a textura de madeira e o azul do vaso, romãs aguardando um prato... estudos de bouganvilles esperando um parto, redemoinho de água e folhas esperando retoques finais a pincel molhado, desertos vermelhos aguardando areias... pimentas esboçadas ainda no Brasil que ardem geografias em minhas saudades... 
Li o texto de R. Musil na Ilustríssima de 12 de Janeiro. Obrigado pela indicação. Guimarães Rosa sempre uma antena além do tempo! Nunca li qualquer menção de Rosa a respeito desse autor. Mas Rosa sabia tudo. Um baque. Quando salvei o texto deletei a figura da mosca. São clientes indesejáveis quando cozinho. Tenho contas abertas com elas. Quando vim a ter ao final do texto, arrependi-me de ter banido o pobre inseto. Uma agonia de Treblinka no mata-borrão. Vida escoando feito areia sem previsão de pérola alguma. A miséria da humanidade ou sua luxúria compartilham a mesma fome vazia e insustentável. Faces do mundo indigestas feito cicuta que tomamos sem mastigar...

23.01.14
Meu gato Ipê Amarelo andou doente também. Sem comer por cinco dias. Apático, encorujado em sua caixa como um bicho-preguiça, tão diferente do gato enérgico e cheio de vida que normalmente é. Mas recuperou-se ontem, como parte de um pacote que incluía férias no Paraíso das Delícias e que uma gripe financiou como ticket.
Tudo em paralelo prosseguiu. Os Fados que vieram à baila dançar mais uma canção comigo, eu já partner quase desacreditado esperando a última valsa... sentado numa cadeira sem fim, disposto a adentrar o salão vazio com sua orquestra à míngua.
Sim, deu-me o gosto. E parti finalmente para sua redenção. Talvez algum intervalo que ultrapassei sem me dar conta. Tsunami que de tabela levou-me além dum Bojador que não sentira em ondas.
A alegria grata dos seus versos de menina ecoando sede verde em meus ouvidos de piscina. Em quatro anos de Seminário não perdi um dia sequer de piscina. Contra o sol, meus cabelos tinham em suas partes mais claras, tons esverdeados do cloro a todo custo. Nadei depois à procura de outros mares.

24.01.14
Estou escrevendo aos soluços. Um tanto a cada dia. Filho que se cria aos poucos. Nos vales de Ein Karem as amendoeiras começam a florescer. Em uma semana estarão completamente brancas. Olhei a amplitude do Vale Iemenita hoje e adivinhei as cores que virão em neve pelas encostas. Lembrei de Van Gogh e seus campos iluminados. E de Carlos Drummond de Andrade e seu inesquecível 'Fala, Amendoeira'.
Um pequeno recanto chamou minha atenção. Uma construção árabe circundada por tamareiras centenárias. Ando encantado com os olhos clínicos que veem em termos de proporções, linhas e cores. Desta feita meu olhar anda perdido entre árvores e colinas, rebanhos de cabras perto e ao longe. Berregos e balidos. Em contrapartida, os "Rückert-Lieders" de Mahler parafraseando a cabralhada aos sopranos. Amo os Lieders de Mahler. E seus Adágios são desde sempre o infinito traduzido numa única pétala. A calhar, coloquei agora o Terceiro e Quarto Movimentos de sua Segunda Sinfonia, Ressurreição. Mahler que transporta. Portas abertas, ainda que para um amanhecer cinzento. Mesmo o haver noite justifica a realidade crua e suave do que é ser dia.
25.01.14
Comentei com você sobre um livro que estou lendo: The Six Perfections. Uma leitura atenta, calma, como o degustar lento de um vinho que não embriaga, antes, elucida. 
Uma grata surpresa foi receber por estes dias o convite de Victor Navarro para ser seu amigo no Facebook. Esse foi um presente de Olimpos. Ainda que tivesse visitado sua página várias vezes, jamais me atreveria a ousar fazer parte de seu círculo de amigos virtuais.
O fato é que se retroceder no tempo, vejo naturalmente que Victor Navarro sedimentou em mim tudo o que vim a fazer e como construí minha vida e meu compromisso e envolvimento com a arte. Ele é um fator decisivo para minha luta de homem e anjo.


Vi pela primeira vez um de seus ballets em 1976, quando uma amiga de um Curso Pré-Vestibular me convidou para ir ao Teatro Municipal de São Paulo, que eu ainda não conhecia. Um programa eclético, que estudantes recém-saídos do Colégio Equipe adoravam experimentar. Dentre as peças apresentadas, havia 'Lieders' de Mahler, 'Cenas de Família', de Oscar Araiz e que Victor dançava no papel de pai e finalmente, a grande estrela da temporada, 'Apocalipse', com música de John McLaughin e sua Mahavishnu Orchestra.
Esse ballet atraía um público jovem inédito nem sempre acostumado a espetáculos de Dança. O apelo da música e o choque de ver uma companhia de bailarinos maravilhosos dançando ao som de guitarras elétricas com uma forte levada de jazz-rock - MacLaughin tocara com Miles Davis em memoráveis trabalhos do início dos anos 70 - fazia daquela obra uma visão comunitária de encorajamento e esperança para aquele momento.
Era o período da ditadura militar e a arte brasileira funcionava como grande válvula de escape e formadora de opinião pública, algo que os militares nunca souberam como manipular, levando sim, estes, vários dribles de estrelas como Chico Buarque, Milton Nascimento e Elis Regina, que continuaram colocando a boca no trombone, para agonia e surdez dos mais desavisados: quem tivesse ouvidos para ouvir, que ouvisse!
A impressão que se tinha ao deixar o teatro é de que algo precioso acabara de acontecer e por alguma dádiva divina aliada à sorte você tivera a honra de presenciá-lo. A coreografia tratava de um tema universal onde se podia ler nela tanto a Torá quanto a Teoria da Caverna de Platão. Apocalipse fazia sentido em qualquer lugar do planeta, poderia ser apresentado tanto num grande teatro da Europa quanto numa esquina obscura de Calcutá: sua mensagem era um código cifrado numa comunhão eucarística de seres humanos em busca de luz!
Voltei sozinho ao teatro mais duas vezes para ver de novo aquele ballet que decididamente movimentara algo dentro de mim. Jovem de 18 anos, metido num blue jeans e movido a rock'n'roll, Apocalipse soara para mim como uma trombeta sinalizando a futura queda do Muro de Berlim, pelo menos de alguns tijolos do meu próprio muro. E desde então o nome Victor Navarro ficou marcado em meu coração como uma tatuagem impressa a ferro e fogo.

Fui para Petrópolis em 1986 estudar com Victor, movido por minha paixão pelos seus ballets. Estabelecido naquela cidade e financiado pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro com uma troupe de dezenove bailarinos, Victor era um anjo de luz entre demônios dançantes. Dentre eles, alguns grandes e queridos amigos: Robson Rosa, Claudio Bernardo e Chica Timbó. Uma alcateia dionisíaca de feras. Claudio Bernardo e Robson Rosa foram os bailarinos brasileiros que mais me impressionaram em cena. Dois deuses. Faces antagônicas de uma mesma moeda cearense. Robson era filho de pais muito pobres. Sua mãe era faxineira. Quase sem formação escolar nenhuma, Robson viu a chance de fazer algo de sua vida ainda adolescente, quando a Prefeitura de Fortaleza inaugurou na cidade nos anos 70 uma unidade do SESI e contratou professores do sul do país para lecionarem por lá. Jane Bauth e Dennis Gray estavam entre os docentes. Ele começou praticando saltos ornamentais, tornando-se destacado na modalidade e ganhando várias competições desde o início. Mas logo deu-se conta que a Dança poderia dar-lhe mais destaque. Fez bem. Robson era um animal no palco, talhado para a Dança. Sem ter um rosto belo, sua presença poderosa em cena transformava-se num duelo de beleza e epifania. Era mágico. Dançando, ele se transformaria no que quisesse. Um titã.
Vindo para o sul ainda jovem, Robson não tardou a fazer parte do Corpo de Baile dos Teatros Municipais do Rio de Janeiro e São Paulo. De lá ele partiu para a Bélgica, ingressando na célebre Mudra, escola de Maurice Béjart em Bruxelas e apêndice do Teatro Royal de la Monnaie, onde Béjart manteve por décadas seu avant-garde Ballet do Século XX em atividade explosiva constante.
Sem muitas expectativas de conseguir um lugar na Companhia, formada por bailarinos virtuoses belíssimos de diversas nacionalidades Robson voltou para o Brasil com uma bagagem profissional excelente e falando francês. Ingressou de imediato no Ballet Stagium mas seu comportamento irrascível tornou curta sua carreira na Companhia de Márika Gidali e Décio Otero. Foi neste momento que ele retomou contato com Victor Navarro que estava formando uma companhia de dança com apenas seis bailarinos e montando uma obra prima chamada "Paixão". Logo, Chica Timbó, amiga pessoal e conterrânea de Robson, deixaria também o Stagium para consternação e histeria de seus diretores, integrando com grandeza a pequena Companhia de Victor. 
Quando Navarro foi ao seu apartamento convidá-la formalmente para integrar seu grupo, levou para ela uma rosa cor-de-rosa. Eu vi essa rosa sem fim, Chica a manteve intacta por dias junto à sua cabeceira de prima ballerina assoluta! Dia após dia a rosa parecia desabrochar para uma nova vida. Magias de Victor Navarro!

Em Petrópolis, lia minhas poesias para Robson e ele dançava para mim no grande quintal da casa onde morávamos. Robson tinha um temperamento difícil, podia ser inesperado! O que mais me inspirava nele era sua fibra, sua coragem e determinação. Robson era um bailarino puramente instintivo, sem grandes enciclopédias em seu background, com uma musicalidade natural e solar e quando ele subia num palco, não se olhava para mais ninguém. Entre nós sempre rolou uma amizade terna e compreensiva. Eu o admirava abertamente, o que era sem dúvida, meu cartão de visita dourado para seu coração de artista indomável.
Só vi Robson dirigir-se com reverência a uma única pessoa nesta vida: Victor Navarro. E levando um pito por conta das roupas malucas e descaradamente sado-masoquistas com que ele se armara para um dos ensaios. Victor não queria que usássemos muita roupa. Mesmo nas aulas a maioria dos meninos usava apenas suporte e as meninas, um leotard cor da pele. Nem bolsas na lateral da sala ele gostava de ver: "Eu só quero ver os corpos", dizia, sentado em seu banco de madeira com a placidez de um mestre zen. Olhos de um azul mais que profundo vasculhando céus ao seu redor... Tudo à sua volta eram nuvens...
Robson estava então de volta a Petrópolis, depois de uma mal sucedida temporada na Companhia de Victor onde ele andara aprontando das suas. Demitido, voltou para o Ceará e notícias mentirosas começaram a circular nos meios de Dança em São Paulo. Diziam absurdos. Nunca perdi a esperança de revê-lo. Robson ficou alguns meses por lá, em seu exílio de criança mal dormida, gerando sonhos que não dormem.
Foi nesse meio tempo que Victor ampliou sua Companhia adicionando treze bailarinos e remontando seu repertório completo. Uma gama de ballets inspiradíssimos que iam de suas coreografias para o Ballet da Cidade de São Paulo, Ballet do Teatro Castro Alves de Salvador e Cisne Negro Companhia de Dança, uma das raras companhias particulares ainda em atividade na capital paulista.


Victor chegou a São Paulo vindo de Petrópolis no final de 85 com sua troupe de 19 bailarinos que pareciam emergir de um filme de Luchino Visconti para uma apresentação de dois dias no Teatro Sérgio Cardoso. Guardei por anos as entradas para os dois dias em minha carteira e elas afinal se desmantelaram em pedaços o ano passado. Queimei os restos de papel porque não tive coragem de jogá-los. Estrelas de fogo... Um assombro! O evento chamou-se “Era uma vez...” Um abalo sísmico transformado em contos de fadas. Finalmente eu via “Paixão” outra vez!
Robson fora substituído. Em seu lugar, Claudio Bernardo assumia o papel de deus Dionísio. Não havia cisão, tudo era um prolongamento de mapas estelares, rumos que seres humanos não traçam, a arte congrega involuntariamente seus próprios telescópios. Nós somos convidados a olhar com olhos puros de criança, mais nada... Não possuímos padrão para tais lentes!
Nunca imaginei que alguém neste mundo pudesse dançar aquele ballet que não fosse Robson. Mas Claudio se encaixava como uma luva nele. Perfeito. O outro lado da moeda cunhada a ouro e prata. Magias de meninos semi-deuses. Condão navarro de coreógrafo mais que divino!
Belíssimo em cena, Claudio era um deus descido do Olimpo. Os traços latinos de Claudio Bernardo ressaltavam sua sensualidade de príncipe mais que visceral. Chorei de emoção o espetáculo inteiro! Bebi Paixão com a mesma sede insaciável de sempre. Eternamente embriagado de sua beleza entorpecente. Que loucura!
Claudio havia deixado no seu posto de estagiário no Ballet Stagium, papéis menores e medíocres que lhe reservaram enquanto esteve por lá. Décio e Márika foram dois cegos, literalmente, não sabendo como aplicar em seus trabalhos os talentos magistrais e brilhantes de Robson Rosa e Claudio Bernardo. Mas esse era um condão reservado a outro Mago!
Claudio tem hoje uma Companhia de Dança contemporânea na Bélgica e desenvolve uma carreira internacional equilibrada e de muita qualidade, fruto de uma formação esmerada e sensível. Vindo de uma família calorosa, sempre teve dela o apoio e encorajamento para seu talento excepcional. E sempre soube como fazer uso inteligente de suas vantagens como artista e de sua musicalidade estupenda!
Robson partiu deste mundo em 89. Talvez tivesse decidido virar constelação definitivamente. Dois destinos, duas estrelas que passaram brilhando pelas mãos abençoadas do grande artista que é Victor Navarro. 
Minha página no Facebook está aberta ao público. Há algumas postagens sobre a recente remontagem de Apocalipse para o Ballet da Cidade de São Paulo, que convidou Victor para revivê-la. Postei fotos de alguns de seus ballets, principalmente "Paixão", seu trabalho mais 'rock', com música de Brian Eno e David Byrne. Não havia quem não quisesse dançá-la! Um delírio! Foi Paixão que me levou até Petrópolis. Uma dureza! Mal tínhamos dinheiro para comer. Num dia de vacas magras, todas já rumo ao destino do brejo, Robson roubou tomates e bananas de uma quitanda e fez uma salada maravilhosa que comemos feito uma iguaria. São pequenos pecados que Deus abençoa quando a gente é anjo perdido!
No meu último dia em Petrópolis, a Companhia havia descido para o Rio para uma apresentação no Teatro Villa-Lobos. Robson ficou comigo até a hora de eu ir tomar meu ônibus para Sampa. Naquela tarde ele me disse que a única coisa que ele tinha era seu corpo. Que não sabia escrever ou pintar como eu. Olhei para seu rosto triste, sorrindo dentes perfeitos como um colar de pérolas... Sempre havia um sorriso em seu rosto de menino! Sentado no chão, com as pernas estendidas, as pontas dos dedos de seus pés, quando esticados, tocavam o solo feito um compasso amolado para a vida! A vida afiada que Robson soube manejar com a destreza de um esgrimista. Então ele me disse que algum dia ainda seria uma escultura. Eu lhe disse que ele já era, uma escultura mais que viva.
Jamais o vi queixar-se de seu destino, de sua luta, de seus papéis queridos perdidos para outro bailarino tão talentoso quanto ele. A vida era um assunto urgente, sem tempo para que olhasse para trás.
Nunca quis saber como sua história terminou. Sempre penso nele. Gostaria que sua alma encontrasse a paz que ele tanto buscou na Dança. Vem à minha lembrança o escorpião (seu signo) que tinha tatuado em seu lóbulo direito com um brilhante preso à sua garra dianteira. Era assim que o via, arisco e indefeso, ainda que mostrasse o oposto disso muitas vezes. Sua passagem meteórica por este planeta deixou marcas profundas no coração dos que o conheceram, visões de apocalipses naqueles que viram suas performances reluzentes. Sempre tive dele o carinho e a cumplicidade de um igual. Comigo ele compartilhou incondicionalmente seu brilho impagável de estrela em altos abismos.
Todo Meu Amor. No Dharma. C.

  


domingo, 12 de janeiro de 2014

Dragões, flores e incensos



Ein Karem, 14.01.14


Suas cartas são como incensos, alento que permeia todo espaço interno. Ainda não me senti devidamente íntegro para responder intencionalmente suas cartas. De qualquer forma me sinto em dívida quando abro o e-mail pela manhã enquanto a água esquenta para o café e encontro uma mensagem sua. Abre minha semana com chave dourada! Fico na precisão de responder, como quem tivesse um bolo assando. 

Os verbos... Hoje tivemos a última das bynianim. Pual. Tenho mais um mês e meio de aulas. Então esse módulo termina. A próxima etapa só tem aulas noturnas. São três dias na semana. Vamos ver o que se dá. Quero fazer. Sem dúvida! Mas tenho que tratar de sedimentar todas essas formas verbais na minha mente. O método é preciso. Ele se cristaliza. 
Há um projeto de ir a um museu de Adoniran Barbosa em pleno kibutz israelense, numa região desértica, em Neguev. Quero ver se vou nesse lugar no próximo Sábado ou o mais rápido que puder.
Um dia, estava dentro de um ônibus e vi Adoniram Barbosa na esquina da São João com a Ipiranga. 1975. Alguns anos antes de Caetano compor "Sampa" e imortalizar de vez a esquina. Era Adoniran, sem dúvida alguma. Seu chapeuzinho marca-registrada e o rosto grave-sereno. 
A publicação da minha aquarela deu-se pelo fato de que ela foi selecionada pela revista da escola Gurdjieff da qual faço parte há tantos anos. Agradeço de coração seu enaltecimento mas não sou artista internacional não, Chella Querida... Sou, antes de mais nada, um artista interno. Nunca me sinto bem dentro das calças dizendo que sou artista. Mas o fato é que nunca consegui viver sem criar. Não por decisão voluntária. É prestação de serviço divino. Sei apenas que comigo isso se dá dessa forma. Ser anônimo, quase disfarçado, completamente retirado daquilo que poderia se chamar 'meio literário'. Mesmo a poesia que escrevo não tem valor algum para o que está em voga. Eu seria considerado um alienígena arcaico tentando a santidade. Minha poesia trata das coisas do espírito. Para mim é só o que conta. Criei uma arte para poucos. Quando olho meu percurso, vejo que certamente não é algo acidental. Há algo ali. Mas viver o momento é a melhor aventura. A porta mais possível. Quero apenas cumprir minha missão. A Arte tem seus propósitos. Ela é uma entidade viva dentro de mim. Não tenho dúvidas quanto a isso. Sei bem o quanto ela dialoga comigo e lateja viva no meu sangue de jagunço. É ela que mantém meu coração batendo seu ritmo de cristal. Paralelo a isso há a busca espiritual, a qual também nunca busquei deliberadamente. Nunca tive poder de decisão sobre nada disso. A gente não escolhe nada. Somos escolhidos. Mas tem que ficar piano piano. Toda a graça só me sinaliza mais humildade. Lidar com essas grandes forças me coloca no devido lugar. Também é grande saber ser pequeno. Vivo universos nas minhas moléculas. Mas é uma oração em silêncio. Ela cabe na palma da sua mão. E pode abraçar um céu inteiro.
A grandeza desse nosso momento aqui, por exemplo... Quer coisa mais divina que isso? Não é exatamente o mesmo que ouvir Marin Marais? Ou estar diante de uma tela de Van Gogh? Ou entrar pela primeira vez em Santa Sofia, em Sultanahmet? A grandeza é a mesma. As impressões podem ser mais retumbantes. Mas a alma que está ali tem a mesma quietude ampliada em 360 graus. Uma aura que vira pelo avesso. O contrário dessa coisa chamada 'self', que de você mesmo não tem é nada, só carimbos pálidos que a nossa programação tenta perpetuar a duras penas. Para dar em nada. 
Só o que resta é a grandeza do espírito. Essa não conhece tempo nem espaço. Vida ou morte. A linguagem da eternidade é irreproduzível. Por isso os livros sagrados são cantados. 
Minhas cartas a vocês têm o dom de se transformarem em poesia. Nunca sei ao certo o que vai sair quando me sento a escrever. Mas o meu sentir é sempre o mesmo. A marca de vocês dentro do meu ser é feita a fogo. Chia e fumega vapores como as ventas dos animais em dias frios de inverno. Não poderia decifrar, ainda que no espaço de muitas vidas, tanto mistério e tanta benevolência dos deuses. Procurei uma família toda minha infância e errei a porta indefinidamente. Vocês são minha referência mais evidente. É inegável. Mas tão indecifrável quanto um claro enigma. Para esses mistérios, todos os dicionários são obtusos. E eu, aedo iletrado que só sabe cantar. Mais nada. Mas o gosto nas minhas mandíbulas é de epopeias. E meu fio da meada, são contos de fadas em faróis. Que os deuses nos mantenham neste mesmo porto. Grandes navios virão, assim como pequenos pescadores. Tratar de ser luz é o único parâmetro. Todo o restante são trevas exteriores, onde há choro e ranger de dentes. E ali também a luz há de chegar!
Todo meu amor. Seu no Dharma. C.