22.01.14
Olhei
aquarelas não terminadas... Pássaros esperando cores, flores
esperando a textura de madeira e o azul do vaso, romãs aguardando um
prato... estudos de bouganvilles esperando um parto, redemoinho de
água e folhas esperando retoques finais a pincel molhado, desertos
vermelhos aguardando areias... pimentas esboçadas ainda no Brasil
que ardem geografias em minhas saudades...
Li
o texto de R. Musil na Ilustríssima de 12 de Janeiro. Obrigado pela
indicação. Guimarães Rosa sempre uma antena além do tempo! Nunca
li qualquer menção de Rosa a respeito desse autor. Mas Rosa sabia
tudo. Um baque. Quando salvei o texto deletei a figura da mosca. São
clientes indesejáveis quando cozinho. Tenho contas abertas com elas.
Quando vim a ter ao final do texto, arrependi-me de ter banido o
pobre inseto. Uma agonia de Treblinka no mata-borrão. Vida escoando
feito areia sem previsão de pérola alguma. A miséria da humanidade
ou sua luxúria compartilham a mesma fome vazia e insustentável. Faces do mundo indigestas feito cicuta que tomamos sem mastigar...
23.01.14
Meu
gato Ipê Amarelo andou doente também. Sem comer por cinco dias.
Apático, encorujado em sua caixa como um bicho-preguiça, tão
diferente do gato enérgico e cheio de vida que normalmente é. Mas recuperou-se ontem, como parte de um pacote que incluía férias no
Paraíso das Delícias e que uma gripe financiou como ticket.
Tudo
em paralelo prosseguiu. Os Fados que vieram à baila dançar mais uma
canção comigo, eu já partner quase desacreditado esperando a última
valsa... sentado numa cadeira sem fim, disposto a adentrar o salão vazio com sua orquestra à míngua.
Sim,
deu-me o gosto. E parti finalmente para sua redenção. Talvez algum
intervalo que ultrapassei sem me dar conta. Tsunami que de tabela
levou-me além dum Bojador que não sentira em ondas.
A
alegria grata dos seus versos de menina ecoando sede verde em meus
ouvidos de piscina. Em quatro anos de Seminário não perdi um dia
sequer de piscina. Contra o sol, meus cabelos tinham em suas partes
mais claras, tons esverdeados do cloro a todo custo. Nadei depois à
procura de outros mares.
24.01.14
Estou
escrevendo aos soluços. Um tanto a cada dia. Filho que se cria aos
poucos. Nos vales de Ein Karem as amendoeiras começam a florescer.
Em uma semana estarão completamente brancas. Olhei a amplitude do
Vale Iemenita hoje e adivinhei as cores que virão em neve pelas
encostas. Lembrei de Van Gogh e seus campos iluminados. E de Carlos
Drummond de Andrade e seu inesquecível 'Fala, Amendoeira'.
Um
pequeno recanto chamou minha atenção. Uma construção árabe
circundada por tamareiras centenárias. Ando encantado com os olhos
clínicos que veem em termos de proporções, linhas e cores. Desta
feita meu olhar anda perdido entre árvores e colinas, rebanhos de
cabras perto e ao longe. Berregos e balidos. Em contrapartida, os
"Rückert-Lieders" de Mahler parafraseando a cabralhada aos
sopranos. Amo os Lieders de Mahler. E seus Adágios são desde sempre
o infinito traduzido numa única pétala. A calhar, coloquei agora o
Terceiro e Quarto Movimentos de sua Segunda Sinfonia, Ressurreição.
Mahler que transporta. Portas abertas, ainda que para um amanhecer
cinzento. Mesmo o haver noite justifica a realidade crua e suave do
que é ser dia.
25.01.14
Comentei
com você sobre um livro que estou lendo: The Six Perfections. Uma
leitura atenta, calma, como o degustar lento de um vinho que não
embriaga, antes, elucida.
Uma
grata surpresa foi receber por estes dias o convite de Victor Navarro
para ser seu amigo no Facebook. Esse foi um presente de Olimpos.
Ainda que tivesse visitado sua página várias vezes, jamais me
atreveria a ousar fazer parte de seu círculo de amigos virtuais.
O
fato é que se retroceder no tempo, vejo naturalmente que Victor
Navarro sedimentou em mim tudo o que vim a fazer e como construí minha vida e meu compromisso e envolvimento com a arte. Ele é um fator decisivo para minha luta de homem e anjo.
Vi
pela primeira vez um de seus ballets em 1976, quando uma amiga de um
Curso Pré-Vestibular me convidou para ir ao Teatro Municipal de São
Paulo, que eu ainda não conhecia. Um programa eclético, que
estudantes recém-saídos do Colégio Equipe adoravam experimentar.
Dentre as peças apresentadas, havia 'Lieders' de Mahler, 'Cenas de
Família', de Oscar Araiz e que Victor dançava no papel de pai e
finalmente, a grande estrela da temporada, 'Apocalipse', com música
de John McLaughin e sua Mahavishnu Orchestra.
Esse
ballet atraía um público jovem inédito nem sempre acostumado a
espetáculos de Dança. O apelo da música e o choque de ver uma
companhia de bailarinos maravilhosos dançando ao som de guitarras
elétricas com uma forte levada de jazz-rock - MacLaughin tocara com
Miles Davis em memoráveis trabalhos do início dos anos 70 - fazia
daquela obra uma visão comunitária de encorajamento e esperança
para aquele momento.
Era
o período da ditadura militar e a arte brasileira funcionava como
grande válvula de escape e formadora de opinião pública, algo que
os militares nunca souberam como manipular, levando sim, estes,
vários dribles de estrelas como Chico Buarque, Milton Nascimento e
Elis Regina, que continuaram colocando a boca no trombone, para
agonia e surdez dos mais desavisados: quem tivesse ouvidos para
ouvir, que ouvisse!
A
impressão que se tinha ao deixar o teatro é de que algo precioso
acabara de acontecer e por alguma dádiva divina aliada à sorte você
tivera a honra de presenciá-lo. A coreografia tratava de um tema
universal onde se podia ler nela tanto a Torá quanto a Teoria da
Caverna de Platão. Apocalipse fazia sentido em qualquer lugar do
planeta, poderia ser apresentado tanto num grande teatro da Europa
quanto numa esquina obscura de Calcutá: sua mensagem era um código
cifrado numa comunhão eucarística de seres humanos em busca de luz!
Voltei
sozinho ao teatro mais duas vezes para ver de novo aquele ballet que
decididamente movimentara algo dentro de mim. Jovem de 18 anos,
metido num blue jeans e movido a rock'n'roll, Apocalipse soara para
mim como uma trombeta sinalizando a futura queda do Muro de Berlim,
pelo menos de alguns tijolos do meu próprio muro. E desde então o
nome Victor Navarro ficou marcado em meu coração como uma tatuagem
impressa a ferro e fogo.
Fui
para Petrópolis em 1986 estudar com Victor, movido por minha paixão
pelos seus ballets. Estabelecido naquela cidade e financiado pelo
Governo do Estado do Rio de Janeiro com uma troupe de dezenove
bailarinos, Victor era um anjo de luz entre demônios dançantes.
Dentre eles, alguns grandes e queridos amigos: Robson Rosa, Claudio
Bernardo e Chica Timbó. Uma alcateia dionisíaca de feras. Claudio
Bernardo e Robson Rosa foram os bailarinos brasileiros que mais me
impressionaram em cena. Dois deuses. Faces antagônicas de uma mesma
moeda cearense. Robson era filho de pais muito pobres. Sua mãe era
faxineira. Quase sem formação escolar nenhuma, Robson viu a chance
de fazer algo de sua vida ainda adolescente, quando a Prefeitura de
Fortaleza inaugurou na cidade nos anos 70 uma unidade do SESI e
contratou professores do sul do país para lecionarem por lá. Jane Bauth e Dennis Gray estavam entre os docentes. Ele começou
praticando saltos ornamentais, tornando-se destacado na modalidade e
ganhando várias competições desde o início. Mas logo deu-se conta
que a Dança poderia dar-lhe mais destaque. Fez bem. Robson era um
animal no palco, talhado para a Dança. Sem ter um rosto belo, sua
presença poderosa em cena transformava-se num duelo de beleza e
epifania. Era mágico. Dançando, ele se transformaria no que
quisesse. Um titã.
Vindo
para o sul ainda jovem, Robson não tardou a fazer parte do Corpo de
Baile dos Teatros Municipais do Rio de Janeiro e São Paulo. De lá
ele partiu para a Bélgica, ingressando na célebre Mudra, escola de
Maurice Béjart em Bruxelas e apêndice do Teatro Royal de la
Monnaie, onde Béjart manteve por décadas seu avant-garde Ballet
do Século XX em atividade explosiva constante.
Sem
muitas expectativas de conseguir um lugar na Companhia, formada por
bailarinos virtuoses belíssimos de diversas nacionalidades Robson
voltou para o Brasil com uma bagagem profissional excelente e falando
francês. Ingressou de imediato no Ballet Stagium mas seu
comportamento irrascível tornou curta sua carreira na Companhia de
Márika Gidali e Décio Otero. Foi neste momento que ele retomou
contato com Victor Navarro que estava formando uma companhia de dança
com apenas seis bailarinos e montando uma obra prima chamada
"Paixão". Logo, Chica Timbó, amiga pessoal e conterrânea
de Robson, deixaria também o Stagium para consternação e histeria
de seus diretores, integrando com grandeza a pequena Companhia de
Victor.
Quando
Navarro foi ao seu apartamento convidá-la formalmente para integrar
seu grupo, levou para ela uma rosa cor-de-rosa. Eu vi essa rosa sem
fim, Chica a manteve intacta por dias junto à sua cabeceira de prima
ballerina assoluta! Dia após dia a rosa parecia desabrochar para
uma nova vida. Magias de Victor Navarro!
Em
Petrópolis, lia minhas poesias para Robson e ele dançava para mim
no grande quintal da casa onde morávamos. Robson tinha um
temperamento difícil, podia ser inesperado! O que mais me inspirava
nele era sua fibra, sua coragem e determinação. Robson era um
bailarino puramente instintivo, sem grandes enciclopédias em seu
background, com uma musicalidade natural e solar e quando ele subia
num palco, não se olhava para mais ninguém. Entre nós sempre rolou
uma amizade terna e compreensiva. Eu o admirava abertamente, o que
era sem dúvida, meu cartão de visita dourado para seu coração de
artista indomável.
Só
vi Robson dirigir-se com reverência a uma única pessoa nesta vida:
Victor Navarro. E levando um pito por conta das roupas malucas e
descaradamente sado-masoquistas com que ele se
armara para um dos ensaios. Victor não queria que usássemos muita
roupa. Mesmo nas aulas a maioria dos meninos usava apenas suporte e
as meninas, um leotard cor da pele. Nem bolsas na lateral da sala ele
gostava de ver: "Eu só quero ver os corpos", dizia,
sentado em seu banco de madeira com a placidez de um mestre zen.
Olhos de um azul mais que profundo vasculhando céus ao seu redor...
Tudo à sua volta eram nuvens...
Robson
estava então de volta a Petrópolis, depois de uma mal sucedida
temporada na Companhia de Victor onde ele andara aprontando das suas.
Demitido, voltou para o Ceará e notícias mentirosas começaram a
circular nos meios de Dança em São Paulo. Diziam absurdos. Nunca
perdi a esperança de revê-lo. Robson ficou alguns meses por lá, em
seu exílio de criança mal dormida, gerando sonhos que não dormem.
Foi
nesse meio tempo que Victor ampliou sua Companhia adicionando treze
bailarinos e remontando seu repertório completo. Uma gama de ballets
inspiradíssimos que iam de suas coreografias para o Ballet da Cidade
de São Paulo, Ballet do Teatro Castro Alves de Salvador e Cisne
Negro Companhia de Dança, uma das raras companhias particulares
ainda em atividade na capital paulista.
Victor
chegou a São Paulo vindo de Petrópolis no final de 85 com sua troupe de 19 bailarinos
que pareciam emergir de um filme de Luchino Visconti para uma
apresentação de dois dias no Teatro Sérgio Cardoso. Guardei por
anos as entradas para os dois dias em minha carteira e elas afinal se
desmantelaram em pedaços o ano passado. Queimei os restos de papel
porque não tive coragem de jogá-los. Estrelas de fogo... Um
assombro! O evento chamou-se “Era uma vez...” Um abalo sísmico
transformado em contos de fadas. Finalmente eu via “Paixão”
outra vez!
Robson
fora substituído. Em seu lugar, Claudio Bernardo assumia o papel de
deus Dionísio. Não havia cisão, tudo era um prolongamento de mapas estelares, rumos que seres humanos não traçam, a arte congrega involuntariamente seus próprios telescópios. Nós somos convidados a olhar com olhos puros de criança, mais nada... Não possuímos padrão para tais lentes!
Nunca
imaginei que alguém neste mundo pudesse dançar aquele ballet que
não fosse Robson. Mas Claudio se encaixava como uma luva nele.
Perfeito. O outro lado da moeda cunhada a ouro e prata. Magias de
meninos semi-deuses. Condão navarro de coreógrafo mais que divino!
Belíssimo
em cena, Claudio era um deus descido do Olimpo. Os traços latinos de
Claudio Bernardo ressaltavam sua sensualidade de príncipe mais que
visceral. Chorei de emoção o espetáculo inteiro! Bebi Paixão
com a mesma sede insaciável de sempre. Eternamente embriagado de sua
beleza entorpecente. Que loucura!
Claudio
havia deixado no seu posto de estagiário no Ballet Stagium, papéis
menores e medíocres que lhe reservaram enquanto esteve por lá.
Décio e Márika foram dois cegos, literalmente, não sabendo como
aplicar em seus trabalhos os talentos magistrais e brilhantes de
Robson Rosa e Claudio Bernardo. Mas esse era um condão reservado a
outro Mago!
Claudio
tem hoje uma Companhia de Dança contemporânea na Bélgica e
desenvolve uma carreira internacional equilibrada e de muita
qualidade, fruto de uma formação esmerada e sensível. Vindo de uma
família calorosa, sempre teve dela o apoio e encorajamento para seu
talento excepcional. E sempre soube como fazer uso inteligente de
suas vantagens como artista e de sua musicalidade estupenda!
Robson
partiu deste mundo em 89. Talvez tivesse decidido virar constelação
definitivamente. Dois destinos, duas estrelas que passaram brilhando
pelas mãos abençoadas do grande artista que é Victor Navarro.
Minha
página no Facebook está aberta ao público. Há algumas postagens
sobre a recente remontagem de Apocalipse para o Ballet da Cidade de
São Paulo, que convidou Victor para revivê-la. Postei fotos de
alguns de seus ballets, principalmente "Paixão", seu
trabalho mais 'rock', com música de Brian Eno e David Byrne. Não
havia quem não quisesse dançá-la! Um delírio! Foi Paixão que me
levou até Petrópolis. Uma dureza! Mal tínhamos dinheiro para
comer. Num dia de vacas magras, todas já rumo ao destino do brejo,
Robson roubou tomates e bananas de uma quitanda e fez uma salada
maravilhosa que comemos feito uma iguaria. São pequenos pecados que
Deus abençoa quando a gente é anjo perdido!
No
meu último dia em Petrópolis, a Companhia havia descido para o Rio
para uma apresentação no Teatro Villa-Lobos. Robson ficou comigo
até a hora de eu ir tomar meu ônibus para Sampa. Naquela tarde ele
me disse que a única coisa que ele tinha era seu corpo. Que não
sabia escrever ou pintar como eu. Olhei para seu rosto triste,
sorrindo dentes perfeitos como um colar de pérolas... Sempre havia
um sorriso em seu rosto de menino! Sentado no chão, com as pernas
estendidas, as pontas dos dedos de seus pés, quando esticados,
tocavam o solo feito um compasso amolado para a vida! A vida afiada
que Robson soube manejar com a destreza de um esgrimista. Então ele
me disse que algum dia ainda seria uma escultura. Eu lhe disse que
ele já era, uma escultura mais que viva.
Jamais
o vi queixar-se de seu destino, de sua luta, de seus papéis queridos
perdidos para outro bailarino tão talentoso quanto ele. A vida era
um assunto urgente, sem tempo para que olhasse para trás.
Nunca
quis saber como sua história terminou. Sempre penso nele. Gostaria que
sua alma encontrasse a paz que ele tanto buscou na Dança. Vem à
minha lembrança o escorpião (seu signo) que tinha tatuado em seu
lóbulo direito com um brilhante preso à sua garra dianteira. Era
assim que o via, arisco e indefeso, ainda que mostrasse o oposto
disso muitas vezes. Sua passagem meteórica por este planeta deixou
marcas profundas no coração dos que o conheceram, visões de
apocalipses naqueles que viram suas performances reluzentes. Sempre
tive dele o carinho e a cumplicidade de um igual. Comigo ele
compartilhou incondicionalmente seu brilho impagável de estrela em
altos abismos.
Todo
Meu Amor. No Dharma. C.