sábado, 19 de setembro de 2020

Sobre Dervixes e Brastemps

 


A Arqueologia dos Santos


Os dervixes circulavam na evolução de seus movimentos e das saias rodopiantes de seus longos vestidos um leve aroma desconhecido e sutil de amaciante de roupas chegava até mim. Quando paravam, harmonicamente sincopados, podia-se até ouvir a goma dos tecidos frigindo suavemente, como se por alguma pérgula suspensa no tempo, flores espiassem a vida ao redor. Pensei nas mãos femininas invisíveis que zelavam por todo esse espetáculo sem qualquer crédito nele.

Era num espaço desativado daquela antiga estação de trens que aquele grupo se apresentava algumas noites da semana, um saguão de arquitetura otomana emoldurado por belos vitrais que fora uma vez a grande sala de espera do luxuoso Orient Expressque saía da Gare de l’Est em Paris com destino final em Sirkeci Train Station, no coração de Constantinopla.

Mantive os olhos fixos no centro do tablado intencionalmente. Queria divisar o conjunto como um todo. Lera em algum lugar que a cerimônia dos dervixes imitava o circuito dos planetas ao redor do sol mas não pude interpretar nenhuma revelação no que vi. O momento era simplesmente um céu a ser brilhado, independente da hierarquia que a compreensão alcançasse ou que outras percepções pudessem decifrar. Assim, transportado pela música imaculada da pequena orquestra, permaneci durante toda a apresentação.

Os supostos dervixes chegaram numa espécie de intervalo, depois de os músicos executarem algumas peças de seu sóbrio repertório para uma plateia composta por algumas poucas dezenas de pessoas. Artistas excelentes, tocavam com maestria e propriedade e neles transparecia esculpida uma aura de santidade, fosse através de traços marcantes e olhares profundos ou das barbas longas e completamente brancas que emolduravam as faces de alguns deles, parecendo todos cinzelados da mesma pedra.

Ao contrário dos velhos músicos, os dervixes pareciam forjados às pressas na primeira bigorna disponível. Todos jovens, em roupas comuns e mochilas às costas, adentraram a sala desativada da estação no entreato, passando apressados e ruidosos por trás da fileira de cadeiras onde eu estava e sumiram num corredor que conduzia a um suposto vestiário.

Novamente os músicos se posicionaram em seus lugares quando súbito, ouviu-se o barulho de alguma coisa que caíra inesperadamente no cômodo adjunto, onde os dervixes se paramentavam.

A música começou. Um a um os jovens entraram para o início da apresentação mas ainda visivelmente transtornados pelo incidente ocorrido ainda há pouco. A custo alguns deles continham o riso.

Isso também desviou minha atenção a princípio mas foi determinante na resolução de não me distrair olhando para nenhum deles em particular tentando detectar quando eventualmente entrariam no estado que todos imaginamos que os dervixes acessem num determinado ponto da cerimônia. E foi produtivo no sentido de trazer a vaga noção – muito vaga, eu diria – do que poderia ser o verdadeiro ritual de uma confraria.

Voltei para o hotel em silêncio, andando pelas ruas de Sultanahmet naquele novembro frio e chuvoso, admirando a força excêntrica das construções alinhadas em pergaminhos de formas misteriosas, onde cada pilastra parecia guardar segredos calados ali para sempre. Impossível não associar essa atmosfera com a memória de Gurdjieff, que pensou seriamente em estabelecer ali o seu ‘Instituto para o Desenvolvimento Harmonioso do Homem’, o quartel-general que futuramente serviria de base para o trabalho com seus estudantes.

Em 1908 Piotr Ouspensky viu os dervixes pela primeira vez em sua visita a Constantinopla numa legítima tekke, espécie de centro ou escola onde eles se reuniam para suas cerimônias. E doze anos depois, em 1920, voltou já acompanhado de Gurdjieff, a quem conhecera em Moscou pouco antes da Revolução Russa e de cujo círculo interno de estudantes começara a fazer parte desde então.

Mas ainda que reconhecesse as mesmas qualidades excepcionais na seriedade do trabalho ainda preservado naquela tekke, percebeu também que a cidade perdera em essência muito de seus atrativos originais e na verdade profundas mudanças começariam a acontecer a partir de então.

O genocídio armênio ocorrido entre 1915 e 1923 no final do decrépito Império Otomano, era um dos sinais visíveis dessa grande descendente que se pretendia uma grande reforma étnica e cultural.

De minha parte, não alimentara nenhuma expectativa quanto à legitimidade de qualquer performance que eventualmente viesse a assistir, já que o sufismo está proibido na Turquia há muito tempo, o que torna praticamente nula a possibilidade de que a tradição dos dervixes tenha permanecido imaculada diante de tantas restrições e perseguição desde o governo de Mustafá Kemal Atatürk, primeiro líder da nova República da Turquia que assumiu sua presidência em 1923, comandando ferrenhamente toda a modernização e ocidentalização do país até sua morte em 1938.

Em 1925 os dervixes foram definitivamente proibidos de realizarem apresentações públicas e por decreto governamental tiveram todas as suas tekkes fechadas. A Ordem Mehlev permaneceu enquanto instituição e sua sede em Konia, terra natal de seu fundador Maulana Rumi, foi transformada em museu.

O processo de modernização da Turquia retirou de sua cultura toda a influência que pudesse estar vinculada às antigas tradições religiosas e interferiu dentre outras coisas, até mesmo na indumentária das pessoas. A abolição do alfabeto árabe em 1928, substituído pela adoção de caracteres latinos na escrita turca, também provocou profundo ressentimento na comunidade islâmica mais ortodoxa, que já perdera vertiginosamente seu forte poder de influência teocrática no código de leis da nação.

Ainda assim, passado tanto tempo, as ofertas de apresentações de inúmeros grupos que se auto consideram autênticos Mehlev, espalham-se em cada esquina de Sultanahmet.

A Verdade não se dilui. Mas o tempo inventa variantes daquilo que num certo momento foi um trabalho vivo, mesmo que em sua expressão externa. É o efeito e o modus operandi comum na história das civilizações. O que resta é uma pálida miragem que não pode refletir o sentido real de um advento que serviu um propósito muito distante da lei das aparências e dos dogmas. O surgimento das grandes religiões comprova isso. Não é possível recriar as mágicas presenças de personagens notáveis como Jesus, Maomé, Abraão ou Moisés. As proporções tectônicas que se abalam quando eles surgem e empreendem seu trabalho de ação, movendo céus e montanhas, se arrefecem irreparavelmente a partir do que é feito logo depois de milagrosamente cumpridos seus papéis históricos ou espirituais.

Nós... herdamos os estigmas, o que não exclui as inúmeras possibilidades de uma potencial ressurreição sempre ao alcance.


E talvez pela vida exclusiva do próprio texto e de suas leis misteriosas, muito da pesquisa ao escrevê-lo também revelou ariadnes em seus labirintos.

Assim, vim a descobrir que em Akko existiu uma confraria de dervixes da Ordem Shadili, estabelecida pelo tunisiano Sheikh Ali Nur al-Din em 1862.

Ele teve um sonho com Abraão ou com o profeta Jonas, os relatos variam, quando fazia sua peregrinação a Meca em 1850, para que viesse a Akko e fundasse aqui uma tariqa.

O lugar, não muito distante daqui, está preservado, teve reformas relativamente recentes e é possível visitá-lo. Não sei da atividade atual da confraria. Na guerra de 1948 seu centro foi transferido para Beirute e posteriormente para Aman. O lugar é considerado sagrado pelos sufis não apenas pelo que abrigou durante certo período de sua história mas também pelo fato de manter em seu solo os túmulos do Sheikh Ali Nur, de seu filho e de seu neto, sendo que as cinzas deste último foram trazidas de Aman em 1981 pelo Sheykh Ahmad al-Yashruti, bisneto do Sheikh Ali Nur e com o consentimento do estado de Israel.

E procurando a localização da tariqa no google map, me deparo com a sinalização de um túmulo sagrado (um maqam), este à beira-mar e muito próximo de minha casa, lugar que sempre me intrigou pela falta de informação disponível, fosse por uma placa ou lápide.

E aqui a história retrocede ainda mais no tempo. Considera-se que ali estejam os restos mortais do Sheikh Izz ad-Din, morto talvez durante o grande Cerco a Akko na Terceira Cruzada, em 1191.

Não há qualquer outra menção histórica a ele disponível. Mesmo o título de ‘Sheikh’ consta apenas nos mapas dos registros do Mandato Britânico na Palestina, diferente do Mandato Francês que cita apenas o nome Izz ad-Din sem qualquer outro título ou crédito. Teria sido um santo? Um guerreiro? O enigma permanece, ainda que a água do tempo dilua tudo desde a primeira lavagem.

A santificação e a luta, no entanto, prevalecem na continuidade dessa guerra inevitável de nervos. O ouro de nossa batalha é conquistado dia a dia e não há espólios. Os anjos guerreiros também não compartilharam suas armas. Muitas vezes sequer deram-se a conhecer. O anonimato foi sua vitória silenciosa.











Alinhavos

 


Por uma questão de tempo e espaço, redes que invariavelmente se confundem, as percepções sobre você vêm até mim como leves sussurros. Imagino tudo o que você está vivendo esses dias, assim como você também tem noção muito clara dos meus.

Entendo seu silêncio atual. É assim mesmo. Eu também não encontro muito expediente para falar ou atender telefonemas. Não tenho o que dizer. E não gosto de atender à curiosidade fútil de quem pergunta como estou conseguindo sobreviver a esses tempos. Estou. Nem mesmo sei como, mas estou.

É dispensável dizer o quanto tudo é estranho. Irreal. Não sabemos dizer mais os nomes das canções. É difícil sintonizar o amargo dos dias com o mel que uma vez correu tão livremente. O tempo é de espera. Enquanto isso, tudo entra em colapso à nossa volta. Como manter a órbita ao redor daquilo que pulsa irremediavelmente quando a sombra irrecuperável do que ficou para trás parece uma estação vencida, como um coração reverberando ecos do que já não está.

O fato é que tudo parece afirmar a presença constante do tempo como um elemento frio de gravidade, e que jamais senti tão longo. Coisas que me pareciam tão recentes, ainda que remotas, hoje transparecem por trás das máscaras de proteção como verdadeiros dinossauros de outras eras. Memórias ganharam séculos em suas pandoras. A vida parece ser longa demais! Cansa. Sinto que envelheço inevitavelmente a cada dia como nunca antes. Mas lá no fundo existe paz, uma paz inexplicável.

Pela janela ouço o mar em noites bravias cantando ondas independentes nas venezianas fechadas. Mais um verão que se esvai em areia de ampulheta.

Pensei seriamente em revisar meus textos e tenho adiado essa tarefa por não saber ao certo o que restará depois de tudo. Tenho controvérsias desde os primeiros versos e mesmo que hoje ninguém leia poesia, ainda é o que me justifica e que definitivamente permanece.

...

Ontem mesmo iniciei minha revisão. De cara os dois primeiros poemas transformaram-se num só. E eles se complementam admiravelmente. Estou trabalhando primeiro nos arquivos que tenho em ‘documentos’. Depois eu decido o que fazer. Envio este e-mail curto assim mesmo. E continuarei na sequência. Para não me perder nos calhamaços onde começo a enveredar por outras vias para não raro me encontrar depois num mato completamente sem cachorro.

Há tempos estou com vontade de lhe escrever. Só para estar perto um pouco, nas entrelinhas, como quem costura uma colcha de retalhos para dormir em seguida nos quadrados que finalmente se juntaram depois de tantas estórias independentes, jurando de pés juntos que os quebra-cabeças são exatamente isso: uma resposta cínica ao destino disperso daquilo que sempre esteve destinado a ficar próximo. Acho que a gente guarda lá no íntimo as costuras de reserva feito asas de condão. Os passarinhos alinhavam agora o lugar que cegamente as agulhas transpuseram antes.

Só restaram voos. O resto é céu pra contar a estória... 

quinta-feira, 2 de junho de 2016

Os lábios incandescentes de Lady Day


Akko, 02 Junho 2016

Ri Querido

Fui para a Ulpan hoje pensando no seu e-mail que li logo de manhã. E tudo o que penso sobre Billie Holiday ao longo desses anos se fortalece e solidifica. Na verdade, sou um típico exemplo de alguém fascinado e cristalizado pelas interpretações magistrais dela. Até hoje, depois de ler praticamente tudo o que me caiu nas mãos sobre ela, ainda fico embasbacado com a obra que construiu em apenas vinte e seis anos de carreira artística. E tudo isso embalado por uma vida tumultuadíssima, cheia de tragédias interiores e desencantos que poucos suportariam de pé. Ela foi até onde deu! Depois, simplesmente evaporou!
A diferença é que Billie, além de ser uma pilantra de marca maior, era mais um músico que simplesmente uma crooner de jazz. E ela era antes de mais nada uma negra atrevida, vivendo numa América besta, preconceituosa e quadrada e peitando lindamente os melhores músicos de jazz da época com aquilo que ela mesma chamava de 'a minha merda de voz'. Mas que voz! Meu pai sacramentado! Um timbre metálico inigualável que ela explorava até as últimas consequências para que pudesse soar como um trompete e que você uma vez tão acertadamente qualificou como surrealista. Nunca pude encontrar um adjetivo mais adequado e exato para o mistério que sua voz sempre exerceu sobre mim.
É preciso entender Billie também como mais um dos caras da orquestra. Ela não fazia de jeito algum aquele modelão de chegar depois de todo mundo e tomar seu lugar de estrela junto ao microfone. Nada disso! À parte mijar de pé, acho mesmo que ela fazia de tudo junto com eles! E era como um músico entre os músicos que ela era reconhecida. É evidente o clima de adoração que eles lhe devotavam. E vamos lembrar aqui sua beleza estonteante que seduziu quem quis e mais lhe interessou, de Orson Welles a Tallulah Bankheads! Sem contar que Billie passou meia Holywood na cara! Danada comeu meio mundo!
E era além do mais dona de um senso de humor sarcástico e uma grande criadora de piadas! Imitava quem lhe incomodava, punha apelidos, dizia palavrões como qualquer um deles e era capaz de tomar boas miligramas de heroína como ninguém jamais ousaria. Anita O'Day contou que uma vez se drogou junto com Billie e ficou assustada com a forma como ela preparou seu baque. Talvez não houvesse colher disponível e Anita diz que Billie diluiu a heroína numa lata de sardinhas vazia.
Mas no palco, divina como ninguém e dona de uma elegância fora do comum para uma mulher negra em sua época, era imbatível e distante como uma deusa de ouro e ébano. A audiência se calava completamente quando ela punha som naqueles seus lábios indecentes e que evocavam, no mínimo, um fantástico blow-job de perder o fôlego! Tamanho era o poder que exercia sobre a plateia. Jamais encontrei alusões ao esse fato, mas para mim, tudo o que pôde cantar, seja em gravações ou ao vivo, ela o fez preferencialmente chapada. Se você for maluco o suficiente você percebe isso. E esse é um dos fatores essenciais dessa magia que pega todo mundo.
Ray Ellis, o maestro que ela fez questão que a acompanhasse em 'Lady in Satin', afirma que Billie jamais apareceu em nenhum dos ensaios que ele marcava. Nem adiantava combinar! E quando vinha gravar, ela se trancava no banheiro por um tempo muito grande antes de entrar no estúdio. Em muitas fotos dessas sessões nós a vemos com uma xícara de café nas mãos e que Ray veio a perceber muito depois ser seu conteúdo puro gin, um gosto que talvez ela tenha herdado de Bessie Smith, um de seus ídolos confessos. Ainda assim, as gravações de 'Lady in Satin' são o melhor néctar que ela poderia destilar àquela altura de sua vida. Foi ela mesma quem fez questão de gravar esse disco com uma orquestra. E foi bastante criticada por isso, quase ninguém achava que aquilo daria certo. Era o disco favorito de Lady Day...
Mas Lady Day tinha um ingrediente raro, virtude a que Victor Navarro costuma chamar 'sentido musical'. E já há alguns anos, se nós olharmos atentamente, a música que Billie Holiday vinha fazendo ultrapassara em anos-luz a forma ortodoxa de se fazer e se cantar jazz. Ainda que seu repertório fosse essencialmente jazzístico, o tratamento que ela vinha impondo a esses standarts era algo totalmente inusitado, de uma tessitura e caráter tão legítimos e originais quanto a luz do sol.
O fato é que nos deixou um legado fora do comum, exemplo digno e radiante de um período de ouro da cena musical de seu tempo. Era um momento em que as gravadoras ainda não dispunham do monopólio e das direções que hoje obrigam o artista a conduzir seu trabalho numa determinada direção. Eram os músicos que decidiam o que gravariam. Ninguém poderia sugerir nada para aqueles caras! Isso hoje em dia é raro.
Poucos artistas têm domínio completo sobre o que fazem. Maria Bethânia brigou a vida toda por isso e mudou inúmeras vezes de gravadora por seu irascível poder de decisão. Marisa Monte é outra, diva total que foge determinantemente a essa regra. Por coincidência, ambas são fãs incondicionais de Lady. Marisa cantava Speak Low desde seu primeiro show, o mesmo com que estourou no meio musical do Brasil sem ter sequer um único disco gravado. Mas MM é uma exceção a tudo que já surgiu em MPB desde que o samba é samba.
Viver num país que não é o seu muitas vezes tira seu chão. Por tudo que está envolvido. Principalmente para alguém como eu que tenho uma relação íntima e sexual com meu idioma. Eu procuro sedução o tempo todo quando escrevo. Se meu texto não me comover, se não provocar calor em minhas entranhas, nada feito! De um tempo para cá reduzi o tamanho dos meus parágrafos e percebi que isso soa também como um ritmo de penetração, destila melhor seu prazer aos poucos.
Mas falando como um estrangeiro, como espécime raro das minorias num país ocupado, a referência musical que tenho – tanto do Brasil como de toda a minha bagagem e da qual Billie é sem dúvida alguma um dos carros chefes – é um dos meus maiores suportes, é o que me sustenta muitas vezes e me faz olhar as pessoas de frente como iguais, sem qualquer vantagem delas sobre mim. Nada mal para um lugar onde até mulheres são soldados!!
Hoje, em plena aula de hebraico, tive o insight de que a música é uma forma muito particular de experimentar a Verdade. E é essa veracidade que corre pelas veias em silêncio e que ecoa loucamente por todas as esquinas e sete mares. Do Mediterrâneo ao mar da Bahia. O tabuleiro tem nada mais que um só e mesmo tempero. E traz indubitavelmente, de bonus track, uma camélia presa nos cabelos!

PS.: Gosto demais dessa foto, não só pela forma quase ultrajante como ela caminha e está vestida (repare na flor do vestido!) como também pela expressão de assombro da figura que está ao fundo e que parece alguém surgido diretamente do futuro, um contemporâneo nosso e que não se parece nem um pouco com alguém de sessenta anos atrás.


Eu conhecia um take ou dois dessa gravação que a página de Billie no facebook liberou num certo momento a respeito da guitarrista Mary Osborne (é esse o nome?).  Não vira até agora na íntegra, acho que disponibilizaram recentemente. Os créditos dão a gravação como Julho de 58, um ano antes de Billie se encantar de uma vez por todas, ela, que foi nada mais que puro condão! Billie Holiday é um arquétipo do jazz. Transubstanciação única do gênero. Ela catalizou sem mesmo saber (será?) tudo o que a cultura do jazz representava então e viria depois a representar no futuro. Lady Day será ouvida enquanto o planeta existir, e mesmo depois dele! Ela opera na linha vertical do tempo. Embora insistisse em manter uma vida visível de traços humanos e falhos, ela não era uma pessoa. Era Jazz. E sua Agulha jamais abandonará o vinil da História que gira no Universo Transcendental da Grande Música!

https://www.youtube.com/watch?v=odgHMvESF-U

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Mediterrâneos...


Akko, 13 Abril 2016

Rico Querido, que surpresa linda receber sua mensagem! Correu tudo bem em nossa mudança, mesmo sendo feita em plena lua nova. Já compramos guarda-roupas, cortinas, estantes para os livros, um sofá gostoso e mais algumas prateleiras para a pequena despensa onde ficarão nossas malas, caixas e coisas que não utilizamos no dia a dia com muita frequência.
Hoje foi o primeiro dia em que parei realmente e pude descansar um pouco. Não tinha parado ainda. No final do dia eu tinha o corpo moído mas um trilili de missão cumprida! Igual aula de ballet! Vou amanhã ao hospital para a consulta com o anestesista. Acredito que nessa entrevista a cirurgia já será marcada. Tomara!
Ri, gosto demais daqui. A cada dia me encanto mais! A cidade tem alguns recantos que me lembram demais outros lugares! Não estou muito distante da Cidade Velha de Akko, um lugar especial onde a muralha fica à beira-mar. Há muitos árabes e aqui eles são muito diferentes. A convivência é pacífica e em nada lembra o sentimento opressivo que se vê neles em Jerusalém. Parecem mais em essência.
O Mediterrâneo se transforma no decorrer do dia mudando de cor a todo instante. Há muito vento no apartamento pela proximidade da praia. Do meu quarto dá para ouvir o barulho das ondas quando o mar está muito revolto. Tenho caminhado no calçadão quase todos os dias. Isso tem sido muito legal.
Querido Amigo, claro que senti que você não estava muito à vontade em nossa última conversa. Mas ainda assim pude compreender tudo que você me disse, mesmo aquilo que talvez tenha ficado por ser dito. Rico, o mais importante de tudo é essa liberdade que flui entre nós de forma tão natural. Isso é algo que tenho valorizado mais e mais no decorrer da vida.
Para mim também é claro que construímos uma estrutura que vem de uma outra dimensão de tempo. Assim como você, sou bastante reticente quando se trata de afirmar coisas que não tenho como provar, mas essa é uma das mais raras e adoráveis exceções.
Fiquei muitíssimo feliz pela Tita pensar seriamente em lecionar. Ela tem um potencial enorme como ser humano, o que fará toda diferença quando ela começar a verificar realmente o leque de possibilidades que se abrirá no futuro. Eu acredito demais nela! E a Roberta é alguém que, assim como você, me inspirou sempre um clima de total liberdade. A relação com vocês é algo de uma qualidade única em minha vida. A distância entre nós será sempre um pagamento de aceitação que não pode ser efetuado senão às prestações. Assim foi escrito, assim será vivido!




Uma Páscoa sem Mihal



Akko, 11 Maio 2016


Luciana Querida


Ainda não tenho energia para fazer tudo o que gostaria, mesmo as coisas mais simples como escrever ou estudar hebraico. Mas a cada dia sinto que me recupero mais, como disse a você.
Ainda que tudo pareça tão improvável, sempre é maravilhoso abrir a janela e ver esse lindo mar azul se transformando. Eu mesmo sinto que também estou num momento de transformação. E mudanças sempre são desconfortáveis, é como remar num mar sempre desconhecido, onde nada é garantido, seja tempo, vento ou tempestade.
É preciso abraçar a mudança como a um amor incondicional. Talvez seja a única fórmula para uma receita que deve ser, no mínimo, feita a olho e ao acaso. É ligar o forno e arriscar!
Tirei os ganchos. Meu cirurgião o fez. E então ele me relatou o quanto foi difícil não fazer uma incisão. O estado da vesícula era muito grave. Havia uma inflamação crônica que ele não acreditava. Ele mesmo disse esteve a ponto de fazer um corte externo, mas ainda assim tentou manter a intervenção na laparoscopia e obteve êxito.
Na primeira consulta que tive com ele não lhe pareceu que eu estivesse tão debilitado. Eu não estava tomando nenhuma medicação e não apresentei uma série de queixas que normalmente as pessoas trazem. Ele mesmo chegou a me questionar se eu achava que deveria me operar. Ontem ele relembrou essa dúvida com espanto.
Mas eu sinto que muitas coisas estão mudando no meu corpo, Lu. Mesmo um adormecimento que eu tinha no quadríceps da perna direita está desaparecendo. Outro sintoma favorável (e muito favorável por sinal!) é o alívio que sinto na região lombar da coluna. Nos últimos dias, minhas caminhadas eram sofridas. Sentia as pernas travadas.
Ontem fez apenas uma semana que voltei para casa. Já parece há tanto tempo...
Fui até Ein Karem para pegar minha correspondência. Desci até o jardim da antiga casa. Estava carregado de rosas. Ao jardim, à parte sua beleza irreproduzível, faltava a alegria que permeava nossa vida ali. Senti que para ele talvez nossa perda fosse mais irreparável que qualquer outra coisa. Os três anos que moramos nessa casa foram um ponto alto naquele espaço.
Mas para Mihal o choque de ver-se ali sozinha sem nossa companhia deve ter sido também algo doloroso. Ela decidiu tomar as rédeas da locação e não parece nem um pouco preocupada em acelerar esse processo. Isso sempre foi feito pelo filho dela. Sempre diz que será muito difícil encontrar inquilinos como nós. Por Mihal eu realmente sinto. É uma mulher muito interessante e sempre troquei muita coisa com ela. Falávamos de tudo! Arqueologia, música clássica, poesia, livros, gramática semítica... Um mundo inteiro!
Pra você ter ideia, alguns dias antes de nos mudarmos ela me deu esse bibelô do 'pequeno chinês leitor'. Um gesto simples. Mas quanto me tocou! Ela tinha uma caixa de pratos e outras coisas que gostaria de nos dar mas esse pequeno objeto ela deixou de fora. Já tenho tanta louça!
E foi a única coisa que eu realmente quis! Pela grandeza do gesto e por ter realmente gostado demais dele! E não é que Mihal seja uma pessoa afetuosamente calorosa. Nada disso! Ela é bem germânica! Mas há um lado dela que é amabilíssimo! E a forma que ela tem de contar uma história, o 'timing' de comédia nato que ela possui para tornar o simples algo extremamente engraçado sempre arrancou gargalhadas homéricas de mim!
Quis te contar tudo isso, relatar essa pequena cruz de momento para ter alguma páscoa de ressurreição que seja possível! Afinal, a gente tem que obrigatoriamente passar pela Sexta-feira da Paixão se quiser comer chocolates no domingo, não é mesmo? Que o Logos nos traga sempre a compreensão resignada desse jejum cristão que a prevenção do instinto inventou em dietas caras movidas a bacalhau da Noruega! A gente inventa luxos até mesmo na abstinência!
Fique com todo meu Amor, filha! Muitas saudades e pensamentos sempre repletos de Amor por você! No Darma. C.





terça-feira, 24 de maio de 2016

Purim

Ein Karem, 25 Março 2016

O Purim é uma comemoração que adquiriu ao longo do tempo um caráter tipicamente pueril. É uma festa de alegria e não um feriado religioso, embora celebre uma das muitas libertações do povo judeu de algum de seus muitos jugos, desta vez na Pérsia e tendo como figura principal a rainha Ester, a mesma que dá nome a um dos livros do Antigo Testamento. Soube há muito tempo que o Livro de Ester é o único na Bíblia em que a palavra Deus nunca é mencionada.
A Torá, quando lida nas sinagogas não permite que se pronuncie o nome de Deus (Iavé), e que surge, é óbvio, em muitas passagens de todos os seus livros. Nem mesmo é polido ou respeitável que se diga o nome em situações coloquiais. Pois então, nas leituras religiosas, quando se chega a esse nome impronunciável os rabinos dizem “O Nome”: Ashem. E todos sabem a quem estamos nos referindo. O segundo mandamento, não esqueçamos, pede que não se tome seu santo nome em vão. Ok!
Outras maneiras de se referir a ele é dizer Eloheinu (nosso deus) ou Elohim, ou ainda Adonai (O Senhor). Interessante observar que para os árabes, o nome de Deus (Alá) é o carro-chefe de praticamente tudo o que fazem, um portal por onde tudo começa: “Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso”. Todos os suras do Alcorão começam com essa epígrafe. Proferir o nome de Deus, ao contrário da proibição e reverência sombria dos seus irmãos semitas, para os árabes funciona como um abrir as portas do Paraíso na Terra.
'Fato é que esse ingrediente de alegria é algo bastante raro de se encontrar gratuitamente nessa etnia, estigmatizada no século passado pelas memórias do holocausto e todas aquelas feridas jamais cicatrizadas, o que tornou a cultura judaica algo mais calcado ainda num sentimento premente de injustiça pelo papel que lhes coube de vítimas do planeta, sem dúvida alguma uma das passagens mais sombrias que a história da nossa agonizante civilização pôde presenciar no Kali Yuga.
É costume que no Purim as crianças se vistam com fantasias e os adultos terminaram por adotar de tabela certos trajes ou indumentárias bizarros, o que, a meu ver, funciona também como um respiro de positividade dentro de todo o clima de tensão que tem um país em estado de dominação contínua, onde tudo pode acontecer e a suspeita sobre quem está a seu lado pode fazer com que seu sentido de alerta apite na hora mais errada.
Fui ao Hadassa fazer uma ultrassonografia em pleno Purim. Vi os balconistas dos Cafés que lá existem (é uma verdadeira cidade!) vestidos de uma forma diferente, fantasiados ou maquiados de maneira engraçada... Purim!
E na recepção da sessão de ultrassonografia não era muito diferente. Me chamou a atenção uma mulher loira com um batom carregado, muito maior que sua boca e que surgiu de uma das salas onde antes se ouvia um estalar quase estridente de várias gargalhadas. As pessoas na sala de espera se entreolhavam e conferiam as horas...
Ela parecia alguém muito leve, uma mecha azul num dos lados dos cabelos combinando com um belo par de olhos no mesmo tom. Mas os olhos eram capítulo à parte. Eu diria que só a Tia Anastácia na sua provável miopia poderia desenhar cílios daquele tamanho. E haja Emília que piscasse aquilo tudo!
Entreguei minhas guias de requisição e meu cartão da assistência médica. Trouxera um livro comigo para eventuais salas de espera mas decidi que o melhor mesmo era sonhar com o cinammon roll quentinho e meu capuccino que o 'Aroma' faz tão bem e que eu estava pronto para degustar em minha abstinência de leite das últimas semanas, só pra expurgar minhas saudades!
Opa! Chega minha vez! Claro que meu nome é pronunciado da forma mais mequetrefe e variável possível mas eu tenho tempo de me recuperar do susto e entender o número da sala. Caminho até lá.
Surpreeeesa! Adivinhe quem está me esperando? Ela mesma. Seu nome é Sílvia e ela é argentina. Em Israel desde 82. É então que olho para ela, já deitado e com a camisa levantada, e vejo o imenso chapéu de chef que ela ostenta sobre os cílios!
Simpática, a danada! Ela me aplica uma pomada tão gelada quanto o clima de hospital que me ojeriza. Mas com ela tudo é quase à milanesa! E trago o pouco espanhol que adquiri nas leituras ocasionais porque o inglês dela é de doer! Mas nos entendemos bem e tagarelamos à beça, bons oriundos do terceiro mundo que somos e parte feliz da seleta minoria que representamos nesse sagrado Estado de Israel! Deus me defenda, pronunciando ou não seu santo nome em vãos, pelas paredes que sempre têm ouvidos. Mas ainda assim ela me diz em carochinhas quando perguntol: 'Estoy mui mal?'
- 'Não, tudo está bem mas sua vesícula está engruvinhada de tantas pedras. Tem que fazer cirurgia!'
Ela ri muito da coincidência por eu ser chef e ela estar no “comando da cozinha” nesse dia. E ela maneja meu corpo sobre o divã como se eu fosse o mais suculento dos bifes! Carne brasileira!
Tudo termina e ela sai para imprimir meu exame enquanto enxugo o creme que ela me passara no abdômen.
Voltei para casa depois do 'Aroma'. Meu Purim dos textos do Navarro foi a arrematação final para as duas pinturas de Masaccio que terminei para o blog 'Arte: Significados e Símbolos'. Fiz um almoço interessante, couscous marroquino de legumes e uma sopa vegetariana que levava depois de batida: ervilhas frescas, missô, alho moído, cebola e salsa. Mais Victor Navarro durante a tarde.
Assisti uma das reuniões inspiradoras de Dan no web e fui tarde para a cama. Ajeitei minha almofada no chão e pus o xale grosso de yaqui nas pernas para a última sessão do dia. Ainda é frio à noite.
Um sentimento leve da mão divina sobre minha cabeça, sempre a contar piadas quando o destino é sísifo, percorre como um novo ingrediente todo o final da meditação. Eu termino a sessão: Corpo, fala e mente.
E no travesseiro, a imagem de Sílvia com seu chapéu de chef flutuando branco na serenidade azul de seus olhos, faz do meu momento um tempero em brisas mais que suficiente para uma boa noite de sono. Em borrados batons, Emília sorri seus armarinhos...
Todo Amor. No Dharma. C.




Pedras Rolantes



Akko, 3 Maio 2016

Queridas Filhas e Irmãs

O hospital foi uma experiência mística, um rito de passagem. Foi uma cirurgia difícil! Segundo Dr. Amog, o cirurgião mais linha dura que já vi, até a raiz da alma, foi muito difícil. Normalmente é um procedimento que toma uma hora e um quarto no máximo. Fiquei duas horas na mesa. Não precisei receber nenhuma incisão, ficou tudo mesmo na laparoscopia. Três furos do lado direito mais um dreno extra porque o fígado foi um pouco ferido no decorrer dos esforços e eu precisei andar dois dias com aquele apêndice estranho. Por isso não me liberaram ontem, como estava previsto. 
Minha vesícula estava congestionada de pedras. Rolaram todas morro abaixo!!! Estou com os beiços um pouco machucados por conta da entubação que eles fazem para estufar a vítima e poderem trabalhar com as câmeras e os aparelhos sem qualquer outro atropelo que não seja a própria!
Fiquei num quarto sozinho e tinha uma vista linda das colinas de Ein Karem para olhar da minha cama de convalescente feliz! Comprei um livro de contos de Anton Tchekov para me ajudar a passar o tempo. Depois me lembrei que Tchekov também fora médico, assim como meu amado Guimarães Rosa.
Hadassa é um hospital muito antigo, um conjunto enorme de edifícios que consegue ser ainda maior que o Hospital Sírio-Libanês em São Paulo. Parece uma cidade! Tem de tudo lá dentro. Hotel, shopping com várias lojas e praças de alimentação e padarias que fazem pães e croissants deliciosos cujo aroma inunda completamente os corredores da entrada principal. Há uma sinagoga também com vitrais lindos de Marc Chagall. Um dos pátios internos está sempre chapiscado de andorinhas em voos rasantes.
Quando estava indo para a sala do pré-operatório, já na cadeira de rodas e com aquelas saias ridículas que eles te colocam pra você não ter que fugir de bunda de fora o primeiro pensamento que me veio foi a Maga me dizendo: 'Meu bem, não tem medo não que daqui pra frente eu vou estar o tempo todo com você!'
Logo depois da operação me aplicaram uma injeção de morfina para aliviar a dor. Não sei se foi por causa disso mas a partir dali experimentei tanta coisa... Parecia uma gira! Sentia pessoas sentadas perto da minha cama o tempo todo, contando coisas engraçadas, histórias que na hora eu ouvi interessado mas das quais não me recordo de modo algum. Nesta última noite ouvi orações acima da minha cabeça mas eu não conseguia entender o idioma. Mas eram bem umas vinte pessoas rezando, uma reza demais de afiada. Quem estava no coro sabia muito bem o que estava fazendo! A princípio eu não entendi o que era aquilo. Acordei com aquele vozerio todo acima da minha cabeça... Mas perceber que eram apenas pessoas rezando me fez adormecer de novo. 
Quando acordei, estava apoiado no meu lado esquerdo, coisa que até então não fizera e não sentia nenhuma dor. O tempo todo foi assim! Impossível que aquela morfina de domingo tenha feito toda essa esbórnia e tido um efeito tão prolongado! Havia coisas que eu queria anotar para poder lembrar depois mas o momento era tão inédito que deixei passar a sede do registro para viver cada segundo como a peça sugeria e beber do próprio instante sem qualquer sofreguidão, só com a mais pura entrega!
Hospitais são lugares de sofrimento verdadeiro. Energias sutis se mesclam com percepções instintivas acuadas. Sou muito cético a respeito dessas coisas mas a verdade é que vejo vultos em todos os hospitais. Já no Sírio-Libanês acontecia isso. Mas essa falação toda... essas pessoas sentadas ao meu lado... não consigo explicar! Esta noite acordei querendo estar na minha cama, com o barulho do mar contando coisas... Estendi minha mão para fora do leito e um calor morno e conhecido pousou nela como um pássaro dançante que me fez dormir de novo...
Estou me sentindo bem! O dreno estava atrapalhando um pouco. Tiraram nesta manhã. Credo! Me senti uma ostra sendo debulhada nas entranhas! E sem direito a pérola alguma pra levar de vantagem! Tenho sensibilidade nas perfurações mas nenhuma dor acentuada demais. Desculpem por não ter dado notícias antes, cheguei em casa há poucas horas. 
Beijos Mil! Fiquem com todo meu Amor. Algumas fotos do apartamento e do mar inenarrável. No Darma. C.