E
Billie Holiday faz cem anos...
Comecei
a ouvir Lady Day aos dezoito anos. Tinha uma formação
musical baseada em rock e algo de MPB e quis comprar um vinil de jazz de
alguma grande cantora com o único intuito de me deleitar e começar a ouvir um tipo de música até então desconhecido. Os textos de Ezequiel Neves, Tárik de Souza e Ana Maria Bahiana começaram a me alertar para outros gêneros. Mas penso que no fundo estava mesmo era procurando por uma Diva.
Nunca
antes ouvira falar em Billie Holiday e tive nesse dia a grande sorte da sugestão de um vendedor que sempre me atendia no Museu do Disco e me indicava coisas
esplêndidas. Além disso ele me disse que Billie era a referência primordial para Maria Bethânia e Gal Costa, o que selou definitivamente minha decisão. Comprei logo de cara um álbum
duplo, com gravações de diferentes épocas de sua carreira.
A
princípio foi difícil entender o conjunto daquela compilação mas fiquei sinceramente perplexo e intrigado com todas as
faixas. Encantado, na verdade. É só o que posso dizer. Aquelas músicas
começaram a fazer parte do meu cotidiano. Pensava em trechos que
martelavam meu hit parade pessoal o dia inteiro e fui me apaixonando pelas canções. Mesmo com meu inglês ordinário sabia ou intuía de alguma maneira que ali
estava expressa toda uma vida. Era claro que eram músicas de uma mulher traída, triste e abandonada, mas com uma nota única de originalidade e uma voz muito diferente do conceito que eu tinha sobre uma 'grande voz'. 'Don't Explain' foi a primeira delas a me alertar sobre isso, a primeira pista. E depois vieram 'Lover Man', 'God Bless the Child' e todos aqueles standarts que terminariam compondo a trilha sonora das minhas próprias paixões, meus próprios amores impossíveis.
É
dificílimo escrever alguma coisa sobre Billie Holiday, até
mesmo uma covardia se penso nesses quarenta anos de audição
contínua e fiel e mais tudo aquilo que ela me fez buscar e entender
em jazz, desde os músicos que a acompanharam, os grandes amigos como Lester Young, as diferentes orquestras pelas quais passou, tudo isso movido simplesmente pela grande fascinação que exerceu sobre mim desde o início, uma verdadeira síndrome de delírio e êxtase.
Li
tudo que me caiu nas mãos sobre Billie. Foi a artista de quem
mais tive discos e CDs. Várias fases de paixão incontrolada me
faziam voltar ao mesmo repertório e rever gravações que passei a valorizar por diferentes motivos, sempre uma revelação. Era capaz de amar
exaustivamente uma canção de várias formas, algo até então
inédito no meu repertório de favoritismos.
O
tempo e a devoção me fizeram entender que Billie foi sem dúvida a primeira
cantora de jazz, definitivamente sem precedentes. Outras como Ma
Rainey, Big Mama Thornton ou Bessie Smith, suas precursoras, eram basicamente cantoras de blues. E além de tudo ela era completa, dona de um carisma que ninguém jamais ultrapassou, uma presença cênica que, segundo os que viram, surgia como um verdadeiro momento de suspense que calava a todos, emoldurada por uma beleza assombrosamente natural
e refinadíssima e aliada a uma malandragem que só adquire mesmo quem
já passou por todas! E entre os músicos Billie era acima de mais nada um instrumentista, era simplesmente mais um dos caras!
Lady Day surgiu dentro de um universo musical dominado exclusivamente por homens e num
círculo artístico formatado dentro da forte cultura negra norte-americana, que emergia com originalidade e garra extraordinárias mas totalmente marginalizada. A segregação racial, a afirmação
de uma arte esteticamente amadurecida dentro desses moldes e todo o comportamento que esses artistas cultivaram
para alicerçar essa expressão genuína dentro de uma sociedade que
os renegava e que era completamente incapaz de repetir seu brilhantismo, fizeram de
Billie Holiday o primeiro modelo do que viria a ser no futuro uma verdadeira cantora de jazz.
E
o fato é que as cantoras que vieram depois, todas as
grandes divas negras, tinham uma voz muito mais potente do que Lady.
Mas a ginga e legitimidade, o sentido musical e domínio completo do
que fazia, nenhuma delas alcançou sequer em sonhos de microfone!
Um
amigo certa vez definiu a voz de Billie como 'surrealista'. Foi a
melhor expressão dada a essa tessitura metálica e original que
continua buzinando trompetes em seus ouvidos mesmo depois de encerrada
a audição.
Acredito
que o caráter e personalidade dela tenham ajudado a forjar uma
intérprete única dentro da história da música popular americana.
Surgida na era do swing como crooner da orquestra do também brilhante
Teddy Wilson, Billie abrangeu ao longo de sua vida breve o leque de um repertório vastíssimo e de um extremo bom gosto. Com ela nada foi
exaustivo ou aborrecido. Qualquer canção carrega consigo um impacto
tão grande que faz o ouvinte se surpreender com 'Summertime', por
exemplo, como se fosse um hit lançado há apenas alguns dias. E o
intimismo com que dichavava uma música, fazendo-a soar como escrita
e concebida sob medida para ela, tamanha a propriedade com que aborda cada tema, conduz afinal a uma sensação impagável que ela está cantando somente pra você!
Miles
Davis, outro monstro sagrado, declarou certa vez que quando
ele decidia gravar uma música que Billie já tivesse gravado, a
interpretação dela seria decisiva na forma com que ele abordaria
aquela canção. Frank Sinatra, talvez um dos maiores ícones americanos, disse que Billie Holiday era, sem qualquer sombra de
dúvida, a cantora mais influente de todos os tempos.
(trecho
de uma correspondência recente)
Ouvi
a música que você me indicou. Acho que essas garotas fizeram
realmente um grande trabalho. Mas não é o que me agrada de verdade.
Não me toca pessoalmente a forma como elas cantam, ainda que tenham
vozes poderosas. As modulações de Shirley Horne são belíssimas
naquela canção.
O
fato é que nenhuma cantora que eu conheça consegue me arrancar tudo
de dentro como Lady Day. E eu tenho uma fixação incondicional por
ela, reconheço. Fixação da qual, devo confessar, não estou nem um
pouco disposto a me mover!
Assisti
há pouco tempo um documentário sobre ela onde os depoimentos de
artistas como Buck Clayton e Carmen McRae são de uma preciosidade
sem fim, porque eles a conheceram e viveram aquilo tudo de perto.
Há
quarenta anos escuto Billie Holiday e ainda hoje me deparo com
frases, detalhes, alma e um cinismo cujo deboche nunca havia me dado conta. É disso que gosto de verdade, de mergulhar fundo na obra
desses gigantes e ficar nesses abissais até perder o fôlego. Isso
me alimenta. Me dá todas as respostas.
Kind
of Blue, por exemplo, vale para mim mais do que muitos discos de
Miles Davis juntos. É impensável que Miles e seus músicos tenham
gravado aquilo em apenas sete horas. Mas eles o fizeram!
Essas
joias são para mim como um 'modelo de universo'. Não sei o que está
por trás desses eventos dentro do mundo da música e da arte, mas
eles alcançam um nível de expressão que termina por funcionar na
forma de um grande arquétipo que abrange tudo .
E
para minha compreensão, Billie teve o papel catalisador de
estabelecer isso como cantora. Ela soa verdadeiramente como
mais um instrumento dentro do conjunto e ela sempre declarou ser essa sua intenção.
Sua voz flui e flerta com os músicos o tempo todo sem qualquer
estrelismo. Talvez por isso eles fossem tão loucos por ela. Billie
paira sobre as músicas mais como uma sugestão do que como foco
central. É essa invisibilidade que faz com que Billie Holiday
personalize como ninguém mais essa ampla e rica modalidade musical
chamada Jazz!