quinta-feira, 28 de novembro de 2013

O Cavalinho Azul do Luna Park



O Cavalinho Azul do Luna Park

a MLML

O parque instalara-se naquele canto da praia havia muitos anos. Talvez por gerações estivesse ali. Não se sabia ao certo. Havia muitos rumores sobre o Luna Park. Mas ele sempre nos pareceu fantástico.
Por causa da maresia os brinquedos foram sendo substituídos ao longo do tempo por outros mais modernos. Mas eram basicamente alguns carrosséis, a roda gigante, os carros que trombavam e o grande chapéu mexicano. Havia também barracas de jogos de argolas, incontáveis maçãs do amor revelando groselhas, pipocas coloridas e amendoins na brasa que as negras caiçaras sabiam preparar como ninguém.
Era um parque comum que atendeu a milhares de crianças maravilhadas. Eu não me lembro de ter estado sequer uma única vez em qualquer um daqueles brinquedos. Mas recordo meu deslumbramento só de passar perto do Luna Park. Entrar nele então, era como adentrar um mundo de luzes em movimento, rodopiar sonhos coloridos que ainda não sonhara.
Contaram essa estória muito depois. O caso é que os cavalinhos do carrossel foram feitos pelo velho homem responsável pelo parque. Lembro-me bem dele. Uma figura esguia e branca vagando pelas ruelas a tilintar um colete cheio de chaves preciosas. Para mim elas tinham o acesso a todos os brinquedos, assim imaginava. E seu nome, tão estranho, Mestre Venâncio, ecoando em seu universo giratório por todos os lados, era uma senha incansável, pois havia sempre alguém a chamá-lo, alguém sempre murmurando seu nome pelas aleias daquele mundo de luzes em movimento. Parecia que a muito custo exercia seu papel central de dono da fantasia. Mas a impressão mais sutil é que, na verdade, ele apenas se resignava. Era de todos o que mais fazia de conta. Eu pensava que ele era feliz porque vivia nesse limite do sonho e do dia a dia. Mas não. Ele já vencera os prazos de ser feliz.
Mestre Venâncio era um homem só. Mas nem sempre foi assim. Tivera família numerosa e criara seus filhos ali, dentro do parque.
Porém eles se foram, atrás de outros brinquedos, de outros sonhos, de outras vidas. A mulher que docemente o acompanhara ao longo de muitos anos, um dia também se foi, para o grande carrossel do universo de não sei onde, buscar encantamentos nas estrelas de outros parques, onde todos os dias os anjos dizem amém.
E assim o Luna Park resistiu persistentemente. Nem o tempo nem a maresia são capazes de enferrujar os sonhos. E num momento assim ele começou a esculpir os cavalinhos. Lembrança giratória como um álbum de família. Um para cada filho, e o branco sendo Aracy, nome esquecido de sua amada.
Cavalinhos com nomes parecendo uma vida. Preto, Brincante, Cedo, Piloto, Aracy e Vermelho. Mas Mestre Venâncio esculpira os animais para serem alados, por liberdade intuída, acordo entre um homem e as estrelas à guisa de constelação. Em cada um deles dispusera um par de asas. E não se montava aqueles animais. Não se destinavam a condução infantil ou motivo de brinquedo. Mas giravam o tempo todo, mesmo quando os outros brinquedos estavam parados, para fazer lembrar que o destino conduz tudo a passos largos e espera sempre pela próxima valsa como o mais paciente dos partners. E era ali que ele passava a maior parte do tempo. Um lugar de segredos...
Mestre Venâncio sentado diante do carrossel em movimento... Girando em seus dedos nodosos um dos molhos que os bolsos de seu colete engoliam em segredo de sete chaves. Kombolói grego de país algum. O cabelo já todo branco, a perna direita que vez por outra falhava escorando a bengala nova. E o carrossel em movimento contando em arquétipos de felicidade, sua vida ali quase que por inteiro. Eram assim suas noites até que tudo se apagasse e a vida vazia mostrasse o profundo de seu oco insubstancial. Só as estrelas por companhia. Era difícil dormir. O parque rodopiava suas luzes ainda no escuro de seu velho trailer. Mestre Venâncio no escuro e a eternidade se abrindo. Os olhos fechados vendo luzes recorrendo mandalas insones. Sorrisos dentro das trevas transcendendo túneis...
Foi por volta de não sei quando, ele iniciou do nada um estranho hábito noturno. Dizem que isso sempre acontecera, mas não acredito. Acho que ele planejou tudo, mesmo porque, Mestre Venâncio não era assim uma espécie de deus de não sei quê? Ele podia tudo. Não era mesmo o dono senhor dos brinquedos todos? A um toque seu, todos os brinquedos funcionariam! Sua magia dispensava fórmulas de abracadabras.
E numa noite tudo começou! Entrados novembros e mesmo sendo um sábado, o parque fechou mais cedo. O carrossel, entretanto, continuou girando suas mil e uma noites de todos os dias.
Mas Mestre Cedo Venâncio não foi para a cama.
Aboletou-se no seu banco baixo e começou a entalhar um pedaço de boa madeira olhando os cavalinhos enquanto murmurava uma canção ao deus-dará, olhando sua vida inteira sem olhar para ela...
E foi assim. Canivete que te quero, não há tempo rima ou medida que façam a eternidade ser interrompida. Não é preciso viver dentro da gaiola quando a porta está aberta. Como se soubesse de tudo isso e muitas outras coisas mais insuspeitáveis ainda, o velho Mestre Venâncio descansava o azul longe de seus olhos ciganos em cada um de seus pégasos. E levemente eles agitavam por encanto de condão imediato suas asas de madeira até que elas adquirissem as penas leves de uma gaivota. E depois voavam. Para apenas se confundirem no céu e não serem mais nada. E de encantamento em encantamento, um por um, os cavalinhos se foram. Lendas de outras épocas que se desvaneceram depois da Ponte Pênsil.
Foram ser personagens de outros carrosséis ao longo do grande universo. O último deles, Cedo, o azul, levou consigo aquele homem mágico até que os dois se fundiram numa nuvem que passava casualmente sobre o mar noturno
E o parque todo, na manhã seguinte, também desaparecera para sempre, envolto em brumas, tendo como únicas testemunhas, as ondas, que até hoje contam esse segredo umas às outras enquanto o vento continua ainda cantando aos marujos aquela música em sopranos.