O Cavalinho Azul do Luna Park
a MLML
O parque instalara-se naquele canto da praia
havia muitos anos. Talvez por gerações estivesse ali. Não se sabia ao certo. Havia muitos rumores sobre o Luna Park. Mas ele sempre nos
pareceu fantástico.
Por causa da maresia os brinquedos foram sendo
substituídos ao longo do tempo por outros mais modernos. Mas eram basicamente alguns carrosséis, a roda gigante, os carros que
trombavam e o grande chapéu mexicano. Havia também barracas de
jogos de argolas, incontáveis maçãs do amor revelando groselhas,
pipocas coloridas e amendoins na brasa que as negras caiçaras sabiam
preparar como ninguém.
Era um parque comum que atendeu a milhares de
crianças maravilhadas. Eu não me lembro de ter estado sequer uma
única vez em qualquer um daqueles brinquedos. Mas recordo meu
deslumbramento só de passar perto do Luna Park. Entrar nele então,
era como adentrar um mundo de luzes em movimento, rodopiar sonhos coloridos que
ainda não sonhara.
Contaram essa
estória muito depois. O caso é que os cavalinhos do carrossel foram
feitos pelo velho homem responsável pelo parque. Lembro-me bem dele.
Uma figura esguia e branca vagando pelas ruelas a tilintar um colete
cheio de chaves preciosas. Para mim elas tinham o acesso a
todos os brinquedos, assim imaginava. E seu nome, tão estranho,
Mestre Venâncio, ecoando em seu universo giratório por todos os
lados, era uma senha incansável, pois havia sempre alguém a
chamá-lo, alguém sempre murmurando seu nome pelas aleias daquele
mundo de luzes em movimento. Parecia que a muito custo exercia seu
papel central de dono da fantasia. Mas a impressão mais sutil é
que, na verdade, ele apenas se resignava. Era de todos o que mais
fazia de conta. Eu pensava que ele era feliz porque vivia nesse
limite do sonho e do dia a dia. Mas não. Ele já vencera os prazos
de ser feliz.
Mestre Venâncio era
um homem só. Mas nem sempre foi assim. Tivera família numerosa e
criara seus filhos ali, dentro do parque.
Porém eles se
foram, atrás de outros brinquedos, de outros sonhos, de outras
vidas. A mulher que docemente o acompanhara ao longo de muitos anos,
um dia também se foi, para o grande carrossel do universo de não
sei onde, buscar encantamentos nas estrelas de outros parques, onde
todos os dias os anjos dizem amém.
E assim o Luna Park
resistiu persistentemente. Nem o tempo nem a maresia são capazes de
enferrujar os sonhos. E num momento assim ele começou a esculpir os
cavalinhos. Lembrança giratória como um álbum de família. Um para
cada filho, e o branco sendo Aracy, nome esquecido de sua amada.
Cavalinhos com nomes
parecendo uma vida. Preto, Brincante, Cedo, Piloto, Aracy e Vermelho.
Mas Mestre Venâncio esculpira os animais para serem alados, por
liberdade intuída, acordo entre um homem e as estrelas à guisa de
constelação. Em cada um deles dispusera um par de asas. E não se
montava aqueles animais. Não se destinavam a condução infantil ou
motivo de brinquedo. Mas giravam o tempo todo, mesmo quando os outros
brinquedos estavam parados, para fazer lembrar que o destino conduz
tudo a passos largos e espera sempre pela próxima valsa como o mais
paciente dos partners. E era ali que ele passava a maior parte do
tempo. Um lugar de segredos...
Mestre
Venâncio sentado diante do carrossel em movimento... Girando em seus
dedos nodosos um dos molhos que os bolsos de seu colete engoliam em
segredo de sete chaves. Kombolói grego de país algum. O cabelo já
todo branco, a perna direita que vez por outra falhava escorando a
bengala nova. E o carrossel em movimento contando em arquétipos
de felicidade, sua vida ali quase que por inteiro.
Eram assim suas noites até que tudo se apagasse e a vida vazia
mostrasse o profundo de seu oco insubstancial. Só as estrelas
por companhia. Era difícil dormir. O parque
rodopiava suas luzes ainda no escuro de seu velho trailer.
Mestre Venâncio no escuro e a eternidade se abrindo. Os olhos
fechados vendo luzes recorrendo mandalas insones. Sorrisos
dentro das trevas transcendendo túneis...
Foi por volta de não
sei quando, ele iniciou do nada um estranho hábito noturno. Dizem
que isso sempre acontecera, mas não acredito. Acho que ele planejou
tudo, mesmo porque, Mestre Venâncio não era assim uma espécie de
deus de não sei quê? Ele podia tudo. Não era mesmo o dono senhor
dos brinquedos todos? A um toque seu, todos os brinquedos
funcionariam! Sua magia dispensava fórmulas de abracadabras.
E numa noite tudo
começou! Entrados novembros e mesmo sendo um sábado, o parque
fechou mais cedo. O carrossel, entretanto, continuou girando suas mil
e uma noites de todos os dias.
Mas Mestre Cedo
Venâncio não foi para a cama.
Aboletou-se no seu
banco baixo e começou a entalhar um pedaço de boa madeira olhando
os cavalinhos enquanto murmurava uma canção ao deus-dará, olhando
sua vida inteira sem olhar para ela...
E foi assim.
Canivete que te quero, não há tempo rima ou medida que façam a
eternidade ser interrompida. Não é preciso viver dentro da gaiola
quando a porta está aberta. Como se soubesse de tudo isso e muitas
outras coisas mais insuspeitáveis ainda, o velho Mestre Venâncio
descansava o azul longe de seus olhos ciganos em cada um de seus
pégasos. E levemente eles agitavam por encanto de condão imediato
suas asas de madeira até que elas adquirissem as penas leves de uma
gaivota. E depois voavam. Para apenas se confundirem no céu e não
serem mais nada. E de encantamento em encantamento, um por um, os
cavalinhos se foram. Lendas de outras épocas que se desvaneceram
depois da Ponte Pênsil.
Foram ser personagens de outros carrosséis ao longo do grande universo. O último deles, Cedo, o azul, levou consigo aquele homem mágico até que os dois se fundiram numa nuvem que passava casualmente sobre o mar noturno
Foram ser personagens de outros carrosséis ao longo do grande universo. O último deles, Cedo, o azul, levou consigo aquele homem mágico até que os dois se fundiram numa nuvem que passava casualmente sobre o mar noturno
E o parque todo, na
manhã seguinte, também desaparecera para sempre, envolto em brumas,
tendo como únicas testemunhas, as ondas, que até hoje contam esse
segredo umas às outras enquanto o vento continua ainda cantando aos
marujos aquela música em sopranos.